A igreja local e seus membros constituem uma comunidade política que existe segundo a autorização explícita de Jesus em Mateus 16, 18 e 28. De fato, como é essa autorização que dá existência à igreja local, precisamos dizer que um elemento essencial da igreja local é sua estrutura política, sem a qual ela não existe.[1] O propósito dessa comunidade política, portanto, é representar publicamente o rei Jesus, exibir a justiça e a retidão do Deus triúno e proclamar que o mundo inteiro pertence a esse rei. Seu direito é universal.
O termo “político” não está sendo usado somente de forma análoga, como quando alguém se refere a “política da igreja” ou “política da equipe”. Em vez disso, este trabalho tem tentado fazer frente ao desafio de Oliver O’Donovan por meio do desenvolvimento de uma “conceituação política mais ampla”, que “afaste o horizonte da política do lugar comum e a abra para a atividade de Deus”.[2] Ao contrário de O’Donovan, tentei construir essa conceituação sobre a estrutura pactual da Bíblia, utilizando o vocabulário institucional fornecido por recentes trabalhos em ciência política. Porém, assim como O’Donovan, minha teologia política se apoia em uma doutrina de duas eras.
Para defender o argumento aqui, serão necessárias duas grandes etapas que dizem respeito ao relacionamento teológico entre a igreja universal e a igreja local. A primeira etapa é demonstrar que a assembleia celestial e escatológica chamada de igreja universal é uma assembleia política — uma assembleia unida pela nova aliança, pelo Espírito, pela fé e pelo senhorio de Cristo. A segunda etapa é demonstrar que essa assembleia política se manifesta ou se torna visível no planeta Terra por meio do exercício das chaves do reino. A igreja local administra publicamente a nova aliança. Assim como o Estado é uma instituição política porque foi autorizada por um Rei a tomar emprestada e usar sua espada sobre os súditos rebeldes na “era da criação”, a igreja local é uma instituição política porque foi autorizada por um Rei a tomar emprestada e usar as chaves do oficio dele para declarar quem é e quem não é um cidadão na “era da nova aliança”. As chaves se tornam visíveis no batismo e na ceia do Senhor, por meio das quais uma igreja encena uma cerimônia pactual de ratificação para a nova aliança. É assim que a igreja “realiza” o tipo de ratificação que observamos no caso da aliança abraâmica, em Gênesis 15 e 17, ou no caso da aliança mosaica, em Êxodo 24. Essa relação entre a igreja universal e a igreja local não é somente análoga ao relacionamento entre justiça cristã posicional e existencial; é parte integrante desse relacionamento. A membresia na igreja local, assim como as boas obras, é a marca, a prova, a insígnia ou, para usar um termo de cidadania, o “passaporte” de um verdadeiro cristão.
De um modo geral, abordar a doutrina da igreja segundo esse ponto de vista alivia um pouco a tensão entre as perspectivas comunitária e institucional. A fé e a ordem da igreja não são independentes e separáveis (veja Cl 2.5). Ao contrário, “a estrutura da igreja é a forma social do poder e da atividade convertedores de Cristo, que está presente como Espírito”.[3]
Usando a linguagem do “reino” do Novo Testamento, defendo o argumento de que o reino de Cristo é apresentado ou tornado visível na igreja local pelo uso das chaves do reino. A igreja não é o reino; é uma embaixada desse reino. O que é uma embaixada? É uma instituição que representa uma nação dentro de outra. Ela declara os interesses de seu país natal ao seu país anfitrião e protege os cidadãos do país natal que estão vivendo no país anfitrião. As embaixadas não transformam pessoas em cidadãos de seu país de origem, mas reconhecem formalmente quem é e quem não é cidadão do país de origem, como a embaixada dos EUA em Bruxelas fez por mim quando eu morava na Bélgica e meu passaporte expirou. A embaixada não me tornou um cidadão americano na tarde em que fui até lá, mas ratificou oficialmente minha cidadania de um modo que eu, por mim mesmo, não tenho autoridade para fazer. A ratificação feita pela embaixada, no entanto, me deu a autorização de continuar morando em uma cidade estrangeira, protegido por todos os direitos e benefícios de minha cidadania. A igreja local, da mesma forma, é onde o reino de Cristo tem um pouco de “espaço” humano (isto é, membros) entalhado em um planeta anfitrião, a Terra. Não se trata de uma embaixada que representa outra nação no espaço geográfico. Ela representa outra nação no espaço temporal — a partir do futuro. A igreja local é uma embaixada escatológica, institucionalmente falando. Os cristãos, que são transformados em cidadãos pelo “poder e atividade convertedores de Cristo, que está presente como Espírito”, são formalmente ratificados como cidadãos pela igreja local (recebem um passaporte); além disso, eles se tornam membros da igreja, que, em conjunto, têm a autoridade exigida para ligar e desligar. Essa autoridade conjunta para ligar e desligar, que está implícita na reautorização ao ato performativo divino de justificação e que foi explicitada nas chaves, é o modo pelo qual as pessoas do Novo Testamento de Deus reassumem o mandato perdido de Adão, que é o de proteger o “espaço” humano de Deus dos ataques das serpentes intrusas. Fé e ordem são coisas diferentes, mas estão inseparavelmente ligadas.
[1] Ou podemos ajustar o fraseado dos reformadores protestantes: Onde existe a igreja local? Resposta: em todo lugar em que a autoridade política de Cristo seja exercida por meio da pregação e das chaves do reino na afirmação e declaração públicas de sua entidade política justa.
[2] Oliver O’Donovan, Desire of the nations: rediscovering the roots of political theology (New York: Cambridge University Press, 1996), p. 2.
[3] John Webster, “The self-organizing power of the gospel: episcopacy and community formation”, in: Richard N. Longenecker, org., Community formation: in the early church and in the church today (Peabody: Hendrickson, 2002), p. 183; cf. Markus Bockmuehl, “Is there a New Testament doctrine of the church?”, in: idem; Alan J. Torrance, orgs., Scripture’s doctrine and theology’s Bible: how the New Testament shapes Christian dogmatics (Grand Rapids: Baker Academic, 2008), p. 43.
Jonathan Leeman (MDiv, Southern Baptist Theological Seminary) é o diretor editorial da série 9Marcas e autor de Membresia na igreja e Disciplina na igreja, publicados por Vida Nova. Leeman é professor, presbítero na igreja Cheverly Baptist Church, e vive em Washington, D.C., com a esposa e as quatro filhas. |
A IGREJA É UMA EMBAIXADA DE CRISTO DE NATUREZA POLÍTICA. Por anos, teólogos vêm debatendo essa afirmação, sejam eles agostinianos, anabatistas, neocalvinistas, adeptos da teologia da libertação ou da ortodoxia radical. Mas o que queremos dizer com natureza política? Quais os limites do alcance político da igreja? Qual a natureza da igreja como instituição política? Essas são algumas das questões às quais Jonathan Leeman se propõe responder neste livro. Levando em consideração a teologia da aliança e analisando o “novo institucionalismo” das ciências políticas, Leeman critica as várias manifestações do liberalismo político e analisa como as Escrituras fundamentam o entendimento da igreja como embaixada do reino de Cristo. As chaves do reino anuncia uma nova era na teologia política. |