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06/maio/2024Em 2023, dois dos nossos 16 estudantes de doutorado tinham decidido estudar a carta de Tiago. Francie Cornes se propõem a descobrir os motivos que os levaram a carta e perguntar se ainda existem debates a respeito do lugar dela nas Escrituras.
Certa vez, o reformador protestante, Martinho Lutero descreveu a carta de Tiago como: “Epístola de palha” (Palavra e sacramento I). Este comentário fomentou, ao longo de séculos, o debate sobre a carta e a forma como deveríamos lê-la tendo em vista a sua relação com o restante da Bíblia. O ponto central é saber se o texto é coerente com resto das Escrituras. Tiago aponta para as nossas ações como sendo o marco da nossa fé e diz que “a fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta” (Tiago 2.17). À primeira vista, isto parece sem sintonia com os escritos de Paulo, sobretudo, quando ele fala a respeito da salvação pela fé (Efésios 2.8-9). Sentamos, portanto, com dois estudantes do programa de doutorado da Tyndale House que estão trabalhando na carta de Tiago, para descobrir por que eles acharam que valeria a pena estudá-la e como poderíamos ter certeza de que ela se enquadra na história das Escrituras.
Nick List está no terceiro ano do seu doutorado. Ele esta trabalhando o tema da teodiceia (buscando compreender a relação entre a bondade de Deus e a existência do mal) e a antropologia na carta de Tiago. O seu projeto apresenta as seguintes questões: como a carta descreve o caráter de Deus em resposta às experiências humanas do mal? E o que isso significa para as ideias presentes no I e II século d.C. a respeito da humanidade e do seu relacionamento com Deus?
Joe Allen está prestes a iniciar o segundo ano do seu doutorado sobre a cristologia na carta de Tiago, analisando o que o autor disse e o que não disse sobre Jesus. Apesar dos projetos serem bem diferentes, tanto Joe, quanto Nick tiveram de enfrentar os debates em torno do texto. Antes de compartilharem as razões pelas quais optaram pela carta de Tiago, eles explicaram quais foram as questões e porque a redação bíblica, por vezes, é deixada de lado pelos acadêmicos.
Por que algumas pessoas têm dúvidas sobre a carta de Tiago?
Acontece que havia dois influentes alemães, conhecidos como Martim, particularmente envolvidos. Conforme mencionado anteriormente, o primeiro foi Martinho Lutero que escreveu: “Portanto, a epístola de São Tiago é realmente uma epístola de palha se comparado com os outros escritos das Escrituras (escritos de João, Paulo e Pedro), pois não tem nada da natureza do evangelho” (Palavra e sacramento I).
Na visão de Lutero, a carta diz algumas coisas úteis, mas ao concentrar-se nas nossas obras como o marcador da nossa fé, ele sentiu que Tiago não havia deixado claro que as nossas obras não salvam e que só poderíamos ser salvos por meio de Jesus. Por isso, Lutero a relegou como a última carta do Novo Testamento. Joe explica: “Esse julgamento teve uma grande influência nas interpretações subsequentes da carta até os presentes dias. Portanto, há um sentimento de que a carta de Tiago é peculiar ou deficiente em alguma medida”.
O segundo Martin foi o alemão Martin Dibelius, um acadêmico bíblico do início do século XX. Ele escreveu um comentário sobre a carta, afirmando que ela era o resultado de uma coleção aleatória dos discursos famosos de Tiago e que “não continha nenhuma teologia” (Um comentário da Epístola de Tiago, Fortress Press, 1976).
Nick acrescenta: “Mais uma vez, isso conduziu a uma negligência no meio acadêmico porque, se o estudioso bíblico está interessado na teologia e nos seus argumentos coesos, a carta de Tiago não seria estudada, considerando as palavras de Martin Dibelius. Assim, sinto que finalmente nós alcançamos um ponto na história recente da pesquisa em que superamos as limitações causadas pelos Martins e interpretamos o texto iluminado pelos seus próprios termos”.
