Cinco elementos dos jogos e o que eles nos falam sobre Deus | Fernando Pasquini Santos

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É uma pena que, quase todas as vezes em que o assunto de “jogo” surge dentro de uma reflexão cristã ou religiosa em geral, a discussão se volte para o que pode e o que não pode. É o que acontece, por exemplo, no primeiro episódio de The Dice Steeple, um podcast conduzido por Tom Vasel, Sam Healey e Dan King, três das mais reconhecidas figuras no meio de jogos de tabuleiro modernos, e que por coincidência também são cristãos (os dois primeiros, pastores). Os próprios apresentadores reconhecem o problema e, felizmente, as discussões ali ainda são muito boas e os temas não ficam só nisso.

Mas o fato permanece e até levanta a pergunta: por que, como cristãos, nos preocupamos tanto com o pecado nos jogos, a ponto de esquecer tantas outras coisas que podem ser ditas sobre eles? Bem, vamos reconhecer: é verdade que o pecado está nos jogos como nunca esteve. E como não estaria? James E. Combs chama nosso tempo de “era lúdica“. Jogos estão em todos os lugares. E, para usar a imagem de C. S. Lewis, quanto mais alto o anjo, maior a queda, e pior o demônio. Jogo e pecado são uma mistura perigosa exatamente porque jogos são coisas muito grandes. Belden C. Lane, ao falar sobre a espiritualidade e ética dos puritanos no século XVII, sugere que sua rigidez com jogos e sexualidade não acontecia porque eles eram explicitamente contra essas coisas, mas sim porque eles reconheciam o grande poder delas, para o bem ou para o mal. Afinal, você já viu o poder dos jogos em praticamente nos hipnotizar, mantendo nossa atenção por longos períodos de tempo? Alguns estudiosos se perguntam como os jogos ativam nossa experiência de flow, e outros utilizam o termo gamificação para propor técnicas que mantém a atenção e empenho das pessoas em diversas atividades. Tudo isso pode ser muito bom ou extremamente perigoso, caso não se tenha uma noção correta daquilo que merece nossa atenção e dedicação em cada momento e lugar. Distração, escapismo e vício já são palavras comum em nossas reflexões sobre jogos.

No entanto, vamos repetir a pergunta: será que isso é tudo a ser dito? Acredito que não. Emílio Garofalo Neto, por exemplo, gosta de aplicar as categorias de Criação, Queda e Redenção a essas coisas. Como qualquer elemento da cultura, jogos também são bons, foram corrompidos pelo pecado, mas encontram sua redenção e sentido dentro da narrativa de Deus, em Cristo, redimindo todas as coisas. Emílio já mostrou isso com o entretenimento em geral e com o futebol, e penso que é algo que deveríamos estar fazendo com todos os jogos (a propósito, foi ele mesmo que me incentivou a escrever um texto como esse). Tomo até a liberdade de “roubar” sua expressão e digo sem medo: jogar é bom para o cristão. É bom porque vem de Deus e fala sobre Deus, e espero conseguir passar uma pequena ideia disso com esse texto.

Aliás, que com isso também fique claro que não estou dizendo que jogos são apenas úteis para evangelismo ou desenvolvimento de habilidades pessoais, como se precisássemos submetê-los a finalidades sérias e sóbrias para legitimá-los. Calvin Seerveld, em Rainbows for the Fallen World, argumenta que, como cristãos, devemos levar a brincadeira “a sério”. Somos ordenados ao lazer, ao riso, ao jogo. Preocupar-se apenas com coisas sérias é uma marca que se aproxima mais do farisaísmo do que do cristianismo.

Jogos são coisas da terra e produtos da cultura humana, e como disse Joe Rigney em As Coisas da Terra, “nossos esforços culturais são plenamente capazes de alargar o nosso coração e nossa mente para conhecermos a Deus de modo mais completo”. Somos subcriadores, criados à imagem de Deus, e aquilo que fazemos reflete aquilo que ele faz. Dorothy Sayers, em A Mente do Criador, sugere que, se um bom pai nos ajuda a ter uma ideia melhor de quem é o Pai, porque não poderíamos olhar para bons criadores e ter uma ideia melhor de quem é o Criador?

