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Eneias foge da Troia em chamas (Frederico Barocci, 1598).

Eu tenho orgulho de lecionar em uma universidade que é comprometida em se edificar sobre os clássicos e unir o legado greco-romano de Atenas com a fé judaico-cristã de Jerusalém. O que isso significa na prática é que nós acreditamos que a verdadeira sabedoria pode, e deve, ser aprendida a partir de escritores pré-cristãos como Homero, Sófocles, Platão, Aristóteles, Cícero e Virgílio. Por que seria esse o caso?

Embora eu, enquanto batista, possua uma visão bastante elevada da Bíblia como a Palavra de Deus inspirada e inerrante, também sei que Cristo, não a Bíblia, é a origem última da Verdade. A Bíblia é, porém, a mais perfeita e confiável encarnação dessa Verdade que reside em Cristo somente. A distinção aqui é vital. Se a fonte da Verdade é o Messias Vivo, e não um único livro, então é possível que essa Verdade – ainda que de forma inferior e fragmentada –, se manifeste ao longo da literatura imaginativa dos homens.

“De um só”, Paulo ensina aos atenienses, Deus “fez toda a raça humana para que habitasse sobre toda a superfície da terra, determinando-lhes os tempos previamente estabelecidos e os territórios da sua habitação, ‘para que buscassem a Deus e, mesmo tateando, pudessem encontra-lo. Ele, de fato, não está longe de cada um de nós;’ pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como também alguns dos vossos poetas disseram: ‘pois dele também somos geração’.” (At 17.26-28, versão Almeida Século 21).

Nós todos – pré-cristãos, cristãos e pós-cristãos – fomos programados por nosso Criador com um desejo de busca e anseio pelo Deus que é a Verdade. Se é verdade que nós fomos feitos à imagem dele, que ele não está longe de nós, e que é nele que vivemos, nos movemos e existimos, então também deve ser verdade que aqueles Grandes Livros que registram as reflexões dos maiores buscadores e anseios do homem conterão vestígios, resquícios e indicações da Sabedoria que nos criou.

A Verdade não é limitada às Escrituras; a Bíblia, apesar de nos contar tudo o que precisamos saber para encontrar salvação em e através de Jesus Cristo, não tenta ou pretende ser uma enciclopédia de todo o conhecimento e sabedoria. Ela consegue nos guiar a Cristo e nos instruir nos fundamentos de nossa fé, mas não consegue responder a todas as nossas questões nem pode satisfazer todos os nossos mais profundos desejos e anseios pela verdade, beleza e bondade.

Deus fala conosco de muitas outras maneiras e através de muitos outros meios e, embora Cristo e as Escrituras – ambos Palavra de Deus – devam atuar como a norma a partir da qual toda comunicação desse tipo é julgada, nós não devemos permitir que suspeitas “puritanas” acerca do valor moral e status doutrinário de esforços humanistas nos impeçam de acessar essas mensagens codificadas vindas do Criador. Nós não devemos rejeitar os ensinos de Platão ou os símbolos de mitologias como ilusões pagãs, mas aprender a discernir dentre eles uma semente de verdade cuja origem última é o Deus Trino. Nós devemos aprender que, embora Platão não tenha visto tão claramente como Ezequiel ou Paulo, ele viu, e o que ele viu merece estudo detalhado e amoroso.

Apesar do fato de nosso mundo e nossa humanidade serem caídos, a mão de Deus ainda pode ser discernida nas leis e na sabedoria que mantêm o mundo em movimento e a humanidade em preservação. Cada nação tem sua própria Torá e seu próprio livro de Provérbios e, embora apenas as manifestações bíblicas desses elementos essenciais da vida humana possuam autoridade absoluta, traços da verdade e presença de Deus são encontrados em todos eles. Todas as nossas obras e nossos ideais são corrompidos pela mancha do pecado, e ainda assim, de tempo em tempo ao longo da história da humanidade, a Luz de Cristo se manifestou nas linhas de um poema (Homero, Virgílio), nas máximas de um filósofo (Platão, Cícero) ou nas decisões de um legislador (Ciro, Augusto).

