O caminhar como disciplina espiritual | Luiz Adriano Borges

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"O homem que passeia", de Jiro Taniguchi

Um fato é que o ser humano foi feito para caminhar. Por séculos cobrimos vastas distâncias a pé. A invenção da bicicleta foi um primeiro movimento na aceleração que culminou nos carros, depois nos aviões, e que nos fizeram abandonar o ritmo lento das caminhadas e uma total readequação de nossas cidades.

Não me entenda mal, não irei defender uma desinvenção dos automóveis, somente fazer um breve elogio do ato de caminhar enquanto disciplina espiritual.

Caminhar sempre foi algo que fiz bastante na vida, gostava muito. Mas, com a idade adulta, essa prática foi deixada de lado, sendo substituída pela bicicleta ou até mesmo pelo carro.

Agora, em meio à pandemia, ficando bastante tempo em casa, redescobri o prazer de caminhar, de assistir a um pôr do sol. Mas o ato assumiu um peso mais existencial-reflexivo: uso estes momentos para clarear a mente, para relaxar, para pensar ou simplesmente contemplar. Algumas vezes saio sem objetivo, sem expectativa, a ideia é simplesmente andar. Pode ser sozinho, com minha esposa ou com meus filhos, de qualquer forma, sempre é agradável.

Se estou atento, acabo me surpreendendo. É como se o mundo estivesse esperando a gente encontrar conexões (o que a gente às vezes chama de coincidência) e acabo percebendo como teologia, cultura, artes e o até o universo nerd falam sobre este ato de caminhar. Para mim, é claramente a voz de Deus me chamando para viver uma vida mais conectada com a realidade.

Foi dessa forma, já com a alegria de caminhar retomada em minha vida, que tropecei num precioso mangá chamado “O homem que passeia” de Jiro Taniguchi. Que obra, que sensibilidade! Se você espera heróis, vilões, complôs, tesouros, lutas, armas de fogo, este não é seu quadrinho. Esta obra beira a história em quadrinhos e a poesia.

O próprio Taniguchi nos convida em entrevista no final do mangá:

“Quando tiver um tempo livre, procure sair para andar sem rumo. Assim, imediatamente, sem nos darmos conta, o tempo começa a passar mais lentamente. Aqui ou ali, encontramos coisas esquecidas, sentimos prazer em observar a passagem das nuvens e nos sentimentos cada vez mais tranquilos. A pessoa que está presente, ali, na caminhada, é o mais próximo do que ela é de verdade” (O homem que passeia, p. 239)

É isso que observamos no mangá: precisamos olhar atentamente para cada quadro, sentir a atmosfera do local, a presença de detalhes inusitados, mas preciosos em sua cotidianidade. Em um Japão altamente tecnológico, andar a pé, livre, é um exercício de quebra com a aceleração do dia a dia. No mundo globalizado há uma compressão do espaço-tempo, que ora nos favorece com produtos tecnológicos e facilidades de viajar, ora nos deixa tontos e fatigados. Precisamos desacelerar. O ritmo da caminhada nos força a observar com mais calma nosso entorno, perceber coisas que não conseguiríamos ver se estivéssemos de carro.

Como também nos diz Taniguchi:

“Quando caminhamos devagar, podemos descobrir coisas fugidias. São, claro, coisas ínfimas, acontecimentos pequenos que nos enriquecem e, se me deixar levar por meu entusiasmo, diria até que às vezes nos deparamos com coisas que nos fazem sentir plenamente o prazer da vida. Podemos experimentar sentimentos novos com a visão das plantas ou das pedras ao longo de um caminho. O passeio possibilita sensações novas, sentimentos novos. Pode até proporcionar os mesmos prazeres de uma pequena viagem (O homem que passeia, p. 235).

Alguns dizem que o caminhar moderno foi criado pelos franceses. O flâneur seria aquela figura parisiense do século XIX que caminhava sem intenções definidas que não o de clarear a mente. Marcel Proust e Charles Baudelaire seriam os grandes exemplares deste novo (?) tipo. Eles também eram críticos da modernidade e de suas estruturas tecnológicas. Portanto, apontavam os problemas urbanos e declaravam que as cidades deveriam ser mais humanas. (Talvez possamos nos inspirar neles, uma vez que nossas cidades são ainda menos convidativas ao pedestre do que a Paris do século XIX.)

“O homem que passeia”, de Jiro Taniguchi

Mas claro que o ato de caminhar não foi inventado no século XIX. (Talvez o caminhar sem objetivos utilitaristas, sim.) Na tradição cristã, temos muitos bons exemplos de andanças.

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Não irei comentar todas as passagens bíblicas em que aparece o caminhar, mas cabe ressaltar algumas. Já no Antigo Testamento encontramos diversas passagens sobre o andar, talvez a mais forte seja a de que devemos ensinar os mandamentos aos nossos filhos, falando deles sentados em vossas casas e andando pelo caminho (Dt 11.19). Sabemos o tanto que os israelitas tiveram que caminhar em sua peregrinação pelo deserto em busca da terra prometida.

