O “Código de Leis” de Hamurabi | Caleb Howard

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Caleb Howard considera a fama duradoura de um dos mais antigos códigos escritos de lei e questiona como ele se compara às leis dadas ao povo de Israel.

É impossível ler o Antigo Testamento sem se dar conta do tema central da “lei”. Grande parte da narrativa gira em torno de pactos, instruções e mandamentos, que todos contribuem para um arcabouço divino para uma sociedade próspera. Na Bíblia, vemos que o Deus de Israel distingue seu povo de outras nações por meio de sua torah (geralmente traduzida como “lei”, mas provavelmente melhor compreendida de forma mais ampla como “instrução” geral). Mas quão singular era a torah de Israel? O que sabemos sobre outros códigos legais no antigo Oriente Próximo? Os mandamentos de Deus eram realmente tão especiais?

Para começar a responder a essas perguntas, podemos olhar para um homem chamado Hamurabi. Hamurabi foi um dos primeiros governantes da Babilônia e reinou por quarenta e três anos (1792–1750 a.C.), começando, de forma bastante modesta, como rei de uma cidade-estado relativamente menor no sul da Mesopotâmia. Mas, pelo trigésimo oitavo ano de seu reinado, ele havia conseguido derrotar todos os rivais em toda a Mesopotâmia, e seu domínio abrangia a maioria do estado moderno do Iraque e uma boa parte do leste da Síria. Em seus últimos anos, Hamurabi encomendou um conjunto de estelas de basalto (pedras verticais) para serem instaladas nos recintos dos templos de divindades mesopotâmicas importantes. Uma dessas estelas está agora em exibição no Museu do Louvre, em Paris, com várias réplicas ao redor do mundo, incluindo o Museu de Pérgamo, em Berlim. Ela é mais conhecida pela civilização ocidental como o Código de Hamurabi.

O Código de Hamurabi encontrou fama duradoura como o código de lei escrito mais antigo conhecido, e parece que os antigos compartilhavam nossa fascinação por ele. Embora tenha sido descoberto no Irã no início do século passado, a localização original da famosa estela do Louvre não é conhecida — alguns apontam o templo de Marduque (o deus da Babilônia) ou o templo de Samash (o deus da justiça) em Sipar como possíveis localizações —, mas seu texto foi copiado durante séculos por estudantes escribas que estavam aprendendo sua linguagem. Presumivelmente, a estela do Louvre e outros monumentos semelhantes permaneceram onde Hamurabi os instalou pela primeira vez até o século XII a.C., quando um rei elamita, chamado Sutruque-Nacunte, invadiu a Babilônia e levou muitos de seus monumentos para a cidade de Susã, no oeste do Irã. O rei elamita apagou partes desses monumentos para gravar suas próprias inscrições se vangloriando de onde os monumentos foram saqueados. Parte da estela do Louvre foi apagada e preparada para uma inscrição, que nunca foi feita. A porção danificada do código de Hamurabi nunca foi totalmente reconstruída.]

Hammurabi, CC BY 3.0 <https://creativecommons.org/licenses/by/3.0>, via Wikimedia Commons

A conhecida estela que carrega as leis de Hamurabi nunca retornou à Mesopotâmia. Permaneceu em Susã até o inverno de 1901–1902 d.C., quando escavações francesas a descobriram em três grandes pedaços, e então foi reconstruída. As rachaduras ainda podem ser identificadas no monumento. Ele foi descoberto ao lado de nove fragmentos menores feitos do mesmo material de pedra basáltica e inscritos com o mesmo texto. Alguns desses fragmentos podem ser conectados, e os estudiosos reconstruíram pelo menos outras três estelas monumentais que traziam o Código de Hamurabi, que aparentemente estavam originalmente em diferentes cidades mesopotâmicas.

Quase todo o texto do Código de Hamurabi está preservado, em parte graças a inúmeras cópias em tabuletas de argila encontradas em toda a Mesopotâmia. A composição começa com um prólogo e termina com um epílogo, ambos no estilo de uma inscrição real babilônica. Estas observações de abertura e encerramento exaltam Hamurabi como um “rei da justiça” (em acádio, shar misharim). Um trecho famoso do epílogo diz:

“Que qualquer homem injustiçado que tenha uma disputa venha diante da minha estátua, o rei da justiça, e que tenha minha estela inscrita lida em voz alta para ele, para que possa ouvir minhas preciosas sentenças e que minha estela revele a disputa para ele; que ele examine seu caso, que acalme seu coração (perturbado), (e que me louve), dizendo: ‘Hamurabi, o senhor, que é como um pai e gerador para seu povo, submeteu-se ao comando do deus Marduque, seu senhor, e obteve vitória para o deus Marduque em todos os lugares. Ele alegrou o coração do deus Marduque, seu senhor, e garantiu o bem-estar eterno do povo e proporcionou maneiras justas para a terra.’ Que assim ele diga, e que ore por mim com todo o seu coração diante dos deuses Marduque, meu senhor, e Sarpanitu, minha senhora.”[1]

Entre o prólogo carregado de retórica e o epílogo estão as próprias leis. Elas assumem a forma de uma série de declarações do tipo “se isso… então isso…”. Essas leis de casos específicos abordam diversos temas sociais. Por exemplo, as seções 250–251 dizem o seguinte:

§ 250 Se um boi ferir fatalmente um homem enquanto passa pelas ruas, [então] isso não possui base de queixa contra o ocorrido.

