Cancelado: como a mentalidade oriental de honra e vergonha viajou para o Ocidente | Abdu Murray

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Nota do editor: 

Para saber mais, veja o livro Seeing Jesus from the East: A Fresh Look at History’s Most Influential Figure, de Ravi Zacharias e Abdu Murray (Zondervan, 2020).

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Cancelado. Nas primeiras semanas do lockdown decorrente do coronavírus, essa palavra era quase tão onipresente quanto a palavra inédito. Estreias de cinema, concertos e até mesmo temporadas esportivas inteiras – foram todos cancelados quando elaboramos uma estratégia para combater a disseminação do COVID-19.

Mas essa palavra – cancelado – carregou outra conotação em nosso léxico social nos últimos tempos. É usada quando cancelamos pessoas, não apenas eventos.

Foi-se a época em que opiniões divergentes – incluindo aquelas que desafiam costumes aprovados culturalmente – eram debatidas com fatos e argumentos sólidos. Agora, quando uma pessoa faz ou diz algo que está em conflito com as preferências culturais atuais, nós a cancelamos. Nós a bloqueamos com xingamentos, epítetos e ataques ad hominem. Se a pessoa é um músico, pedimos boicotes à sua música. Se ela é um atleta, temos prazer em queimar sua camisa e postar a fogueira nas mídias sociais. Agora, içamos os socialmente culpados para um pique para que todos vejam enquanto se contorcem, merecendo justamente o que recebem por terem ofendido o coletivo. Esteja avisado: não confrontaremos suas ideias; confrontaremos você e faremos você se envergonhar, sendo excluído da existência. Você será cancelado.

Cultura do cancelamento e cultura oriental

Sendo eu uma pessoa bicultural, vejo como esse fenômeno ocidental é muito oriental. Nasci e cresci nos Estados Unidos, mas minha herança e educação estão encharcadas no azeite da cultura do Oriente Médio. Historicamente, o Ocidente defendeu o direito do indivíduo de dizer, acreditar e agir como ele ou ela escolhe. Os méritos do discurso, crenças e ações dessa pessoa seriam debatidos, mesmo que o direito de defendê-las seja defendido.

No Oriente e no Oriente Médio (chamarei as duas regiões de “o Oriente”), o coletivo é primário. Cada pessoa no Oriente deve considerar o efeito que sua fala, crenças e ações têm sobre o coletivo. As culturas orientais são “culturas de honra e vergonha”. Os indivíduos falarão, agirão e acreditarão de maneiras que tragam honra a suas comunidades e evitem vergonha. A verdade é importante, mas deve ser varrida para debaixo do tapete se sua adoção (ou até mesmo o interesse por ela) traz vergonha. Agora, uma mistura de inocência/culpa e honra/vergonha percorre o Ocidente e o Oriente. No Ocidente, a individualidade e o paradigma da inocência/culpa têm sido dominantes, enquanto o paradigma coletivista de honra/vergonha tem sido recessivo. Mas, com o surgimento da cultura do cancelamento, o paradigma de honra/vergonha do engajamento social está se tornando cada vez mais dominante no Ocidente. A cultura do cancelamento dos nossos dias é a versão ocidental do século 21 do paradigma honra-vergonha oriental. Os orientais são melhores nessa questão apenas porque tiveram séculos de prática. Mas os ocidentais estão tentando recuperar o atraso.

Exemplos de cultura do cancelamento são abundantes. Um estudante do ensino médio foi aceito em Harvard, mas, por fim, sua aceitação foi revogada devido a mensagens inapropriadas que ele escreveu aos 16 anos. O aluno expressou pesar ao comentar que “vejo o mundo com olhos diferentes e fico envergonhado pelo garoto insignificante e irreverente representado nessas capturas de tela”. O comitê de admissões de Harvard votou para mantê-lo fora. Certamente, os comentários do aluno foram inapropriados nos termos mais fortes. Mesmo tendo se desculpado, ele foi “cancelado” por Harvard e, mais significativamente, por inúmeros outros no Twitter. A resposta do meme captou bem: “Estou prestes a terminar toda a carreira deste homem”.

Gostaria de saber se um destino semelhante aguarda os estudantes universitários que viajaram para Miami nas férias de primavera, apesar do ataque da pandemia do COVID-19. Os meios de comunicação identificaram alguns pelo nome. Os comentários imaturos e egoístas (por exemplo, “se eu pegar corona, peguei”) resultarão no “cancelamento” de futuros empregos a esses estudantes quando os empregadores os descobrirem?

