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Martinho Lutero (1483-1546)

[Caveat lector[1]: a primeira parte do título é um tanto quanto grandiosa para o que vem a seguir. Além disso, este texto trata da relação entre tecnologia e religião, mais especificamente, da relação entre tecnologia e cristianismo protestante. Isso deve limitar o público, mas suspeito que haja algo que interesse a maioria dos leitores. Por fim, temos adiante grandes generalizações. Continuemos.]

O ano de 2017 marcou o 500o aniversário do início da Reforma Protestante. A data tradicional que demarca o início da Reforma é 31 de outubro de 1517. Foi nesse dia, na véspera do dia de Todos os Santos, que Martinho Lutero fixou suas famosas Noventa e Cinco Teses na porta de uma igreja em Wittenberg. É razoável dizer que ninguém presente na ocasião, incluindo Lutero, teve qualquer ideia da magnitude do que estava por vir.

Por conta do aniversário da Reforma, você pode encontrar uma série de novos livros sobre Lutero, a(s) Reforma(s) e suas consequências. Você pode topar com um conjunto de Playmobil comemorativo de Martinho Lutero. Você pode até ficar sabendo de uma igreja em Wittenberg que utilizou um robô chamado… veja só… BlessU-2[2] para administrar bênçãos e versículos bíblicos aos visitantes (de forma gratuita, Lutero ficaria feliz em saber).

Depois, naturalmente, existem os ensaios e artigos em periódicos e websites populares e, inevitavelmente, perspectivas inteligentes que ligam Lutero a eventos contemporâneos. Considere, por exemplo, esta passagem em Foreign Policy argumentando que Lutero era o Donald Trump de 1517. O subtítulo prossegue dizendo que, “se o líder da reforma pudesse ter tuitado suas 95 teses, ele o teria feito”. Eu retornarei a este subtítulo em um instante, mas, sejamos francos, a comparação é, em última análise, um absurdo. Sim, há alguns paralelos muito superficiais que alguém poderia traçar, mas mesmo o autor do artigo compreende sua superficialidade. Ao longo do ensaio, ele volta atrás e qualifica suas afirmações. “Mas, no fim das contas, Lutero era um homem de consciência”, ele admite, e isto mina toda a argumentação.

Voltando, porém, à declaração sobre Lutero tuitar as 95 teses, esta talvez seja a afirmação mais plausível em todo o texto, mas, estranhamente, o autor não elabora mais sobre esse ponto. Eu digo que essa afirmação é plausível não somente porque as teses são declarações relativamente curtas — aproximadamente metade delas ou mais poderiam realmente ser tuitadas (pelo menos em sua tradução em inglês) —, e pode-se dizer que elas viralizaram em sua época, mas também porque ela opera com base em um mito influente que continua a informar como muitos protestantes veem a tecnologia.

O mito, brevemente exposto em termos intencionalmente anacrônicos, transcorre da seguinte maneira. O sucesso de Martinho Lutero se deveu a sua adoção de uma mídia tecnológica de vanguarda, a imprensa mecânica. Embora a Igreja Católica tenha reagido com um pânico moral acerca das consequências religiosas e sociais do acesso fácil à informação e sua incapacidade para controlá-la, Lutero e seus seguidores compreenderam que a informação queria ser livre e que as instituições precisavam ser fragmentadas. E a história testemunha a atitude justa de Lutero para com novas tecnologias.

Ao chamar esta história de mito, não quero sugerir que ela seja totalmente falsa. Embora o relato completo seja mais complexo, ainda assim é verdade que Lutero realmente adotou a imprensa e aparentemente entendeu seu poder. Além disso, sob os auspícios de Lutero, Wittenberg, outrora uma cidade universitária sem qualquer notoriedade, se tornou um dos principais centros de imprensa na Europa. Um bom relato dessas questões pode ser encontrado na obra Brand Luther[3], de Andrew Pettegree. “Depois de Lutero, a comunicação impressa e pública nunca mais seria a mesma novamente”, conclui corretamente Pettegree. E provavelmente é seguro também concluir que, sem a imprensa, a Reforma não teria acontecido.

Em vez disso, uso a palavra mito a fim de sinalizar uma história, particularmente uma história das origens, que possui um papel fortemente explanatório e normativo na vida de uma tradição ou comunidade. É nesse sentido que podemos falar do Mito Tecnológico de Lutero.

O problema com esse mito é simples: ele sanciona, até mesmo encoraja, uma adoção acrítica e irrefletida da tecnologia. Devo acrescentar que ela também aumenta a plausibilidade das reinvindicações do Complexo de Borg[4]: “igrejas* que não se adaptarem e adotarem as novas tecnologias midiáticas não irão sobreviver” etc.

