C. S. Lewis e o argumento da razão | Jay W. Richards

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C. S. Lewis (1898-1963)

Nota do editor: Em celebração ao novo filme documentárioC. S. Lewis and the Intelligent Design” (“C. S. Lewis e o Design inteligente”, em português), e celebrando a vida de Lewis esse mês, com 50 anos desde sua morte, estamos publicando excertos do livro “The Magician’s Twin: C. S.Lewis on Science, Scientism, and Society” (“O gêmeo do mago: as opiniões de C. S. Lewis sobre a ciência, o cientificismo e a sociedade”, em português), do diretor associado da CSC (“Centro de Ciência e Cultura”, sigla em inglês), Dr. John West. O seguinte texto foi retirado do capítulo “Dominando o Vernacular”, do Dr. Jay Richard.

Para percebermos a genialidade de Lewis, eu gostaria de focar em um de seus argumentos mais conhecidos – muitas vezes chamado de “Argumento da razão”. O propósito desse argumento é mostrar que naturalismo e razão são incompatíveis e que acreditar no naturalismo é autodestrutivo. Isto é, se o naturalismo for verdadeiro, não podemos então confiar em nossa capacidade de racionalizar, e então não poderemos confiar nos argumentos a favor do naturalismo.

O filósofo Victor Reppert descreve o argumento (e muitas de suas versões se desenvolveram com base nos escritos originais de Lewis) “começando com a insistência de que certas coisas hão de ser verdadeiras sobre nós humanos a fim de garantir a solidez dos tipos de reivindicações que fazemos em nome do nosso raciocínio.[i]” Este argumento ganhou atenção quando Lewis o propôs na primeira edição de seu livro Milagres[ii]. A filósofa Elizabeth Anscombe criticou a formulação original do argumento, levando Lewis a corrigi-la na edição subsequente de Milagres. E é essa edição revisada de seu argumento que milhões de leitores têm encontrado atualmente. (Ele também discute o argumento em alguns artigos menos conhecidos publicados em Christian Reflections e God in the Dock).

Lewis lecionava filosofia em seu primeiro ano como professor em Oxford, mas ele não era um filósofo profissional. Além disso, ele construiu o argumento da razão em um pequeno livro escrito para o consumo do público. E mesmo assim, o argumento tem sido notavelmente resistente e frutífero. A mesma fonte filosófica ainda desempenha um papel importante na filosofia contemporânea. A forma mais rigorosa do argumento é o “Argumento Evolucionário Contra o Naturalismo”, desenvolvido e aperfeiçoado pelo filósofo Alvin Plantinga.

O Argumento Básico

Milagres não é uma defesa histórica de que milagres realmente aconteceram, mas é uma defesa preliminar de suas possibilidades e propriedades. Um de seus argumentos centrais é que não podemos determinar a probabilidade antecedente de um milagre sem primeiro decidir o que exatamente é a realidade. Se você acredita que o transcendente existe, por exemplo, você avaliará a evidência de um milagre de um modo diferente do que se fosse um naturalista, o qual acredita que o sistema fechado e entrelaçado da natureza é tudo que existe. Por causa disso, Lewis passa um bom tempo no livro Milagres avaliando as reivindicações concorrentes do que ele chama de sobrenaturalismo e naturalismo.

É dentro deste contexto que Lewis assume a chamada “Dificuldade Primordial do Naturalismo” (“Cardinal Difficulty of Naturalism”, em inglês). Os naturalistas contemporâneos a Lewis eram muito parecidos com os naturalistas dos dias atuais. Eles normalmente acreditam que a sua filosofia é o resultado de um raciocínio profundo e de evidências sólidas, e presumem também que os não-naturalistas são ignorantes e irracionais. Lewis argumenta exatamente o contrário: que o naturalismo não é compatível com o conhecimento e com a confiabilidade da razão.

Naturalistas, assim como todo o resto do mundo, geralmente confiam que sua razão os guiará à verdade. Todos nós subestimamos o fato de que podemos aprender sobre o mundo à nossa volta através de nossos sentidos. Nós experimentamos o calor, o som, as cores e outras pessoas. Nós sintetizamos e tomamos conhecimento dessas coisas dentro de nossas mentes. Dessas experiências, nós fazemos deduções sobre o mundo: “Nós deduzimos a evolução a partir dos fósseis; inferimos a existência de nossos próprios cérebros a partir do que achamos dentro de crânios de outras criaturas parecidas conosco dentro da sala de dissecação”. [iii]

Mas o que é uma dedução? Claramente não é um objeto dos sentidos, como um sapo-boi ou um incêndio florestal. Podemos afirmar que uma dedução é uma estrutura lógica. Nós vemos fósseis de dinossauros com nossos olhos, mas deduzimos sua pré-existência com nossas mentes. Nós entendemos que se todos os homens são mortais e Platão é um homem, então Platão é mortal. Quando consideramos esse argumento, não estamos observando o mundo à nossa volta. Estamos notando relações lógicas entre proposições que obteríamos em qualquer mundo possível. Proposições são alegações sobre certas situações, mas não são as situações em si. A proposição Colombo navegou pelo oceano azul traz um estado de coisas de uma situação ocorrida em algum momento em 1492. “Em 1942, Colombo navegou o oceano azul” é uma formulação em português de uma proposição verdadeira que afirma aquela situação específica.