Em qualquer lugar onde alguém tenha buscado, com todas as suas forças, compreender as verdades do Criador, ali está Deus. Ele nem sempre aprova, mas está sempre presente. E, por vezes, ele vai falar através da boca do pagão: para apresentar um novo tipo de herói que precisa se mover além da proeza física de Aquiles e da astúcia de Ulisses com o fim de aprender as virtudes (proto) cristãs de paciência, fé e esperança (Eneias, do poema Eneida, de Virgílio); para denunciar injustiça e ciclos de vingança (Antígona, de Sófocles, e Oréstia, de Ésquilo); para atestar a natureza oculta do pecado e a necessidade de um bode expiatório (Édipo, de Sófocles); para preparar o coração diante da chegada de um Deus-Homem que vai sofrer e expor o legalismo do Fariseu (As Bacantes, de Eurípides); para nos advertir acerca da ira e nos instruir naquilo que significa ser humano (Ilíada e Odisseia, de Homero).

Qualquer uma das obras listadas no parágrafo acima poderia ser usada para demonstrar como a mais alta literatura pagã contém vislumbres e indicações da revelação maior que viria; no entanto, eu gostaria de focar em um único poema do final da antiguidade clássica que foi aclamado tanto pelos primeiros cristãos quanto pelos cristãos medievais como prova de que o Deus da Bíblia preparou o mundo greco-romano intencionalmente para a chegada do evangelho. Eu me refiro a um poema lírico que Virgílio escreveu em aproximadamente 40 a.C. – mais de uma década antes de começar a escrever Eneida – que parece profetizar acerca do Messias Judeu.

Algum tempo depois de derrotar, com a ajuda de Marco Antônio, os senadores que assassinaram seu pai adotivo (Júlio César), o jovem Otaviano, que mais tarde se tornaria César Augusto, começou a importunar seu poeta favorito, Virgílio, para escrever um épico romano que se compararia aos de Homero. Sentindo-se insuficiente para a tarefa, Virgílio voltou-se, ao contrário, para o gênero menos elevados de poesia pastoril. Inventada, ou ao menos aperfeiçoada, pelo poeta alexandrino Teócrito, a poesia pastoril chama os leitores urbanos de volta a uma inocente Era Dourada quando o homem vivia uma vida simples próximo à natureza.

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A maioria dos dez poemas que compõe as Éclogas de Virgílio (ou Bucólicas) retrata a vida de pastores despreocupados que pastoreiam seus rebanhos e tocam canções em suas flautas. Mas então algo ocorre na Quarta Écloga. Inesperadamente, maravilhosamente, Virgílio escreve de maneira profética, anunciando aos seus leitores que agora ele cantará sobre coisas um pouco mais elevadas. Eis alguns versos selecionados do poema:[1]

Musa da Sicília, tentarei agora um tema um pouco mais elevado…
Nossa é a era de coroação predita em profecia:
Nascida do Tempo, um novo ciclo grandioso de séculos
Começa. Justiça retorna à terra, a Era Dourada
Retorna, e seu primogênito desce dos céus acima…
Essa criança entrará na vida dos deuses…
E governará um mundo feito pacífico pelos atos virtuosos de seu pai…
As cabras retornarão ao lar, com seus úberes tensos de leite, e ninguém
As pastoreará: o boi não terá medo do leão…
Venha sem demora, estimada criança dos deuses, grande vice-rei de Júpiter!
Venha sem demora – o tempo está próximo – para começar sua ilustre vida!
Note como o globo terrestre redondo e enorme se curva para saudá-lo,
As terras, as extensas léguas do mar, o céu infinito!
Note como toda a criação exulta na era que está por vir!