Na cultura do cancelamento, um único erro é perpetuamente imperdoável, pois não se trata simplesmente de um ato de culpa. Em vez disso, o erro define a identidade do indivíduo, transformando-o em uma pessoa vergonhosa – alguém que pode ser “cancelado”. Como isso é oriental! Juliet November resumiu o que costumava ser as diferenças entre as culturas ocidentais e orientais: em uma estrutura ocidental, eu me sentiria culpada porque “fiz algo ruim”; numa estrutura de honra-vergonha oriental, eu seria culpada, porque “eu sou má” aos olhos da sociedade. Tornar-se mau significa que a redenção não surge corrigindo o erro. Um pedido de desculpas não é suficiente.

Jesus e a cultura do cancelamento

No Ocidente, às vezes vemos Jesus como bem-intencionado, mas agora principalmente irrelevante. O fato de o Ocidente moderno se parecer com a cultura antiga que Jesus habitava sugere que ele não saiu de moda. De fato, Jesus é tão relevante hoje como sempre. A história de um cego negado por seus pais e expulso por líderes religiosos fornece um exemplo pungente.

Em João 9, lemos que Jesus encontrou um jovem que “nasceu cego”. A pederneira que provocou um confronto entre Jesus e os fariseus foi que Jesus curou a visão do jovem, fazendo barro e aplicando-o aos olhos (Jesus “trabalhou” no sábado). Quando interrogados pelos fariseus, os pais do jovem estavam com tanto medo de admitir que Jesus o curou que eles fizeram os fariseus perguntarem ao filho. “Seus pais disseram isso por medo dos judeus, que já haviam combinado que, se alguém confessasse que Jesus era o Cristo, seria expulso da sinagoga” (João 9.22) – a maior vergonha pública de todas.

O filho deles – que agora vira pela primeira vez – não ficou socialmente intimidado. Ele enfrentou os fariseus e respondeu com franqueza (e sarcasticamente) que Jesus o curara. Incapazes de lidar com o desafio do público ao seu senso de honra, os fariseus deram o golpe de nocaute por vergonha comunitária expulsando o jovem da sinagoga. Isso definiria sua identidade. Em suma, os fariseus o cancelaram.

O radar de Jesus pela vergonha injustificada o levou a procurar o jovem. Com terna autoridade, Jesus revelou que ele é o Messias prometido. Ele deu ao jovem não apenas a honra da visão física, mas também a maior honra da visão espiritual (João 9.39). Jesus transformou sua identidade cheia de vergonha em uma identidade marcada pela honra. Ele substituiu uma honra social temporária concedida por hipócritas pela honra transcendente concedida somente por Deus.

Jesus ama os cancelados

Na cultura do cancelamento, somos definidos por nosso último erro. A recuperação social é rara. Mas ser cancelado não precisa definir essas vítimas. Afinal, Jesus considerou pessoas “canceladas” – coletores de impostos, zelotes, prostitutas – como seus discípulos. Jesus não estava disposto a “cancelar” Tomé que duvidou (João 20.27), Pedro, que três vezes o negou (João 18.27), ou seu meio-irmão Tiago, que há muito se recusava a crer (João 7.5).

O hino de Isaac Watts descreve lindamente como nossa culpa e vergonha, inocência e honra são reconciliadas em Cristo:

O Senhor é justo e amável,
Os mansos aprenderão seus caminhos
E todo pecador humilde encontrará
Os métodos de sua graça.
Por sua própria bondade,
Ele salva minha alma da vergonha.
Ele perdoa, embora minha culpa seja grande,
pelo nome do meu Redentor.

Enquanto outros respondem à nossa vergonha com indignação, Jesus responde com amor, perdão e graça. Muitos estão procurando uma identidade recuperada ou mesmo resgatada. A cultura não dará isso a eles. Mas Jesus pode dar. Em nosso esnobismo temporal e cultural, faríamos bem em aprender com o pregador itinerante oriental de Nazaré.

Traduzido por Jonathan Silveira.

Texto original: Canceled: How the Eastern Honor-Shame Mentality Traveled West. The Gospel Coalition. Publicado com autorização.

Abdu Murray é vice-presidente sênior do Ministério Internacional Ravi Zacharias e é autor de vários livros, incluindo "Saving Truth: Finding Meaning and Clarity in a Post-Truth World" e "Seeing Jesus from the East: A Fresh Look at History’s Most Influential Figure". Durante a maior parte de sua vida Abdu foi um muçulmano zeloso que estudava o Alcorão e o Islã. Mas, após uma investigação de nove anos sobre os fundamentos históricos, filosóficos e científicos das principais religiões do mundo, ele se tornou seguidor de Jesus.

2 Comments

  1. thiago disse:

    Muito muito bom , sutil e pesado em conteúdo

  2. SILOE BEZERRA BISPO disse:

    Preciso, Deus é Graça!

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