Fazendo o bem: filmes e games | Silas Chosen

Se Jesus é a Palavra de Deus, o que a Bíblia é? | Thiago Oliveira
15/abr/2020
Como o jazz pode moldar a apologética | Douglas Groothuis
18/maio/2020

(Spoilers)

O fim da década de 2010 foi um tempo difícil para muita gente. Não são só as notícias de que o planeta está indo muito mal e que muito pouca gente parece se importar, mas a ênfase na retórica violenta, ególatra e divisória está premiando corrupção, maldade e individualismo. A humanidade parece doente, e parece gostar de estar doente.

Então, entre fevereiro e março de 2020, a humanidade DE FATO ficou doente. Com a transmissão desenfreada do Coronavírus, centenas de milhares de pessoas estão infectadas com um vírus que pode não causar muitos danos à maioria delas. Mas o potencial que ele tem para paralisar a sociedade e inundar os postos de saúde mandou milhões – talvez bilhões – de pessoas ao redor do mundo ficarem em suas casas, sem poderem sair. Uma ordenança de nossas autoridades de saúde que visa não a proteção individual, mas a proteção coletiva, em especial daqueles em grupos de risco.

Mas “cuidar uns dos outros” é um valor um tanto alienígena aos nossos dias. Não só temos fiéis de um senhor muito mais mesquinho dando ouvidos a profetas pouco cuidadosos, sabemos muito bem como nossa humanidade funciona. Se olharmos para o que é esbravejado do topo da nossa sociedade como modelo, vamos jogar fora 80% do Sermão do Monte. E não estou falando só dos valores “deste mundo que jaz no maligno”, estou falando do que está habitando nossas igrejas e sendo apoiado por nossos irmãos da fé.

Porém, no fim de 2019, seletas mídias pareceram querer dar uma leve guinada para cima. Alguns poucos exercícios da cultura pop trouxeram vozes que queriam ir na direção contrária. Ao invés de falar sobre imponência, pragmatismo, conservar a estrutura atual da sociedade – custe o que custar – “estar certo” ou mesmo defender os direitos próprios, essas histórias parecem querer focar mais no que um pode fazer pelo outro, e em contemplar a moralidade de fazer o bem num mundo onde é impossível viver sozinho.

O bem do próximo é parte central da preocupação do seguidor de Cristo, desde muito antes do Coronavírus obrigar todo mundo a cuidar de “todo mundo”.

O que será que vemos por aí que nos fala sobre isso? Vamos observar quatro exemplos.

Entre Facas e Segredos

O diretor Rian Johnson criou este delicioso whodunnit invertendo todas as regras clássicas do subgênero. Os personagens, as situações, a escalada de evidências sobre um misterioso assassinato – nada é como você espera.

E no centro da história temos Marta, interpretada por Ana de Armas. Ela é a enfermeira pessoal da vítima do assassinato, um autor milionário. E ela, como principal suspeita, é o principal alvo da fúria da família, que estão atrás de sua parte da herança. E mesmo que, para não revelar tanto (digamos só que a relação de Marta com o crime é bem complicada), Marta está constantemente agindo no inverso da família gananciosa. Quase todas as ações dela são em prol de proteger, de curar, de ajudar e de perdoar. Até mesmo quando a vida de alguém, estando em risco, é algo que poderia beneficiá-la, ela vai além do possível para salvar essa vida, mesmo que isso possa criar-lhe problemas sérios no futuro.

Marta traz muito da filosofia que Rian Johnson coloca na maioria de seus filmes. Que a humanidade é de fato podre. Mas existe gente no meio da podridão capaz de inverter a história simplesmente porque busca, acima de tudo, o bem dos outros.

Um Dia Lindo na Vizinhança

O filme parece ter a estrutura de uma biografia real do apresentador de TV Fred Rogers. Mas não é.

Rogers largou a carreira de pastor para criar um programa infantil de TV que não só tivesse como meta prender a atenção da criançada na TV. Ele queria prestar atenção nas crianças, ouvi-las, ensiná-las a ouvir e a se expressar. Seu jeito calmo, sempre tranquilo e sempre pacífico, deu a ele o estereótipo de um santo. O bem dos outros é tão parte da vida e da obra de Fred Rogers que ele se tornou um ícone dos sentimentos bons. Um avatar do carinho.

Naturalmente, ele é interpretado por Tom Hanks, que precisa se esforçar para sumir no papel, mas consegue, muito graças ao trabalho da diretora Marielle Heller. Porém, o filme não é sobre a vida dele, e sim sobre a vida de Lloyd Vogel, papel de Matthew Rhys. Ele é um jornalista cínico, que desistiu há décadas de procurar o bem no ser humano, e recebe a missão de escrever um perfil sobre o afamado Mr. Rogers. Ele vai em busca de podres, de esqueletos no armário, mas encontra um estereótipo vivo.