Para aqueles que aderem ao mito, intencionalmente ou tacitamente, este não é realmente um problema porque o mito sustenta e é sustentado por certas premissas implícitas no que concerne a natureza da tecnologia, particularmente a tecnologia dos meios de comunicação: principalmente, que ela é fundamentalmente neutra. Eles imaginam que o novo meio de comunicação meramente propaga a mesma mensagem, só que de maneira mais eficiente. Raramente ocorre aos aderentes do mito que o novo meio de comunicação pode transformar a mensagem de maneira sutil, mas não sem consequência, e que a nova mídia pode roubar outra parte da mensagem (ou efeito), e que isso pode reconfigurar a natureza da comunidade, as práticas devocionais e o conteúdo da fé de maneira que eles não previram.

Vamos retornar a Lutero por um momento e dar uma olhada de perto na relação entre imprensa e protestantismo.

Em The Reformation: A History[5], o historiador de Oxford Diarmaid MacCulloch faz algumas observações instrutivas sobre imprensa. O que é mais notável na discussão de MacCulloch é que ele lida com os efeitos preparatórios da imprensa nos anos que antecederam 1517. Citando o historiador Bernard Cottret, por exemplo, MacCulloch fala que “o aumento de disponibilidade de bíblias [na metade do século antes de 1517] criou a Reforma e não o contrário”. Essa é uma tese que certamente surpreenderá muitos protestantes hoje, se eles ainda existirem. (Em breve falo mais sobre essa afirmação aparentemente absurda.)

Um pouco mais adiante, MacCulloch corretamente observa que o “efeito da imprensa foi mais profundo do que simplesmente tornar mais livros disponíveis de modo mais rápido”. Por um lado, isto “afetou as premissas da Europa Ocidental acerca do conhecimento e da originalidade de pensamento”. A cultura manuscrita é “consciente da fragilidade do conhecimento e da necessidade de preservá-lo”, promovendo “uma atitude que mais retém o conhecimento do que o espalha”. A cultura manuscrita é, então, cautelosa, conservadora e pessimista. Por outro lado, a propensão para a decadência é “muito menos óbvia nos meios impressos: o otimismo tende a ser o estado de espírito, ao invés do pessimismo”. (Ponto em que MacCulloch cita o trabalho pioneiro de Elizabeth Eisenstein.) Em outras palavras, a imprensa promoveu um espírito cultural mais ousado que conduziu ao surgimento de um movimento revolucionário de reforma.

Por fim, a imprensa já havia tornado possível que a leitura fosse “uma parte mais proeminente da religião para o laicato”. Novamente, MacCulloch não está falando das consequências da Reforma; ele está tratando do meio século ou mais que levou ao rompimento de Lutero com Roma. Onde a leitura se tornou um aspecto mais proeminente da devoção pessoal, emergiu “uma devoção mais introspectiva e personalizada”, ou seja, anacronicamente, uma devoção mais caracteristicamente protestante. “Para alguém que realmente gostava de ler”, acrescenta MacCulloch, “a religião pode retirar-se da esfera do ritual público para o mundo da mente e da imaginação.”

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“Assim”, MacCulloch conclui, “sem qualquer sinal de desvio doutrinário, um novo estilo de devoção surgiu naquela porção cada vez maior da sociedade que valorizava a aprendizagem obtida dos livros tanto para o lucro quanto para o prazer”. Essa porção cada vez maior da sociedade “formaria um público pronto para a mensagem protestante, com seu desprezo por grande parte do antigo ritual de culto e devoção”.

Tudo isso, então, é para dizer que o protestantismo é tanto um efeito da tecnologia da imprensa quanto um movimento que se aproveitou da nova tecnologia para espalhar sua mensagem. (Eu suspeito, como um aparte, que esta história, que é obviamente mais complicada do que o esboço que eu estou fornecendo aqui, seria um elemento importante no projeto de Alan Jacobs de se desvendar a história tecnológica da modernidade.[6])

Mais alguns pensamentos antes de encerrarmos, tenha paciência comigo. Vamos considerar a ideia de “um novo estilo de devoção”, que precedeu e sustentou importantes desenvolvimentos doutrinais e eclesiásticos. Esta frase é útil na medida em que combina perfeitamente com a velha máxima: Lex orandi, lex credendi (a lei da oração é a crença na lei). A ideia é de que, à medida que a igreja adora, ela também crê, ou que, em certo sentido, o culto precede e constitui a crença. Em outras palavras, podemos dizer que a adoração da igreja constitui as estruturas de plausibilidade de sua fé. Falar em um “novo estilo de devoção”, então, é falar de um conjunto de práticas de adoração, tanto em sua forma comunal quanto em sua forma privada. Essas novas práticas são, portanto, uma nova forma de adoração que pode potencialmente reconfigurar a fé da igreja. Isto é importante para a nossa discussão na medida em que as práticas de culto possuem uma dimensão material/tecnológica. Conclusão: mudanças nos artefatos materiais/tecnológicos e nas condições de culto potencialmente reestruturam a forma e práticas de culto, que, por sua vez, podem potencialmente reconfigurar aquilo em que se acredita.