Quando concluímos que Platão é mortal, estamos certos de que as proposições que formam a premissa são verdadeiras, consequentemente a conclusão será obrigatoriamente verdadeira. Se tais inferências cotidianas não forem possíveis e confiáveis, não poderemos adquirir conhecimento.

“Todo o conhecimento possível… depende da validade do raciocínio. Se o sentimento de certeza expresso por palavras como tem que ser, portanto e uma vez que é uma percepção real de como as coisas fora de nossas próprias mentes realmente ‘devem’ ser, ótimo. Mas, se essa certeza é simplesmente um sentimento dentro de nossas mentes e não uma compreensão genuína de realidades além delas – se a certeza representa simplesmente a maneira que nossas mentes por acaso funcionam – então não obteremos o conhecimento. Se o raciocínio humano não é válido, nenhuma ciência é verdadeira.[iv]

O naturalismo não contém tais ingredientes como a mente, proposições, percepções e relações lógicas; ele contém partículas elementares, forças atraentes, reações químicas, campos quânticos etc., em um sistema fechado e impessoal de causa e efeito. E todas essas causas são materiais e não-racionais. O Naturalismo não tolera entidades imateriais como pessoas, ou seja, com ideias e convicções; pessoas com o poder de deduzir partindo de uma crença proposicional adequada até chegar a uma conclusão válida, podendo então guiar comportamentos e causar mudanças no mundo. Se o naturalismo é verdadeiro, então todas essas “mudanças” ou não existem ou têm uma causa física não-racional. E nós não temos razões para achar que essas causas nos forneceriam uma maneira correta de deduzir de uma premissa até sua conclusão (assim como Lewis afirma).

Mas os naturalistas normalmente confiam nas conclusões da ciência natural e tipicamente acreditam que chegaram às suas convicções por seguir a evidência e a doce razão até suas inevitáveis conclusões. Entretanto, se Lewis estiver certo, então o naturalismo como uma crença se autorrefuta. Considere qualquer argumento pró-naturalismo. Se este argumento é oferecido de maneira honesta, ele irá pressupor que as pessoas têm convicções e capacidades racionais que podem afetar suas ações porque podem perceber a validade do argumento (ou a falta dela) e agir em conformidade com ele.

Até mesmo naturalistas eminentes já admitiram este dilema. Lewis cita o famoso naturalista J. B. S. Haldane para confirmar isto. “Se meus processos mentais são determinados unicamente pelo movimento dos átomos em meu cérebro”, afirma Haldane, “Eu não tenho motivo para supor que minhas convicções são verdadeiras… E, consequentemente, não há motivo para supor que meu cérebro é composto por átomos”.[v] (A referência de Haldane é a respeito do materialismo – a ideia de que os constituintes fundamentais da realidade são pedaços de matéria. Pode-se ser naturalista, mas acreditar que a essência, o natural, é constituído de algo diferente da matéria. Para nosso propósito aqui, no entanto, trataremos o materialismo e o naturalismo como sinônimos.)

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De fato, até mesmo Darwin admitiu tal preocupação:

“Comigo a dúvida horrível que sempre surge é se as convicções da mente do homem, as quais têm sido desenvolvidas da mente de animais inferiores, são de qualquer valor ou dignas de confiança. Poderia qualquer um confiar nas convicções da mente de um macaco, se houvesse qualquer convicção em tal mente?”[vi]

A “Dificuldade Primordial do Naturalismo” não depende de um pressuposto teísta contestável. Ela surge da falta de ferramentas causais no conjunto de ferramentas naturalistas. Estritamente falando, o argumento de Lewis não prova o naturalismo como falso, mas mostra que o naturalismo não pode ser aceito racionalmente. Novamente, se o naturalismo fosse verdadeiro, então as convicções, os propósitos e as deduções não existiriam ou não teriam a capacidade óbvia de transmitir a verdade e não nos dariam um real conhecimento do mundo. Isso também se aplicaria a uma crença naturalista. Se o naturalismo fosse verdadeiro e se acreditássemos nele, careceríamos da capacidade racional e das faculdades mentais condutoras de verdade para acreditarmos consistentemente que ele é verdadeiro, e teríamos uma capacidade ainda menor de conhecê-lo.

Se, em contraste, a realidade fundamental é a mente ou é a razão, então esperaríamos que nosso raciocínio fosse ao menos confiável às vezes a respeito dos assuntos que ele foi projetado para compreender.