E como nós criamos jogos! À medida que o tempo avança e a cultura se desdobra em novas formas e práticas, vamos descobrindo maneiras cada vez mais novas de jogar. Temos jogos em tempo real, envolvendo reações rápidas dos jogadores, e jogos com todo o tempo necessário para um jogador pensar e fazer seu movimento; jogos jogados em lugares enormes como um campo de golfe e jogos jogados em uma pequena mesa de pedra no meio da praça; jogos rudimentares jogados em pequenos buracos cavados na terra com algumas sementes (Mancala) e jogos que usam o GPS e câmeras de smartphones para simular monstrinhos escondidos no meio da rua e prontos para serem capturados. Inventamos esportes, tabuleiros, cartas, revistinhas de sudoku, pinball, adedanha, barraquinhas de pescaria, pique-bandeira, consoles, placas de vídeo e apps de smartphone. Jogos com números, jogos com posições e padrões espaciais, jogos com movimentos rápidos e precisos, e assim por diante. Você já ouviu falar dos aspectos modais de Dooyeweerd? Dooyeweerd identificou quinze aspectos da realidade: quantitativo, espacial, cinemático, físico, biótico, sensitivo, analítico, formativo, linguístico, social, econômico, estético, jurídico, ético e pístico. Não seria possível jogar com todos eles?

Além disso, nossos jogos, como formas únicas de cultura, revelam coisas sobre nós mesmos e a realidade em que habitamos de formas que só eles conseguem fazê-lo. Raph Koster, em A Theory of Fun for Game Design, fala sobre isso:

“Jogos não precisam ser capazes de evocar uma lágrima inesperada, como a Pietà.

Jogos não precisam ser capazes de levantar a ira contra a injustiça, como A Cabana do Pai Tomás.

Jogos não precisam ser capazes de nos elevar em temor e reverência, como o Requiem de Mozart.

Jogos não precisam nos deixar pairando na fronteira do entendimento, como Nu descendo as escadas de Duchamp.

Jogos não precisam registrar a história de nossas almas, como Beowulf.

Eles podem não ser capazes de fazê-lo, de fato. Da mesma forma, nós também não pediríamos para a arquitetura ou dança fazerem todos esses tipos de coisas.

Mas jogos de fato iluminam aspectos de nós mesmos que não entendemos completamente.”

Mas, afinal, o que são jogos? Bem, você não espera que eu tente definir algo tão complexo e multifacetado em um pequeno texto como esse, não é? Você pode procurar boas definições em livros sobre game studies (estudos do jogo), como o trabalho de Franz Mäyrä, ou a obra seminal de Johan Huizinga, Homo Ludens. O que vamos fazer aqui é usar uma classificação bastante útil proposto pelo  francês Roger Caillois em sua obra Os jogos e os homens (você pode encontrar um resumo bem interessante dela aqui) para investigar alguns elementos dos jogos e comentar rapidamente sobre suas dimensões teológicas.

Caillois identifica quatro elementos presentes em todos os jogos, e lhes dá os nomes de agôn, alea, mimicry e ilinx. Vamos explicar e abordar cada um deles a seguir, mas antes, tomo a liberdade (e a coragem) de acrescentar um quinto elemento, que chamarei de sabbath, o qual começarei discutindo, e você logo entenderá o porquê dessa adição.

1. Sabbath: o jogo como lazer e descanso

Roger Caillois também apresenta uma definição de jogo como uma atividade livre, delimitada, incerta, improdutiva, regulamentada e fictícia. Penso que adjetivos “livre” e “improdutivo” são bastante reveladores de um elemento presente em toda atividade de jogo. Emílio Garofalo Neto, por exemplo, chama-o de “princípio sabático”.

