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Tomás de Aquino (1225-1274)

Por várias gerações foi dito aos evangélicos para que evitassem Tomás de Aquino, pois ele, supostamente, foi o principal progenitor do falso ensino da salvação pelas obras que permeia o catolicismo. Uma vez que Lutero corretamente nos disse que toda a doutrina cristã se sustenta ou sucumbe através da interpretação adequada da justificação, e que Aquino levou a igreja católica a abraçar justamente o oposto da verdadeira justificação, o evangélico prudente deveria renunciar a Tomás e todas as suas obras.

Ao longo do caminho também foi sugerido aos evangélicos que a versão de fé de Tomás de Aquino era completamente estranha à fé evangélica, pois ele ensinava a respeito das obras e sobre uma teoria dos sacramentos que enfatizava a recepção externa sem a necessidade da fé interior. Supõe-se que ele não reconheceu a necessidade de um relacionamento pessoal com Jesus Cristo e, por fim, alguns especulam que ele pode não ter tido um relacionamento pessoal com o Deus triúno.

Os evangélicos estão errados em ambos os casos. Tomás não ensinou salvação pelas obras e ele conhecia tudo a respeito de fé interior e sobre ter um relacionamento pessoal com Cristo – mesmo que ele não praticasse ambos exatamente como fazem os evangélicos modernos.

Lutero e a justificação

Deixe-me explicar primeiro a visão de Tomás a respeito da justificação (como nós somos aceitos por Deus no processo da salvação), pois é neste ponto que ele diverge, três séculos depois, de Martinho Lutero e da Reforma. Para Tomás, na justificação, Deus produz uma mudança nas pessoas (o que, a propósito, é o que Atanásio e Agostinho também ensinaram). A justificação não é apenas o início da vida cristã (como Lutero a descreveu mais frequentemente), mas a sua continuação e perfeição final.

É uma mudança de natureza interna, não apenas um status legal (de deixar de ser um inimigo de Deus para se tornar um amigo de Deus). Para Tomás, não há distinção – como existe para Lutero – entre justificação (a declaração de Deus que Ele nos aceita) e santificação (nossa renovação interna).

Portanto, existem diferenças sobre os temas da justificação e da salvação entre Tomás e Lutero. Não devemos, porém, exagerar as diferenças. Assim como Lutero (e Calvino, nesta questão), Tomás acreditava que a justificação é um dom de Deus adquirido por meio da vida, morte e ressurreição de Jesus e não uma recompensa da habilidade humana. As pessoas não podem fazer nada por si mesmas para garantir ou se preparar para isso:

Qualquer que seja a preparação [para a fé salvífica] que possa haver em nós, deriva da assistência de Deus em mover a alma para o bem. Nesse sentido, esse bom movimento da livre escolha em si mesma, pelo qual alguém se prepara para receber o dom da graça, é a ação de livre escolha movida por Deus.

Tomás insistiu que ninguém jamais “merece a graça primeira”, o que significa que ninguém nunca merece que Deus venha primeiramente com a graça que faz com que o coração e a mente iniciem suas jornadas de retorno a Ele. Tomás fala sobre “mérito” na vida cristã, mas esse é o mérito dado aos crentes apenas por causa da graça de Cristo que opera neles para produzir obras justas. Então, há um princípio da graça que perpassa a discussão do mérito em Tomás. Outro ponto de semelhança entre Tomás e Lutero, que são frequentemente apresentados como sendo violentamente opostos, é que Lutero também viu a justificação como tendo um efeito interno. Os leitores que desejam ler mais sobre isso devem ver meu artigo “Thomas, Luther and Edwards on justification” [“Tomás, Lutero e Edwards sobre a justificação”].

Se Tomás não ensinou salvação pelas obras, muito menos apoiou sacramentos mecânicos alheios a uma piedade profunda. Na sua vida pessoal, Tomás demonstrou uma espiritualidade que deixaria muitos evangélicos envergonhados. Regularmente, enquanto escrevia seus tratados teológicos, Tomás se ajoelhava para orar quando enfrentava um problema intelectual, pedindo a iluminação divina para guiar seus pensamentos. Ele escreveu belos hinos e orações a Jesus e ao Pai para o uso no cotidiano e na Sagrada Comunhão. Pouco antes do fim de sua vida, ao celebrar a Missa, ele entrou em transe. A partir desse momento, e sem explicação, ele parou de escrever e falou pouco. De acordo com o seu secretário, o questionamento persistente revelou a resposta de que comparado ao que Deus tinha acabado de revelar a ele, tudo o que ele havia escrito era como palha. Um evangélico que é deslumbrado pela beleza de Deus não poderia ter dito melhor.