No Novo Testamento também temos inúmeros exemplos do caminhar. De fato, os próprios discípulos eram chamados os “do caminho”, aqueles que caminhavam e pregavam. A famosa passagem do “Ide” em Marcos 16.15-16 seria melhor traduzida como “indo por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”. Isso sinaliza uma ideia de movimento, de caminhada.

Sem exaurir todas as possibilidades, me vem à mente uma das passagens que mais me toca: os discípulos no caminho de Emaús. Lucas (24.13-35) nos conta que dois discípulos iam pelo caminho, conversando entristecidos sobre a morte de Jesus, sem saber que se aproximava o próprio ressurreto e entabularam conversa com este “desconhecido”. Jesus, caminhando, foi explicando que tudo aconteceu como estava predito nas Escrituras e lhes falando sobre a Palavra. Os corações dos discípulos ficaram em chamas!

Avançando de maneira rápida para o futuro (desculpem!), mais contemporaneamente um exemplo me chama bastante atenção: a conversão de C. S. Lewis se deu após uma conversa ao andar pelo caminho chamado “Addison’s Walk” pelo campus do Magdalen College da Universidade de Oxford com outro apaixonado pelas caminhadas, J. R. R. Tolkien. (O Senhor dos Anéis é, em parte, a descrição de uma longa caminhada, desde o Condado até a Montanha da Perdição.) Não subestimemos o poder de uma caminhada!

Addison’s Walk, Magdalen College, Universidade de Oxford

Precisamos resgatar o caminhar enquanto uma disciplina espiritual! Na tradição cristã, a peregrinação é bastante conhecida, mas o simples caminhar na cidade não tem tanta ressonância na teologia. Isso precisa ser mudado. É de sabedoria prática o fato de que caminhar após trabalhos exaustivos ajuda a espairecer. As nossas mentes hiperconectadas o dia todo em tecnologia clamam por pausas e o ato de caminhar pode trazer essa paz de espírito ao entrarmos em modo mais lento e contemplarmos mesmo as coisas mais simples do cotidiano. É um chamado para o descanso, mesmo em meio à correria da semana. Não precisa ter objetivo e meta, simplesmente andar na quadra já basta.

E fazer isso intencionalmente, procurando apreciar a boa criação de Deus e a criatividade humana (ou falta de), orando e refletindo, pode transformar nossas vidas.

O pastor estadunidense Mark Buchanan escreveu um livro que merece ser traduzido. Em “God walk: moving at the speed of your soul” (algo como: “O andar de Deus: movendo-se à velocidade de sua alma”), Buchanan aponta que a prática cristã de caminhar nos livra de uma visão gnóstica, colocando lado a lado a importância da alma e do corpo. O método evangelístico de Jesus envolvia longas caminhadas. Assim, o livro explora o andar enquanto formação espiritual, como cura, como exercício, como oração, como peregrinação, como amizade e como estímulo da atenção.

Assim como eu tenho redescoberto o prazer de fazer uma caminhada sem maiores objetivos, convido você, leitor, a fazer desta prática uma disciplina espiritual, procurando fazer desse momento intencionalmente um tempo especial de comunhão com Deus, com a criação divina e humana e com outros também. O caminhar nos tira da aceleração que os ciberuniversos nos impõem e nos coloca um pouco mais próximos do tempo de Deus; quem sabe agindo assim não traremos um pouco mais de paz e reais conexões para nossas vidas cotidianas?

Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)".

7 Comments

  1. Ótima reflexão. Amo caminhar. E a relação com a evangelização é espontãnea. Lembrei também de Aristóteles e a sua escola peripatética.

  2. Jessé Salvino Cardoso disse:

    A reflexão veio de forma clara e pontual adequar ao momento da pandemia , considerando que faço caminhada quando vou ao trabalho e volto.

  3. Jessé Salvino Cardoso disse:

    Boa exposição, gostei da reflexão acerca da caminhada em dois tempos: em tempos bíblicos, em tempos atuais

  4. Jessé Salvino Cardoso disse:

    Reflexão, o autor analisou a questão ironicamente de forma compreensível o processo da caminhada sempre foi bíblico apesar de forma lógica

  5. Layana disse:

    É temos que sair desse ritmo mais que acelerado , esses dias estava refletindo em uma canção do palankim nela fala sobre desacelerar e ser simples parece até estranho mas é tão bom ficar no ritmo do tempo de Deus! que o Senhor nos ajude a caminhar pra o lugar certo!

  6. Samuel Mota disse:

    Este texto veio em um tempo muito oportuno para mim. Logo no momento em que estou começando a perceber quão saudável é (integralmente falando) o ato de caminhar. Estava e estou necessitando muito disto.

  7. Jessé Salvino Cardoso disse:

    É um bom texto fundamentado em versículos bíblicos e a lógica fundamental do Cristianismo Reformado , prezado professor Luiz gostaria de saber sua bibliografia básica para esse assunto. Normalmente é assim ampliado a minha formação como cristão.

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