Apesar de tudo isso, Nick e Joe estão destinados a passar por um período estudando a carta de Tiago. Então, por que eles concluíram que vale a pena estudá-la e confiar nela como a Palavra de Deus? Ao longo da nossa conversa essas duas grandes ideias estarão em destaque.
A carta de Tiago está de acordo com as Escrituras
Em resposta à questão de saber como podemos confiar que a carta é um dos escritos que compõem as Sagradas Escrituras, Nick começa dizendo que o texto fala por si: “Penso que há um reconhecimento de que existem coisas verdadeiras e úteis recomendadas na carta e que, uma vez aplicada na vida das pessoas, ela se tornaria uma representação perfeita do discipulado na vida cristã”.
Para Joe, tudo se resume ao conhecimento que Tiago tem a respeito de quem Deus é. Encontramos na carta, “um Deus que é o Pai das luzes, que proporciona constantemente suas bênçãos à criação. Este Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes, e está pronto para curar e perdoar os pecados. Também vemos que, enquanto comunidade, se estamos consumidos pela inveja, Deus nos dá mais graça”. Joe continua: “E para mim, se isso está no centro da teologia de Tiago, como diz Nick, a carta de Tiago fala por si mesma e faz todo o sentido para o resto das Escrituras”.
Sobre a dificuldade de relacionar os escritos de Tiago com as produções do apóstolo Paulo, Joe descobriu, por meio de suas investigações, que há coerência entre elas. Na visão de Martinho Lutero: “[A carta de Tiago] é categoricamente contrária a de Paulo e também a todos os demais escritos das Sagradas Escrituras, pois nela, a justificação é atribuída às obras (2.24)” (Palavra e sacramento I). Joe reconhece que esta aparente contradição poderia gerar em nós certa dúvida a respeito da confiabilidade da carta de Tiago. Eu diria que isso no faz voltar ao apóstolo Paulo e perguntar: o que é que realmente ele quis dizer sobre as obras na vida cristã? Ver-se-á que tanto Paulo, quanto Tiago possui uma visão elevada das obras como resultante da fé. Penso que Tiago nos ajuda na leitura de outras partes do Novo Testamento. E quando nós fazemos essas leituras, percebemos que a carta de Tiago é coerente com as demais partes.
Outra crítica à carta de Tiago está ligada ao fato dos seus escritos contradizerem, aparentemente, o Antigo Testamento. Nick argumenta que Tiago está teologicamente em consonância com ele, mas para captar essas conformidades é preciso compreender as influências culturais oriundas do contexto greco-romano presentes na linguagem e na retórica da carta. Frequentemente, nos ambientes acadêmicos, os escritos de Tiago são considerados como um “texto de sabedoria judaica”. Ao lermos o texto nesta perspectiva, poderemos achá-lo chocante quando, aparentemente, ele se encontrar contradizendo o pensamento da principal corrente judaica. Por exemplo, de acordo com Tiago, Deus não põe ninguém à prova porque ele não pode ser tentado pelo mal (Tiago 1.13). Essa ideia parece estar em contradição com os episódios do Antigo Testamento, conforme vemos, por exemplo, no teste que Deus fez com Abraão em Gênesis 22. Por meio de sua pesquisa, Nick compara a carta com os escritos greco-romanos, sobretudo, dos pensadores da época que seguiam filosofias como o Platonismo Médio. Ele descobriu que as crenças predominantes de uma cultura que considera a bondade de Deus, moldam a forma como as pessoas falam dele. Mesmo que os cristãos dessa cultura defendam a mesma teologia que os crentes de outros lugares, a sua forma de expressar as coisas será inevitavelmente moldado pelo seu contexto imediato.
Esta abordagem ajudou Nick a explorar como, em uma cultura influenciada pelo pensamento platônico, a ideia de teste seria inevitavelmente associada ao mal. Por isso Tiago registrou que Deus não tenta as pessoas e, em vez disso, Nick atribuiu a origem do mal ao desejo humano. A ideia central é coerente com o enredo canônico, mas a linguagem utilizada por Tiago é moldada pelo contexto histórico da carta. Nick reflete: “Ao ler o texto, considerando também o corpus mais amplo da literatura da época, veremos como podemos explicar o que, a priori, pareceria contraditório quando lidas em contraste com o contexto judaico tradicional”.