§ 251 Se o boi de um homem é conhecido por ferir, e as autoridades do seu bairro na cidade o notificarem de que é um boi conhecido por ferir, mas ele não amortece (?) os chifres ou controla seu boi, e esse boi ferir fatalmente o filho de uma pessoa livre, [então] ele [o dono] deverá pagar 30 shekels de prata.[2]

Essa maneira de formular pronunciamentos do tipo “se isso… então isso…” era um fenômeno difundido no Antigo Oriente Próximo. De fato, temos leis desse tipo na Bíblia sobre o tema dos bois que chifram, em Êxodo 21.28-29:

“Se um boi chifrar um homem ou uma mulher, causando-lhe a morte, o boi certamente será apedrejado, e a sua carne não será comida; mas o dono do boi será absolvido. Mas, se o boi já costumava chifrar, e o seu dono, tendo sido advertido, não o manteve preso, o boi que matar um homem ou uma mulher será apedrejado, e seu dono também será morto.”

Não apenas a gramática e o tema dessas leis em Êxodo e no Código de Hamurabi são semelhantes, mas também seu raciocínio é similar. O que deve ser feito ao proprietário de um boi que chifra depende, em ambos os casos, se o boi já era conhecido por chifrar. Parece que essa forma de raciocínio era amplamente reconhecida como justa. No entanto, apesar de suas semelhanças, esses conjuntos de leis serviram a propósitos diferentes em seus respectivos escritos. Êxodo as apresenta como requisitos da aliança de Deus com Israel, enquanto no Código de Hamurabi elas são destinadas a demonstrar o julgamento justo do rei, como parte de sua propaganda real.

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Por esse motivo, não devemos considerar o Código de Hamurabi como um código de leis no sentido moderno. “Código de leis” em inglês tem a conotação de uma coleção sistemática das regras de uma sociedade, destinadas a governar essa sociedade por meio de sua prática jurídica. A redação das leis importa, e elas são citadas como decisões autoritativas em procedimentos legais. No entanto, o Código de Hamurabi não é uma coleção sistemática, e não temos evidências de que essas eram as regras da sociedade babilônica ou que tinham um papel governante. Na verdade, existiam outros textos legislativos na sociedade babilônica e tais textos (ou suas regras) são ocasionalmente citados em documentos cotidianos da prática jurídica.

As leis de Hamurabi têm um uso distinto. Elas parecem ter sido mais adequadas entre os estudantes escribas e os antigos estudiosos que promoveram a literatura mesopotâmica. Elas representam os primórdios da especulação erudita sobre a justiça, que foram utilizadas na retórica real do Rei Hamurabi. É difícil saber quem lia o Código de Hamurabi além dos escribas. O monumento tem 225 cm de altura e a inscrição é feita em um texto arcaico, que não era de uso cotidiano pelos escribas e certamente não era conhecido pela maioria das pessoas. Parece provável que o texto no monumento não fosse acessível à população em geral. Em vez disso, devemos ver o monumento e seu texto funcionando, não como legislação, mas como propaganda.

Há uma representação em relevo na parte superior frontal da estela que ilustra particularmente essa propaganda: Hamurabi (à esquerda) é retratado em pé diante de Samash (à direita), o deus da justiça, que está sentado e estende uma vara e um anel em direção ao rei. A extensão da vara e do anel a Hamurabi indica a seleção dos deuses dele como seu agente humano para a ordem adequada da justiça. Essa representação é uma poderosa sanção da reivindicação do rei de ser um governante justo.

A retórica de Hamurabi foi bem-sucedida. Logo após a composição e instalação das estelas na Mesopotâmia, as leis de Hamurabi começaram a ser copiadas pelos escribas mesopotâmicos e usadas como parte do currículo dos estudantes. Essa prática continuou por mais de mil anos. O Código de Hamurabi foi assim incorporado ao cânone da literatura tradicional da Mesopotâmia, e a memória da persona de Hamurabi manteve-se viva, pelo menos entre os letrados. Hoje, o Código de Hamurabi está ao lado do Épico de Gilgamesh como uma das composições mesopotâmicas antigas mais famosas. Tributos modernos a Hamurabi atestam sua importância na jurisprudência moderna: há réplicas da estela na Sede das Nações Unidas, em Nova York, e no Palácio da Paz, em Haia, que abriga a Corte Internacional de Justiça.

O Código de Hamurabi se diferencia das leis dadas a Israel por sua audiência limitada e propósitos políticos. O legado mais óbvio (e pretendido) do código cimentou Hamurabi na história. Em contraste, a Torá estabeleceu um sistema de vida único para Israel. Embora compartilhem áreas de preocupação formadas por seu contexto antigo, a ordem social estabelecida na aliança e na lei de Israel está firmemente fundamentada na autorrevelação de Yahweh na criação, seu resgate de Israel do Egito e sua palavra dada a Moisés, não na sabedoria dos reis e estudiosos do Antigo Oriente Próximo. Deus instrui seu povo a levar suas palavras ao coração. Eles devem ensiná-las diligentemente a seus filhos, falar sobre elas de manhã até à noite. Eles devem atar as palavras da aliança em suas cabeças e mãos e escrevê-las nos seus umbrais e portas como um lembrete constante de que vivem em uma relação com o Deus da justiça (Dt 6.4-9). A instrução de Deus não é apenas para que algum grupo de elite de estudiosos a estudem e a copiem, mas para que todo o povo a conheça e a obedeça.


[1] Martha T. Roth, Law Collections from Mesopotamia and Asia Minor, 2 ed. (Atlanta: Scholars Press, 1997), 134-135.

[2] Roth, Law Collections, 128, com algumas modificações.


Texto original: The 'Law Code' of Hammurabi. Tyndale House Cambridge. Traduzido e publicado no site Cruciforme com permissão.
Caleb Howard é Pesquisador Associado em Antigo Testamento e Antigo Oriente Próximo na Tyndale House, Editor: Tyndale Bulletin

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