Jogos não são úteis. David Parlett nota, em History of Board Games, que “aquele que precisa jogar não pode realmente jogar”. E isso é bom! Deus nos fez seres fascinados com coisas além da mera sobrevivência e além da mera utilidade. Afinal, somos imagem daquele que, no sétimo dia, descansou e contemplou tudo o que fez. Jogos são uma das formas de fazer isso.

Quem não descansa e joga não tem esperança de que a redenção não depende de nós, mas vem de Deus como um dom gratuito. A própria criação, ansiosa por essa redenção, também exulta, descansa e brinca. Observe o que C. S. Lewis disse:

“Falando em feras e pássaros, já percebeu esse contraste? Quando você lê o relato científico de qualquer vida animal, fica com a impressão de uma atividade econômica laboriosa, incessante, quase racional (como se todos os animais fossem alemães), mas quando você estuda algum animal conhecido, o primeiro aspecto que lhe chama atenção é a alegre tolice, a falta de propósito em quase tudo que faz. Diga o que quiser, Barfield, o mundo é mais excêntrico e divertido do que se supõe.” (citado em Michael Reeves, Deleitando-se na Trindade, p. 66)

Poder fazer algo “just for fun” é maravilhoso porque manifesta nossa confiança de que Cristo vive, e podemos crer no amanhã. Israel tinha estipuladas celebrações semanais, mensais e anuais para lembrar que foi o Senhor Deus que os havia tirado da terra da servidão.

E mais: esses também eram momentos que apontavam para um descanso final, como vemos claramente depois na carta aos Hebreus. O princípio sabático dos jogos também têm uma dimensão escatológica, manifestada por meio de uma interrupção na vida cotidiana para o encontro com algo além daquilo que os olhos (normalmente) veem. Emílio Garofalo Neto, notando como o filósofo Peter Berger encontra elementos de transcendência nos jogos e no brincar, comenta: “o coração humano encontra no folguedo um tipo de alegria e contentamento que o retira temporariamente da realidade caída em que vive. Como um parêntese na vida real. O coração do homem busca a brincadeira porque a eternidade está em seu coração e o mundo em que habita não é mais perfeito”. Johan Huizinga chama isso de “círculo mágico” dos jogos.

Nesse sentido, jogos também podem ser tidos como rituais “não-sérios” (e aliás, o próprio Johan Huizinga nota a relação histórica entre jogo e ritual sagrado). Para usar o termo de James K. A. Smith, jogos são tipos de liturgias. E, como tais, são formas de moldar e direcionar nossos corações.

2. Agôn: o jogo como competição e desafio

Agôn é o nome dado a uma divindade da mitologia grega que personificava a competição, e era costumeiramente invocada durante os Jogos Olímpicos. E mesmo que não sejamos gregos ou acreditemos nessas divindades, o espírito de competição sempre esteve em nós.

Somos seres que naturalmente gostam de medir forças, desde uma queda de braços até uma longa partida de xadrez. O ponto é que, de fato, as excelências e habilidades de alguém ficam muito mais manifestas por meio de comparações, e o jogo oferece uma ocasião perfeita para elas. Não é à toa que imperadores e generais saíam em guerra, ou que a literatura arturiana esteja cheia de relatos de torneios de cavalaria. E qual a nossa reação durante os jogos olímpicos, quando vemos algum atleta quebrando um recorde prévio, senão “uau, esse cara é bom!”?

Você, é claro, pode me perguntar: “mas e os jogos de apenas um jogador, como Paciência ou revistinhas de palavras-cruzadas? E os jogos cooperativos, como Pandemic ou Overcooked?” Bem, neste caso poderíamos dizer que, em jogos assim, você compete consigo mesmo ou, talvez, com o próprio jogo. O ponto é que você ainda ganha ou perde e, nesse processo, realiza uma comparação e demonstração de excelência e habilidade. E como nós gostamos disso! Quem nunca fez um gesto de alegria depois de ter acertado uma bolinha de papel no lixo a alguma distância? E, afinal, o que são as “fases” em um jogo como Super Mario senão formas de medir nossa habilidade crescente ao jogar? “Zerei!”, é o que a molecada gritava na minha época, depois de jogar por algumas horas…