Joe também salientou que a carta de Tiago é cristológica (possui uma teologia sobre Jesus Cristo) e que, com isso, se enquadra perfeitamente na narrativa maior do Evangelho das Escrituras. A carta, por exemplo, inicia da seguinte forma: “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tiago 1.1). Joe diz que: “Isto é bastante significativo, pois, esse verso revela que Jesus Cristo é digno da devoção de Tiago e que ele é o Senhor, o Cristo e o Messias”. Joe também destaca outro trecho da carta. O verso diz: “Meus irmãos, como tendes fé em nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória, não façais discriminação de pessoas” (Tiago 2.1, ARA21). Aqui novamente vemos como, para Tiago, Jesus é o Senhor da glória, revelado nas Escrituras, e que a sua visão sobre a fé é, em última análise, orientada por Cristo.
A carta de Tiago é relevante e útil para os cristãos atuais
Nick e Joe ficaram impressionados com o padrão estabelecido por Tiago no que se refere à maneira em que os cristãos devem viver suas vidas de fé, ao mesmo tempo, em que se encontram numa cultura secular. Joe afirma que a carta é “realmente convincente no que tange a visão de como deveríamos viver no mundo”. Nick contribui explicando: “Penso que os cristãos estão perenemente perguntando sobre os seus envolvimentos na cultura e os seus lugares no mundo que os rodeiam. [A carta de Tiago], portanto, é um bom modelo para refletir sobre a forma como deveríamos nos relacionar com aqueles que se encontram fora da igreja, cercados pelo mundo em geral”.
Ao longo da nossa conversa, um tema que, vire mexe, Nick e Joe falavam era sobre a riqueza. Na carta, Tiago faz um apelo aos cristãos para que vivessem de forma distinta, e isso envolvia tratar os ricos e os pobres com imparcialidade (Tiago 2.1-9). Ele inclusive faz uma advertência contra o aumento sem freio do patrimônio (Tiago 5.1-5). Nick explicou que, no contexto social em que Tiago se dirigia, os ricos ocupavam todas as posições mais altas da sociedade, é por isso que ele diz que os cristãos deveriam tratar as pessoas com imparcialidade, pois esta ação, certamente iria à contramão das normas sociais da época. Joe complementa: “Nós, ingleses do século XXI, tranquilamente cairíamos na categoria dos ricos apontados pelo autor da carta”. E Tiago tem uma palavra severa para nós: vocês não sabem que isto pode ser realmente perigoso para a nossa caminhada com Deus? Nick salienta que viver radicalmente diferente da cultura que os rodeavam, colocariam os cristãos numa posição precária. Mas Tiago também os encorajou sobre os benefícios que obteriam após suportar tais provações; eles se tornariam perfeitos, completos e não sentiram falta de nada (Tiago 1.2-4). Portanto, o autor da carta, apresenta uma visão convincente da vivência cristã no mundo contemporâneo, trabalhando assuntos como o discurso, a oração, a pacificação, a humildade e a misericórdia, e lançando um chamado vigoroso para viver de maneira distinta numa época em que a riqueza e as disparidades sociais parecem aumentar cada vez mais.
O resultado do nosso debate ficou claro que, tanto Joe quanto Nick foram pessoalmente desafiados pela mensagem da carta de Tiago. Longe de ser “uma epístola de palha”, a carta continua a desafiar aos normais sociais e a oferecer perspectivas profundas para a vida dos cristãos de hoje. Os dois autores defenderam de forma convincente a razão pela qual ainda há muito a ser estudado na carta pelos futuros doutorandos.
Francie Cornes é responsável pela área de Comunicação da Tyndale House |
Texto original: Faith and works: Exploring theological tensions in James. Tyndale House Cambridge. Traduzido por Gedimar Junior e publicado no site Cruciforme com permissão. |