Embora críticos ainda debatam acerca da identidade da divina criança exaltada no poema, é quase certeza que Virgílio tinha em mente o jovem Otaviano. De fato, é provável que a Quarta Éclogue tenha sido inspirada pelo Tratado de Brundísio, o qual fez cessar temporariamente a guerra civil entre Otaviano e Marco Antônio, em parte por intermediar um casamento entre Antônio e a irmã de Otaviano. Dessa forma, o tratado prometeu dias futuros de paz, prosperidade e propagação.

Ainda assim, qualquer que tenha sido o ímpeto histórico exato que inspirou Virgílio, não se pode negar que o poema, quando despojado de suas referências a Júpiter e aos deuses, é lido como se fosse uma passagem retirada de Isaías, Jeremias ou dos Salmos. Apesar da mitologia Greco-Romana ser repleta de histórias de semideuses – Aquiles, Hércules, Perseu, Eneias – a “estimada criança dos deuses” de Virgílio se enquadra em uma categoria própria. Ele será mais que um herói, até mesmo mais que um matador de feras. Ele fará a ponte entre céus e terra e trará Paz e Justiça ao mundo. Ele trará a consumação dos fios entrelaçados da história e o cumprimento dos desejos das nações. Sob seu domínio, a profecia dita por Isaías 700 anos antes finalmente acontecerá: “O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leão e o animal de engorda viverão juntos; e um menino pequeno os conduzirá” (Is 11.6, Almeida Século 21).

Bem, não exatamente. É importante lembrar que Virgílio não escreveu a partir de uma tradição bíblica, mas de uma tradição pagã. Ele não tinha acesso a Gênesis, mas estava imerso na crença greco-romana de que a humanidade havia caído, em estágios sucessivos, da pastoril Era Dourada, para a ímpia Era de Prata, para a bélica Era de Bronze, e finalmente para a presente, degenerada, Era de Ferro. A divina criança de Virgílio trará de volta a Era Dourada, ao mesmo tempo em que guiará a criação de algo muito maior: uma Nova Jerusalém pagã substituindo um perdido Éden pagão. Esse amanhecer glorioso começará ao final de um grandioso ciclo cósmico que seria vislumbrado, meio século depois, por um grupo de magos pagãos seguindo sua própria rica tradição astrológica extra-bíblica.

Embora eu firmemente acredite que foi, em última análise, Yahweh quem inspirou Virgílio, não se pode esquecer que sua profecia pagã possui raízes no solo gentio de Homero, Ésquilo, Sófocles, Platão, Teócrito e Cícero. Apesar de toda luz verdadeira encontrar sua origem no Pai das Luzes, Virgílio atrai para sua éclogue profética as luzes inferiores de seus predecessores. Sim, Virgílio observou turvamente no espelho, mas o que ele viu possuía o contorno da Verdade Encarnada que viria ao mundo uma geração depois.

Educadores cristãos que se sentem chamados a manter viva a tradição ocidental fariam bem em começar com a Quarta Éclogue de Virgílio. Toda vez que a leio, sou lembrado de duas passagens encantadoras da minha canção de Natal favorita: “as esperanças e medos de todos os anos / são cumpridas em ti esta noite.” O termo “ti” se refere, claro, a Belém, a cidade onde a tão esperada criança desceu dos céus e iniciou um processo que eventualmente recuperaria toda a criação.

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[1] Nota do tradutor: No texto em inglês, ao citar o trecho do poema, Louis Markos faz uso da tradução de C. Day Lewis, poeta inglês.

Traduzido por Bárbara de Oliveira Santaroni Cortat e revisado por Jonathan Silveira.

Texto original: Why Athens and Jerusalem Must Meet. Houston Baptist University.

Louis Markos é professor de inglês e acadêmico residente na Houston Baptist University. É autor de From Achilles to Christ (IVP Academic, 2007), On the Shoulders of Hobbits: The Road to Virtue with Tolkien and Lewis (Moody, 2012), e From A to Z to Narnia with C. S. Lewis (Lampion, 2015).

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