Leia também  God of War - Herança humana | Silas Chosen

Rogers passa então a tratar Vogel como um paciente seu. E a relação entre os dois muda a vida de Vogel, ensinando-o que ainda há lugar no mundo para esperança. Melhor momento para aprender isso não existe, já que Vogel tinha acabado de se tornar pai.

Um dia Lindo na Vizinhança não nega as dificuldades que todo mundo tem. Mesmo o Mr. Rogers tem seus problemas. Mas explica que todo mundo tem a capacidade para o bem, uma força inexplicável de se preocupar com o bem estar de todos à sua volta, especialmente por entender que mesmo as pessoas mais santas são também honestos pecadores.

Death Stranding

Death Stranding é um jogo de PS4 onde você controla Sam (Norman Reedus), e tem que levar suprimentos importantes de uma localidade a outra, através de um mundo pós-apocalíptico por conta de uma humanidade toda aprisionada numa quarentena sem data para acabar.

Hideo Kojima não previu o futuro, não fez um jogo sobre o estado da humanidade em 2020. Mas Kojima já sabia que o isolamento, a solidão e nossa necessidade por contato são questões fundamentais, e que nós não estamos sabendo abordá-las corretamente.

Além de uma história sobre sacrifício, sobre um homem levando nos ombros a salvação para centenas de outras pessoas, muita bizarrice clássica do Kojima e uma jogabilidade até viciante para algo tão mundano (o grosso do jogo se resume a, literalmente, impedir Sam de tropeçar), Kojima criou um sistema completamente inovador, que poderia mudar profundamente a maneira como enxergamos games online.

Se você precisa atravessar algum obstáculo, ele pode, entre outras coisas, criar uma escada, colocá-la no cenário, e usá-la para atravessar. Acontece que qualquer outro jogador no mundo que passar por aquele mesmo obstáculo tem uma chance de encontrar a sua escada, com o seu nome, usá-la e ainda mandar um joinha para você.

Quanto mais o jogo passa, mais você nota que você, junto com uma comunidade de milhares de jogadores, estão construindo um mundo novo juntos. Sua maneira de jogar ajuda outros jogadores.

Kojima está anos à frente de muita gente.

Jojo Rabbit

E Taika Waititi, o diretor menos ortodoxo de Hollywood, tentou seu filme de Oscar com Jojo Rabbit.

Jojo, o estreante Roman Griffin Davies, é um garoto alemão que está completamente enamorado com a figura de Hitler e toda a parafernália nazista e vê seu mundo entrar em choque quando descobre que sua mãe está escondendo uma garota judia dentro de sua casa.

Waititi cria uma fábula sobre a origem do ódio e quais alicerces precisam ser destruídos para que o ódio seja derrotado. Jojo aprendeu, de novo e de novo, que precisa odiar judeus. Mas, ao encontrar um “membro da raça inimiga”, não consegue exatamente encontrar os motivos pelos quais aquele ódio é tão necessário. Ao invés de uma inimizade virtual, uma amizade verdadeira cresce e, enquanto os rumos da guerra vão moldando o país, a relação entre Jojo e Elsa (Thomasin McKenzie) começa a anular tudo o que a juventude hitlerista ensinou a Jojo.

Não sem resistência. Jojo tem como amigo imaginário o próprio Hitler (interpretado pelo próprio Waititi), que posa como aquele seu lado conservador – aqui no sentido literal da palavra, de ser o lado que luta ferozmente contra qualquer mudança – suas noções pré-existentes. Seu preconceito. Jojo começa a aprender que seu herói não faz nenhum sentido, que o ódio não tem lógica nenhuma, especialmente quando conhecemos o objeto do nosso ódio.

É um filme sobre a esperança da liberdade que um dia chegará, e de como iremos dançar quando formos livres.

………….

Tem algum filme, livro, game, série, HQ, que você viu recentemente que te fez pensar que nós temos que cuidar uns dos outros?  Isso não é só parte da nossa fé e da nossa ética, é o manual básico para construir qualquer tipo de futuro que valha a pena viver.

Especialmente em tempos de crise, onde esse futuro é incerto, o esforço individual e coletivo precisa ser o mesmo que Jesus tentava ensinar por palavra e exemplo.

Cuide do próximo. Seja parte da cura. Mesmo que isso signifique, no momento, ficar em casa.

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

1 Comments

  1. Franklin disse:

    Ótimo texto. Simples e direto, e que nos faz refletir muito sobre esses dias que vivemos.

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: