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Esta crítica contém Spoilers
1 – Filmes, e arte em geral, são motivados por reproduzir, criticar, comentar, questionar, enobrecer ou tirar sarro da experiência humana. Filmes, e arte em geral, têm um sucesso maior quando atingem algo dentro de nós, algo que não precisa ser complicado. Precisa ser identificável, mesmo que inominável. Você precisa saber que está lá, mesmo sem saber o nome daquilo.
2 – Depressão, segundo a Wikipédia, é um transtorno psiquiátrico caracterizado na perda de prazer nas atividades diárias, apatia, alterações cognitivas, psicomotoras, alterações de sono, alteração de apetite, redução do interesse sexual, retraimento social, ideação suicida e prejuízo funcional. A versão resumida disso é: uma doença.
Não é nenhum exagero dizer que a Pixar revolucionou o mundo da animação. E isso nunca, nunca foi por causa de seus avanços tecnológicos. Os personagens da Pixar funcionam porque eles se conectam com seu público de uma maneira inexplicável e sem precedentes no mundo da animação. Uma união, muitas vezes impecável, de design, roteiro, casting, tom, timing e humanidade. Mas, além disso, a Pixar tem coragem. Lançar uma animação sobre um robô lixeiro onde 70% do filme não tem diálogo algum? Por que não? Uma aventura estilo matinê onde o protagonista é um senhor de idade que perdeu a esposa? É claro! Refilmar Os Sete Samurais com insetos? Ótima ideia.
Mas o novo lançamento da Pixar na verdade se conecta com outro de seus acertos. Em Ratatouille, um ratinho falante sonha em ser um cozinheiro, e precisa encontrar um caminho para conseguir realizar seu sonho. O tema do filme é a criatividade. Porque um artista cria, e porque ele precisa continuar criando. Quem pode ser um artista. E a difícil tarefa de colocar na telona um tema tão insubstancial quanto “criatividade” é o que faz desse filme com um ratinho falante ter uma relação direta com esse outro filme, um com emoções falantes.
Em Divertida Mente, o diretor de Up – Altas Aventuras e Monstros S. A., Peter Docter, conta uma história que, sob um ponto de vista, é bem simples, e sobre outro ponto de vista, é tão complexa que até adultos sairão do cinema questionando-se sobre determinadas cenas. Riley, uma garota de 11 anos, está se mudando com seus pais de uma cidadezinha do interior para uma grande metrópole. Isso significa deixar tudo o que conhece para trás, desde seu esporte favorito até sua melhor amiga. E enquanto vemos os resultados que isso causa nela do lado de fora, somos transportados para um mundo fantástico que existe dentro da mente de Riley. Lá, numa espécie de sala de controle, somos apresentados a cinco emoções, cada uma personificada. Alegria, a líder, precisa manter Riley perpetuamente feliz. Medo é quem evita que Riley se machuque. Nojo evita que ela coma comida ruim, e também evita que ela cometa certos suicídios sociais. Raiva comporta a agressividade e irritabilidade de Riley. Por fim, Tristeza é uma emoção que normalmente fica de lado, especialmente porque Alegria não faz a menor ideia da razão dela estar ali.
Os personagens trabalham para que Riley seja uma pessoa funcional, alegre, e viva sua vida bem. Quando ela tem uma experiência, essa memória é armazenada, e a partir das mais importantes dessas memórias, grandes ilhas são criadas, representando os lados da personalidade dela (Amizade, Família, Honestidade, Bobalhona, Hóquei). A interação da funcionalidade dessas ilhas é o que torna Riley uma criança normal.
Acontece que as experiências recentes têm impelido Tristeza a se tornar mais ativa, e Alegria, quando tenta impedi-la de “infectar memórias com tristeza”, acaba lançando ambas nos fundos da mente de Riley, longe da sala de controle. Precisarão atravessar os campos coloridos e diferentes, áreas como a Memória Antiga, o Mundo dos Sonhos e o Subconsciente, para voltarem até a sala de controle. Enquanto isso, Riley só tem Medo, Nojo e Raiva para ajudá-la. E não que eles fazem um trabalho ruim, mas é que eles não podem contrariar quem são. E ninguém que só sente raiva, medo e nojo pode ser funcional. Riley entra num rodamoinho de estranheza, e isso acaba danificando permanentemente todas as áreas da sua personalidade.
Parece complicado, mas se você já assistiu ao filme, sabe que esses conceitos bastante difíceis de conceber visualmente são transportados para a tela de uma maneira incrível. O design dos personagens faz com que você identifique imediatamente quem é quem, o que fazem e por que fazem. As duas histórias (na verdade, uma só), Riley enfrentando as dificuldades de uma nova vida, e Alegria enfrentando a jornada através da mente de Riley, se mesclam perfeitamente. Causa e efeito estão perfeitamente claros no filme, o bastante para que crianças entendam o que se passa, e aprendam bastante sobre como a própria cabeça delas funciona.
As situações cômicas, piadas recorrentes e até mesmo as sacadas que só os adultos vão pegar (como a parte das Opiniões e dos Fatos) são brilhantes, mas o filme não é uma comédia. Apesar de ter uma profundidade científica surpreendente, sobre como a nossa cabeça realmente funciona, e passar por temas e ideias que podem gerar discussões intermináveis, o filme tem uma mensagem muito simples, feita simples pela beleza de seu storytelling. Quando chega ao fundo do poço, Alegria descobre que Tristeza, estranha e alienígena como é, tem uma função muito importante dentro do bioma mental de Riley.