Por que os evangélicos devem ler Tomás de Aquino

Neste ponto, alguns evangélicos dirão: e se Tomás ensinou a salvação pela graça e tinha um relacionamento pessoal com Jesus? Então podemos lê-lo. Mas devemos? Por que o ler em vez dos grandes teólogos protestantes, tais como Lutero, Calvino ou Edwards?

A resposta, eu proponho, é que Tomás teve um brilho particular em muitas questões de grande interesse para os evangélicos e, por sua profundidade e visão, ele viu algumas dessas questões de um modo que será de grande ajuda para nós, tanto espiritual quanto intelectualmente, em nossa peregrinação em direção à cidade celestial.

Falarei primeiro de sua mente prodigiosa e, então, de duas questões nas quais ele pode ajudar os evangélicos.

Tomás tinha uma mente fenomenal. G. K. Chesterton relata que quando Tomás foi questionado sobre o que ele seria mais grato a Deus, ele simplesmente respondeu: “Eu entendi todas as páginas que já li”. Ele frequentemente ditava suas palavras a mais de um secretário ao mesmo tempo e sobre assuntos diferentes. Uma tradição insiste que ele compôs em seu sono, o que provavelmente significa que ele compôs em uma concentração tão profunda que se assemelhava a um transe. Isso teve ocasionalmente efeitos indesejáveis. Em 1269, em uma refeição com o Rei Luiz IX, da França, Tomás estava pensando sobre o falso ensino dos maniqueístas. Embora ele estivesse entre os convidados, conversando com o rei, Tomás de repente bateu na mesa e exclamou: “Peguei os maniqueístas!”. Ele chamou o seu secretário para que viesse e tomasse o ditado. Logo que ele completou o ditado, voltou-se para o rei e se desculpou profusamente: “Sinto muito, eu pensei que estava na minha mesa”.

Tomás foi considerado “Doctor” (mestre) da Igreja Católica em 1567 e recomendado ao estudo pelo Papa Leão XIII, em 1879. A igreja sabia que ele não fora tão eloquente quanto Agostinho, o ex-professor de retórica, mas seus líderes valorizavam sua extraordinária clareza. Suas maiores obras são a Suma Teológica (uma apresentação sistemática da doutrina cristã usando Escritura, tradição, filosofia e teologia) e a Suma contra os Gentios, uma obra apologética que ele pretendia que fosse usada por missionários aos povos muçulmanos.

Como ele pode ajudar

Agora vamos a duas questões nas quais ele pode ajudar os evangélicos. A primeira diz respeito à relação entre fé e razão. Sobre essa relação, ele escreveu tanto obras sofisticadas que são acessíveis apenas a filósofos e teólogos, como também obras populares, tais como a Suma contra os Gentios, que pode também ser compreendida por não eruditos. Sobre esta questão, ele estabeleceu uma importante distinção que guiou pensadores cristãos desde então – a diferença entre o que podemos conhecer por meio da razão sobre Deus e o que pode ser conhecido sobre Deus somente por meio da revelação na Bíblia. Ele disse que podemos, a partir do mero uso da razão, ter conhecimento acerca de questões sobre Deus tais como as seguintes: que Deus existe, que Deus é perfeito, que Deus é bom, que Deus é imutável, onipresente, eterno e uno. Ele argumentou que isso era parte do que Paulo quis dizer quando falou de todos os seres humanos:

Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. (Rm 1:19-21a, Versão Almeida Século 21)

Tomás é famoso por suas Cinco Vias ou provas da existência de Deus. Elas argumentam, em primeiro lugar, que deve haver algo que cause mudanças ou movimento nas coisas sem que seja, em si mesmo, mudado ou movido por nada. Em seguida, ele diz que causas ordenadas em uma série (A causou B que, por sua vez, causou C) deve ter uma primeira causa: “Nunca observamos, nem jamais poderemos observar, algo se autocausando, pois isso significaria que ele se precedeu e isso não é possível”.  Finalmente, ele se volta para as coisas com variados graus de perfeição e argumenta que as perfeições nas coisas implicam uma fonte de perfeições. O movimento ordenado nas coisas desprovidas de inteligência (tais como animais buscando comida e planetas possuindo órbitas perfeitas) sugere que são governados por algo inteligente.

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As Cinco Vias de Tomás são frequentemente mal compreendidas. Alguns têm ridicularizado Tomás por pensar que elas provam o Deus cristão. Mas, embora Tomás tivesse dito que elas provam o que “todo mundo compreende ser Deus”, ele deixa claro que elas apenas mostram uma Causa Primeira e não o Deus cristão per se. As Cinco Vias, em si mesmas, apenas pretendem “iniciar a discussão, e não encerrá-la [com provas]”.