Mas, voltando à competição, é possível imaginar algum incômodo – consciente ou não – com esse aspecto da presença de ganhadores e perdedores em um jogo, e como isso pode falar sobre alguma coisa sobre Deus. “Não somos todos iguais?”, poderiam perguntar. “Então, por que ficamos competindo uns com os outros?” A resposta mais simples é: porque não somos iguais, e isso é maravilhoso. Sim, em certo sentido somos iguais, mas a comparação de habilidades por meio do jogo serve para mostrar a beleza da diversidade que o próprio Deus colocou na criação e nos seres humanos. Aliás, você já parou para pensar que perder pode até mesmo ser um tipo de generosidade? Quando você perde, você aprende, para usar o termo bíblico, a “diminuir para que o outro cresça”. E, em tudo isso, Deus é ainda mais engrandecido. E isso, é claro, se você não deixar fácil.

E por falar no bem da derrota, um dos grandes bens que os jogos nos trazem é que tudo é brincadeira e, por isso, a derrota não é o fim. Sempre é possível, no final da partida, olhar para o adversário e brincar, dizendo: “prepare-se para a próxima!” Não está tudo perdido, porque, afinal, no (bom) jogo não há nada “em jogo”. Se é que há algum jogo onde tudo está em jogo e a derrota é a pior coisa que poderia nos acontecer é o jogo de nossos corações e almas. Mas, para os cristãos, esse jogo já está ganho. Graças a Deus, pois, nesse jogo, em Cristo, somos mais que vencedores!

3. Alea: o jogo como sorte e surpresa

Alea se refere aos elementos do jogo que estão fora do controle dos jogadores, aquilo a que normalmente nos referimos como sorte, acaso ou aleatoriedade. Percebo também o desconforto de alguns cristãos aqui, ainda mais quando se utilizam do fato de que o uso de dados esteve historicamente ligado ou a oráculos e rituais de divinação ou a jogos de apostas.

Aqui não é o espaço para um tratamento extensivo sobre sorte, aleatoriedade e a soberania de Deus, e Vern Poythress já fez um ótimo trabalho sobre esse assunto. Basta dizer que é claro que nós, como cristãos, não cremos em um universo ou um Deus sujeito a forças do acaso. Mas você mesmo pode perceber ocasiões interessantes na Bíblia onde sortes eram lançadas, como na escolha de Matias no primeiro capítulo de Atos. A razão ali era simples: realizar uma escolha sem tendenciosidade, deixando de lado o controle ou responsabilidade sobre o resultado.

E como, às vezes, é bom deixar o controle sobre os fatos! Estudiosos de jogos argumentam que a aleatoriedade nos jogos tem dois propósitos: introduzir variedade e surpresa. Sair com uma mão de cartas diferente (ou um tabuleiro modular diferente, como em Catan) em cada partida permite que aprendamos a nos adaptar a diferentes situações e, assim, demonstrar ainda mais a nossa habilidade com o jogo. Nós gostamos de ver alguém “fazer milagre” em uma situação desfavorável. Além disso, nós gostamos da tensão e posterior surpresa diante de uma rolagem de dados. Peter Berger fala que o próprio riso e humor estão baseados no elemento de surpresa diante de algum fato da realidade. Como nós rimos e vibramos com rolagens de dados no meio de jogos! E por fim, quando usada na ocasião e jogos certos, penso que o elemento de sorte pode até mesmo servir para “quebrar” a tensão em um jogo muito competitivo e “nivelar” os jogadores, dando um pouco mais de esperança e diversão para um jogador ruim. Há quem seja bastante competitivo e não goste disso, mas pelo menos precisamos reconhecer que há um momento certo para cada coisa. Jogos muito centrados em agôn, como xadrez, normalmente geram senso de realização, enquanto jogos centrados em sorte, como o divertido Quartz, geram risadas.