Memórias não são alegres ou tristes. Elas podem ser alegres E tristes. Elas podem simplesmente ter diferentes significados, diferentes pontos de vista. Esse novo conceito é o que acaba fazendo Riley deixar para trás as coisas de criança, e gerar uma personalidade cada vez mais adulta. Na cabeça de Riley, quem comanda tudo é a Alegria, mas na cabeça de sua mãe, a emoção central é a Tristeza. E isso não quer dizer que a mãe de Riley é tristonha e negativa o tempo todo. Quer dizer que é a pessoa com a maior capacidade de empatia possível.
Quando deixado somente com Nojo, Medo e Raiva, o console de “Controle” de Riley para de funcionar aos poucos, e vai perdendo sua cor. Riley começa a ficar menos suscetível ao carinho de sua família, e tem uma ideia, nascida de sua Raiva, de deixar tudo e fugir. Riley está passando por um trauma, e esse trauma cria o perigo de causar em Riley uma despersonalização, sintoma sério de depressão, transtorno bipolar, esquizofrenia. A Pixar foi muito fundo na escuridão do que é não saber crescer.
E tudo porque a Alegria não queria deixar a Tristeza fazer o seu trabalho.
Dizer, com todas as letras, que é normal ficar triste, e que não precisamos ficar alegres o tempo todo é bem corajoso. Somos bombardeados em tudo quanto é lugar de que a tristeza é algo que precisa ser combatida, de que a alegria é o maior objetivo. Vemos isso em empresas, escolas, igrejas. A busca por uma maturidade emocional é colocada em segundo plano, e um triunfalismo faceiro é o que ocupa nosso foco. Divertida Mente coloca a descoberta dessa verdade em sua protagonista, a Alegria, e leva a própria às lágrimas (junto com o público). Além disso, o filme também estabelece na família o bem supremo, a pior das perdas, e a maior das curas. Finalmente com seus pais é que Riley começa a crescer, e a criar memórias mais realistas, com emoções mais equilibradas.
A declaração de que Divertida Mente talvez seja o filme mais importante da década pode parecer um tremendo exagero a princípio. Mas não tem nenhum outro filme recente que consiga ser tão poético e eficiente, como um filme, no que se refere a “O que faz de um ser humano um ser humano”. Divertida Mente vai ao cerne do que isso significa. E faz isso usando a linguagem do cartoon de maneira brilhante. Sua crítica às filosofias de “felicidade a todo custo” é bem sutil, mas é muito clara, e muito necessária. A tristeza foi colocada em nós, e não devemos tentar nos esquivar dela. A busca pela felicidade pode, com certeza, passar por uma estrada tortuosa. E isso é bom.
Outra das sutilezas do filme é sobre algo polêmico. E eu não compreendo como isso ainda é polêmico. O filme apresenta uma analogia à estrutura fisiológica de como funciona uma depressão. De como uma pessoa torna-se quimicamente incapacitada de funcionar normalmente. No filme, Raiva, Medo e Nojo são ineficientes para fazer com que Riley reaja de uma maneira normal, ou positiva, ao mundo. E isso não é uma invenção do filme. Isso acontece com pessoas de verdade, e acontece o tempo todo.
Existe quem ainda considere depressão uma “brincadeira”, ou uma “fase”, ou um “caso para que a pessoa simplesmente pare de agir assim”. É gente bem formada, inteligente, que tem o costume de ser apoio a outras pessoas. E tratam a depressão primeiro como manha, depois como exagero, e só depois de eventos drásticos, como algo a ser levado a sério. Tem médico assim. Tem pai de família assim. Tem pastor de igreja assim. Eu até diria que você “pode não acreditar em depressão”, mas seria como dizer que você pode “não acreditar na AIDS” ou “não acreditar nos aviões” também. A Pixar precisou fazer um filme sobre isso, então agora que até crianças podem entender como a cabeça de uma pessoa realmente funciona, determinados “sábios” possam aprender e pararem com um preconceito xucro.
Peter Docter declarou que não tinha a intenção de ensinar com Divertida Mente, mas é isso o que ele fez. A ideia do filme veio de observar as mudanças emocionais pelas quais sua filha passava enquanto crescia. E por causa disso, agora muita gente vai descobrir tanto sobre si mesmos. E ao mesmo tempo vai se divertir. Vai ter seu coração partido, vai rir. Nem falei sobre a cena dos Conceitos Abstratos, ou sobre o personagem que será mais lembrado, um Amigo Imaginário que ficou perdido nos fundos da lembrança de Riley. Ou sobre como o filme retrata o conceito de “esquecimento”.
Divertida Mente é muito mais do que um filme, e deve ser celebrado como tal. É tanta coisa, numa linguagem tão perfeita, que mesmo passando por uma tormenta de emoções durante sua exibição, a única coisa que nos resta ao final é sorrir em agradecimento. Divertida Mente é um dos raros filmes que tem a chance de fazer você ser um humano um pouco menos quebrado, com o maquinário funcionando um pouco melhor.
Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente. |
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1 Comments
Já assisti o filme. Realmente é muito cativante a forma como tantos conceitos sobre personalidade, vida e emoções são tratados no filme. Ótimo artigo!