O naturalista não familiarizado com este argumento invariavelmente invoca Darwin neste ponto. Naturalistas tendem a acreditar que as considerações de Darwin sobre a evolução da vida são grosseiramente corretas. E eles acham que a evidência estabelece isso. De acordo com a teoria darwiniana, as adaptações dos seres viventes ao seu ambiente não são o resultado de um design proposital, mas sim do resultado de um processo cego de seleção natural que age em variações aleatórias dentro de uma população. O processo de Seleção Natural preserva e então propaga essas variações, habilitando alguns organismos com uma vantagem de sobrevivência e eliminando os que não possuem essa vantagem. Embora existam outros fatores na evolução – derivação genética, congestionamento de populações e etc., – o processo de seleção e variação aleatória é o que mais cria essas adaptações de acordo com a teoria darwiniana. Este processo não é meramente ao acaso e aleatório; é um processo cego e inconsciente. Não há nenhum agente escolhendo a variação, como em mutações genéticas, vantagens de sobrevivência que se confere a um organismo, ou nenhuma outra razão.

Se essa história for grosseiramente correta, então aparenta-se ter uma vantagem de sobrevivência ao formar-se novas convicções. Com certeza nossos antepassados viveriam muito melhor no mundo se eles pudessem acreditar que, por exemplo, o tigre dente-de-sabre é um predador perigoso. Se eles concluíssem que deveriam então fugir de predadores perigosos, melhor ainda. Mas, em contrapartida, aqueles seres humanos primitivos com convicções erradas – que não tinham uma percepção correta do tigre dente-de-sabre e achavam que este era um gênio que lhes concederia três desejos se acariciado – tenderiam a ser exterminados do conjunto genético seguinte. Não seria então o processo darwiniano uma seleção por faculdades racionais confiáveis e, assim, nos dando essa capacidade de produzir opiniões verdadeiras?

Lewis argumenta que esse processo – que preserva características de aprimoramento de sobrevivência – não é racional e, portanto, não pode se esperar que produza uma capacidade racional. Novamente, se o naturalismo fosse verdadeiro, então deveríamos esperar a existência de intelecto, agentes, escolhas e intenções. Se estes fatores existissem de fato, seriam com certeza um epifenômeno dos estados físicos. Mas vamos admitir sua existência e até mesmo nos permitir ao luxo naturalista de achar que nossas crenças podem guiar nosso comportamento. O naturalista então argumentaria que nossa razão e nossa capacidade de formar opiniões têm sido moldados pela seleção natural através das eras, e por isso podem ser confiáveis.

O problema é que existem milhões de diferentes crenças e opiniões. E poucas são as verdadeiras em termos de correspondência com a realidade, mas todas são compatíveis com os mesmos comportamentos. A seleção natural conceberia a seleção de comportamentos que aprimoram a sobrevivência, mas nunca uma ferramenta que seleciona apenas os comportamentos causados pelas opiniões corretas e destrói os outros comportamentos. Então se nossa capacidade de pensar surgiu da maneira como a maioria dos naturalistas supõe que surgiu, então não temos motivo para acreditar que essa capacidade é confiável para nos dar crenças verdadeiras. E isso se aplica também na crença de que o naturalismo é verdadeiro.

Esta argumentação não começou primeiramente com Lewis. Ela apareceu nas palestras Gifford, dadas pelo estadista britânico Arthur Balfour em 1914. Naquele tempo, as palestras de Balfour eram bem conhecidas. Elas foram reportadas individualmente em jornais e eventualmente foram publicadas no livro Theism and Humanism (“Teísmo e Humanismo”, em português), livro que Lewis credita como sendo um dos dez livros que mais o influenciaram.[vii] Mas é a argumentação de Lewis que continua a ser publicada – e lida – no século vinte e um.

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Notas finais:

 [i] Victor Reppert, A ideia perigosa de C. S. Lewis (em inglês)

[ii] Milagres foi publicado primeiramente em 1947. A edição revisada foi lançada em 1960. Veja, em inglês, C. S. Lewis, Miracles: A Preliminary Study (New York, Macmillan, 1960; first paperback edition, 1978)

[iii] Lewis, Milagres (1960), 14. (em inglês)

[iv] Ibid.

[v] Ibid., 15

[vi] Carta para William Graham, em baixo (3 de julho, 1881), em A vida e as cartas de Charles Darwin Incluindo um Capítulo Autobiográfico (em inglês) (Londres: John Murry, Albemarle Street, 1887), vol. 1, 315-316

[vii] O livro foi originalmente publicado em 1915. A edição mais recente foi publicada em 2ooo (Seattle: Inkling Books) e editada por Michal W. Perry. Lewis incluiu Teísmo e Humanismo na lista de os dez livros que “mais moldaram” a sua “atitude vocacional e… sua filosofia de vida”, publicada no O Século Cristão em 6 de Junho de 1962 (em inglês).

Traduzido por Stella Vaz e revisado por Jonathan Silveira.

Texto original aqui.

Jay W. Richards (Ph.D.) é professor pesquisador assistente na School of Business and Economics na Catholic University of America.

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