Afinal, não são essas coisas que recebemos quando entregamos certos detalhes de nossas vidas para Deus? Variedade, surpresa, novas chances. Não quero, com isso, sugerir que adotemos uma abordagem “duas-caras” (vilão do Batman) para a vida cristã, resolvendo tudo no cara ou coroa. Mas, no fim, é Deus quem faz nossos músculos dos braços darem espasmos com nossas mãos fechadas, faz os dados baterem, girarem no ar e rolarem por uma superfície seguindo um punhado de leis da física, e nos faz gritar de alegria ao vermos mostrado aquele número que estávamos esperando.

Bem, pelo menos foi o que aconteceu em uma rolagem de dados épica que tivemos quando eu e alguns amigos jogávamos Zombicide. Matamos os zumbis e ganhamos o jogo. Passamos todos a nos abraçar, fingindo chorar de alegria, numa encenação cômica. Foi bobo, mas até poderia lembrar do salmo 126: “Quando o Senhor restaurou a sorte de Sião, ficamos como quem sonha”.

4. Mimicry: o jogo como imitação e representação

E por falar em encenação, este também é outro elemento do jogo sobre o qual podemos pensar. Uma grande quantidade de jogos possuem esse elemento de imitar, de colocar-se no lugar de outra pessoa, em outra situação e em outro tempo e lugar. Isso funciona tanto de maneira ativa, quando os próprios jogadores imitam alguma realidade hipotética ou fantasiosa – como nos RPGs, videogames e jogos de tabuleiro – quanto de maneira passiva, quando um torcedor assume para si a identidade de seu time de futebol e diz: “ganhamos o campeonato deste ano”. Nos dois casos, fica claro que jogos envolvem o sentimento de empatia.

No caso da representação ativa, muito já foi dito sobre o papel da fantasia dentro da cosmovisão cristã, com os ingleses Chesterton, Lewis e Tolkien como seus grandes defensores. Vamos à fantasia porque queremos janelas. É bem famosa a citação de Lewis:

“Queremos ser mais que o que somos em nós próprios. Por natureza, cada um de nós vê a totalidade do mundo de um ponto de vista cujas perspectiva e seletividade lhe são peculiares. E mesmo quando criamos fantasias ociosas, elas vêm saturadas e limitadas pela nossa psicologia pessoal. […] Mas é também a níveis mais elevados que desejamos escapar às ilusões da perspectiva. Queremos ver com outros olhos, fantasiar com outras imaginações, sentir com outros corações, ao mesmo tempo que com os nossos. Não nos contentamos com ser as mônadas leibnitzianas. Exigimos janelas.” (Um Experimento na Crítica Literária)

Tudo isso, é claro, também tem os seus perigos, e o próprio Tolkien falava de duas atitudes para com a fantasia: o escape do prisioneiro e a fuga do desertor. Para ele, uma boa fantasia é uma janela que nos permite olhar além do imediato, e depois voltar ao nosso mundo com um olhar renovado, e mais encantado. O contrário disso, ou seja, a má fantasia, é a busca do jogo ou outras atividades como um espaço no qual possamos suspender todas as normas da realidade e exacerbar nossos desejos pecaminosos sem qualquer preocupação com consequências. Diversos autores têm identificado esse último impulso em diversas culturas no decorrer da história e lhe dão o nome de espírito carnavalesco – que é muito adequado, afinal, com sua referência às práticas do carnaval no mundo ocidental. Franz Mäyrä, por exemplo, o identifica nas motivações de jogadores buscando as representações grotescas e demoníacas em Doom, o jogo digital de 1993.

Talvez também esteja aí a chave para discutirmos o papel da fantasia e a representação de elementos ocultistas em jogos como RPGs e videogames, e, de fato, David Porter, em uma palestra realizada no L’Abri, coloca exatamente esse ponto. É verdade que diversos jogadores buscam esse tipo de jogo com um espírito carnavalesco, buscando prazer no contato com o oculto. Mas o debate fica incompleto se só falar disso. Nada disso precisa ser assim, e uma boa fantasia, sustentada por uma cosmovisão cristã que sabe chamar o bem de bem e o mal de mal, pode muito bem ser cultivada em nossos meios cristãos.