Elas são o início de um longo argumento que se estende por mais de 35 páginas de coluna dupla (Questões 2-11) na edição de Pais Dominicanos da Suma Teológica. Também é frequentemente presumido que Tomás acreditou que essas provas convenceriam qualquer incrédulo da existência de Deus. Tomás, no entanto, sabia que o pecado impede os incrédulos de pensar objetivamente e escreveu esses breves resumos[1] mais para confirmar a fé dos estudantes de teologia do que para convencer céticos pagãos. Tomás também deixou claro que a razão não pode demonstrar de modo distinto as verdades cristãs a respeito de Deus – tais como o fato de ele ser triúno e Salvador por meio de Cristo. Essas verdades, ele disse, somente podem ser conhecidas por meio da revelação na Escritura.

Uma segunda questão na qual Tomás pode lançar muita luz diz respeito ao que é chamado de lei natural. Foi sua ideia dizer que a razão pode nos dizer certos absolutos morais que são verdadeiros em todos os tempos e lugares. Essa ideia tem uma longa história que remonta a Aristóteles, Cícero e Agostinho. Mas Tomás a desenvolveu com sua precisão habitual, de modo que ela teve um maior efeito desde então.

Estes são alguns exemplos do pensamento de Tomás sobre o que a razão pode mostrar a todos os seres humanos por meio da lei natural:

1. A primeira ordem da lei: “Que o bem seja buscado e feito e o mal seja evitado”.

2. Considerando de modo geral, nos preservar é algo bom.

3. Portanto, a procriação e a educação de jovens são coisas boas.

4. Os seres humanos devem aprender o que pode ser aprendido sobre o significado da realidade (para Tomás, isso se referia a Deus) e a viver em sociedade – ou seja, que as pessoas devem evitar a ignorância, não ofender os outros desnecessariamente e a viver em civilidade com eles.

Tomás não quis dizer que a lei natural é uma lista de instruções ou regras detalhadas para cada situação. Em vez disso, deveria ser um sistema acrescido por sólido pensamento prático, consciência e lei civis, destinado a promover o bem comum e a conduzir de modo particular a sociedade. Quando as leis civis concordam com a lei natural, poderia ser dito que elas concordam com a lei eterna de Deus. Mas quando elas violam a lei natural, elas são “injustas”. Elas “são atos de violência em vez de leis” e “tais leis não são obrigatórias à consciência”. A implicação é, como Martin Luther King observou admiravelmente em sua “carta da prisão de Birmingham”, que o cristão é livre ou talvez até mesmo obrigado a se engajar na desobediência civil. Você pode ver por que a articulação da lei natural de Aquino foi apreciada não somente por teóricos legais e teólogos morais, mas também por ativistas de direitos humanos até hoje.

Existem muitas e muitas outras maneiras pelas quais uma leitura profunda de Tomás de Aquino pode ser de grande ajuda para os evangélicos. Ele fala com uma estranha profundidade e visão das questões atuais acerca de como falar sobre Deus, o que podemos e não podemos saber sobre Deus, quais são as virtudes tipicamente cristãs e quais não são, o que significa ser santo e feliz, o significado da encarnação e muito, muito mais.

Assim, minha palavra final para os evangélicos é: não temam! Mergulhe nas águas profundas do pensamento oriundo de uma das grandes mentes e corações da Grande Tradição.

_______________

[1] N.T.: A palavra Summa, em latim, traz o significado de sumário, resumo.

Traduzido por Tiago Silva e revisado por Jonathan Silveira.

Texto original: Aquinas: How He Might Help Evangelicals. The Gospel Coalition.

Gerald R. McDermott é PhD pela Universidade de Iowa, e professor de Religião e Filosofia na Roanoke College, em Salém, no estado americano da Virgínia. É também pastor titular da Igreja Luterana St. Louis e autor dos livros "12 sinais da verdadeira espiritualidade: o Deus visível" e "Grandes Teólogos", publicados por Edições Vida Nova.
Quem são os grandes teólogos da igreja? O que havia de especial em seus ensinos? O que podemos aprender com eles hoje?

Neste livro o autor não apenas nos instrui sobre onze teólogos de grande importância, mas também nos ajuda a identificar aquilo que continua válido para os nossos dias. Com perguntas para reflexão e debate no final de cada capítulo, "Grandes Teólogos" é perfeito para o estudo individual ou em grupos pequenos. À medida que se der o estudo, os membros do grupo podem explorar a história teológica que um partilha com o outro e também descobrir as razões por que cada um crê no que crê. Aqui está a oportunidade de pensar sobre Deus juntamente com “os grandes”.

Publicado por Vida Nova.

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