Naturalmente, não se trata apenas de como a imprensa prepara o terreno para o protestantismo, é também uma questão de como o protestantismo evolui em conjunto com a imprensa. O protestantismo é uma religião do livro. Sua devoção é centrada no livro; no texto sagrado, claro, mas também na maré de livros que se tornaram auxiliares da espiritualidade, deslocando ícones, crucifixos, estátuas, relíquias, e a panóplia de gestos rituais que compunham o corpo no serviço de formação espiritual católico. O pastor-erudito se tornou o modelo de ministro. A fé se tornou uma questão mais individual e mais privada. No geral, assume um aspecto mais intelectualista. Sua devoção é centrada mais na crença correta do que na veneração. Seu ensino é tradicionalmente catequético etc.

Isto nos traz novamente ao mito tecnológico de Lutero e se ainda há ou não protestantes remanescentes. O mito é enganoso porque simplifica uma história mais complexa, e essa simplificação obscurece o grau em que a nova tecnologia midiática não é neutra, mais sim formativa.

Henry Jenkins fez uma observação para a qual eu retorno frequentemente: “Eu normalmente digo aos estudantes que a história de novos meios de comunicação tem sido remodelada repetidamente por quatro grupos inovadores importantes — evangelistas, pornógrafos, publicitários e políticos, cada qual constantemente buscando novas formas de interagir com seu público”.

Os evangelistas aos quais Jenkins se refere são os cristãos evangélicos nos Estados Unidos, que são descendentes de Lutero e seus companheiros reformadores. Jenkins está certo. Evangélicos têm sido, via de regra, rápidos ao adotar e adaptar novas tecnologias de mídia para espalhar sua mensagem. Ao fazer isso, entretanto, eles também foram transformados pelas ferramentas que empregaram, desde o rádio até a televisão e a internet. A razão para isto é simples: novos estilos de devoção que surgem de novos meios de comunicação geram novas premissas sobre comunidade, autoridade e carisma (no sentido teológico e sociológico), e eles alteram o status e o conteúdo da crença.

E por essa razão os protestantes tradicionais são uma espécie em extinção. Mesmo dentro de ramos teologicamente conservadores do protestantismo americano, é raro encontrar a prática de formas tradicionais de devoção protestante. Naturalmente, isto não necessariamente deveria ser lido como um lamento. Ao invés disso, trata-se de um argumento sobre as consequências da mudança tecnológica e um incentivo para pensar mais cuidadosamente sobre a adoção e implementação de novas tecnologias.

Traduzido por Luiz Adriano Borges e revisado por Jonathan Silveira.

Texto original: “The Technological Origins of Protestantism, or the Martin Luther Tech Myth”. The Frailest Thing.


[1] Do latim: alerta ao leitor

[2] Em inglês, um jogo de palavras, bless you too, “Deus te abençoe também”.

[3] “Tipo Lutero”, em uma tradução livre, obra sem tradução para o português. “Tipo” faz referência à criação de uma nova fonte para impressão de livros facilmente reconhecida.

[4] Como o próprio autor define em outro post, o complexo de Borg faz referência a uma raça alienígena cibernética no universo de Star Trek que anuncia à suas vítimas que qualquer resistência é fútil. O autor com isso quer inferir que a tecnologia seria algo contra a qual não podemos lutar. Em https://thefrailestthing.com/2013/03/01/borg-complex-a-primer/ *Hesito em acrescentar mesquitas e sinagogas apenas porque não me considero suficientemente informado para fazê-lo e também porque obviamente não se enquadram nas tradições moldadas pela vida e obra de Martinho Lutero. Leitores judeus e muçulmanos, por favor, sintam-se à vontade para adicionar suas perspectivas sobre as atitudes em relação à tecnologia em suas comunidades nos comentários abaixo N. A.].

[5] A Reforma: uma história, sem tradução para o português.

[6] Alan Jacobs publica seus textos aqui: http://text-patterns.thenewatlantis.com/

Michael Sacasas é diretor do Center for Study of Ethics and Technology. Obteve seu MA em estudos teológicos no Reformed Theological Seminary e está concluindo seu Ph.D. em Textos e Tecnologia na University of Central Florida.

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