5. Illinx: o jogo como vertigem e adrenalina

Tenho um primo que, quando criança, certo dia foi proibido pela mãe de jogar Super Smash Bros comigo e meus irmãos. O motivo? Ele não conseguia parar de ficar pulando enquanto jogava e, quando chegava a noite, ele ficava reclamando de dor nas pernas.

Illinx é talvez a reação mais “visceral” que os jogos nos oferecem, incluindo a sensação de vertigem, espasmo e perda de si por meio de movimentos rápidos ou adrenalina. Ele não está presente em jogos parados como a maioria dos jogos de tabuleiro, mas se encontra em videogames e esportes, principalmente os classificados como “radicais”. Sim, e também está em videogames como o caso supracitado.

O elemento também está presente em formas mais leves na dança e música (diz-se que um bom músico costuma se perder no som), e em formas mais agressivas como nas drogas e entorpecentes. Nesse último caso, o próprio Roger Caillois ressalta o perigo desse aspecto, ao falar do illinx como forma de escapismo e alienação, características que, de fato, sempre foram bem comuns nas diversas formas de entretenimento, incluindo os jogos. Junto com o elemento carnavalesco (a distorção do mimicry), o entorpecimento, como uma distorção do illinx, também é contrário a uma ética cristã. Dirás: “espancaram-me, e não me doeu; bateram-me, e não o senti; quando despertarei?” (Provérbios 23.35)

Além disso, uma vez que mimicry e illinx são as melhores formas que dispomos para combater o tédio, elas podem facilmente engendrar o chamado “efeito montanha-russa” (o que não é coincidência: Caillois identifica a montanha-russa como a maior manifestação do illinx na sociedade atual), ou seja, a necessidade de experiências cada vez mais fortes para conseguir o mesmo efeito. Precisamos compreender nossa relação com o tédio e se temos reagido adequadamente diante dele.

Mas, sim, também há a medida certa e o tempo para dançar, pular e se alegrar com esse aspecto que o próprio Deus criou. Joe Rigney fala sobre a bondade de Deus que é tão grande quanto “gritar gol e fazer dancinha”. E eu acrescento: Deus é tão bom quanto sua filha gritando de alegria quando você a gira no ar segurando-a pelas mãos. Deus é tão bom quanto pular sem parar enquanto se joga videogame…

Ah, você já parou para pensar em montanhas-russas na nova terra? Eu confesso que morro de medo e náusea com isso, e não entro em um barco viking nem para salvar a minha própria vida. Mas quem sabe um corpo redimido sem medo ou náusea? Imagine só o illinx redimido…

Mas bem, talvez eu (ou você, que se simpatiza comigo) não tenha sido criado para esse tipo de vertigem como a das montanhas-russas. Tudo bem. Eu mesmo já fico fascinado o bastante com outras coisas, outras subcriações, que possuem vários desses elementos citados acima e que têm muito a dizer sobre o Criador. Quem me conhece sabe da minha admiração pelas engenhocas que pessoas como Uwe Rosenberg, Stefan Feld e Ryan Laukat montaram com pedaços de papelão, plástico e madeira e colocaram dentro de caixas. São engenhocas que falam, sim, da engenhosidade do grande Criador (ou Designer). Vejo tudo isso e mal posso esperar para encontrar o grande arquiteto de regras, componentes e design gráfico.

O melhor jogo ainda está por vir.

Fernando Pasquini Santos é formado em Engenharia de Computação e professor de Engenharia Biomédica na Universidade Federal de Uberlândia. Além do ensino e pesquisa nessas áreas, também se interessa em situar o desenvolvimento e interação com tecnologias à luz da narrativa cristã. Também é presbiteriano, pianista, casado com a Jemima e pai da Suzana.

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