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18/mar/2024Tony Watkins destaca como nossa cultura secular pode influenciar a maneira como vemos a Bíblia e sugere como os cristãos podem levar isso em consideração ao ler as Escrituras.
Para alguém que vive no Ocidente moderno, é difícil imaginar viver na Grã-Bretanha em 1611, o ano em que a Versão King James da Bíblia foi publicada. Essa versão da Bíblia se tornou a padrão em inglês, embora não tenha sido a primeira a estar amplamente disponível, e é o livro mais vendido de todos os tempos. Menos de um século antes, William Tyndale teve que fugir para a Alemanha para trabalhar em sua tradução para o inglês e, posteriormente, foi martirizado por seus esforços. Isso não ocorreu devido à oposição à religião, mas à forma dela que Tyndale defendia: o protestantismo. Todos compartilhavam uma visão de mundo cristã, embora houvesse tensões teológicas significativas, resultando em algumas ações horríveis. Em 1611, todos na Grã-Bretanha devem ter ficado cientes das diferenças acentuadas entre protestantes e católicos romanos. No entanto, a possibilidade de não ser cristão de alguma forma era praticamente impensável.
Para alguém vivendo em 1611, no entanto, seria difícil imaginar viver em nossa sociedade moderna, onde é normal não se identificar com religião alguma e os cristãos são vistos como esquisitões. Vivemos em uma época na qual pode ser fácil viver sem consideração a Deus. A ciência moderna pode explicar tanta coisa que, para muitas pessoas, parece óbvio rejeitar um criador, zombar de seres sobrenaturais e imaginar que, com o tempo, os seres humanos podem encontrar soluções tecnológicas para todos os problemas. No mundo de hoje, é fácil as pessoas presumirem que as afirmações da Bíblia foram varridas pela maré de nosso conhecimento em expansão sobre o mundo e que é, na melhor das hipóteses, um relicário de uma era há muito passada.
O filósofo Charles Taylor argumenta que o aspecto mais significativo de nossa era secular não é a divisão entre sagrado e secular (embora exista uma), nem que a espiritualidade esteja em declínio (essa é realmente uma questão complicada). A questão principal, ele diz, é que ideias religiosas agora estão abertas ao debate; a cultura ocidental não possui mais uma visão de mundo cristã padrão inquestionável. No entanto, todas as outras perspectivas também estão abertas ao debate. Todos sabem que alguém argumentará contra aquilo em que acreditarmos. O turbilhão de escolhas em relação a ideias, crenças e práticas cria o que Taylor chama de ‘pressões cruzadas’: a cultura é puxada em diferentes direções. Às vezes, os crentes se encontram se perguntando se seus amigos ateus podem estar certos; mas os não-crentes às vezes se veem assombrados pela possibilidade de que Deus possa existir.
Como isso se reflete nas formas como as pessoas interpretam a Bíblia em uma era secular? Sugiro que isso ocorra de cinco maneiras interconectadas.
Como nossa era secular vê a Bíblia
Em primeiro lugar, muitas pessoas simplesmente não conhecem a Bíblia. Provavelmente conhecem algumas ideias ou frases bíblicas familiares, sem perceber de onde vêm, mas não conhecem as histórias porque a observância religiosa não faz mais parte da vida da maioria das pessoas.
Em segundo lugar, muitas pessoas não entendem a Bíblia. Elas não percebem que foi escrita por muitos autores ao longo de cerca de 1500 anos, em uma variedade de gêneros. Sabem pouco sobre o contexto cultural e histórico ou a geografia. Não entendem a relação entre o Antigo e o Novo Testamento, se é que sabem sobre eles.
Em terceiro lugar, muitas pessoas não confiam na Bíblia. Elas absorveram ideias negativas generalizadas sobre ela ser pouco confiável ou que foi refutada pela ciência. Em uma pesquisa realizada para a Sociedade Bíblica em 2018[1] (no Reino Unido), os participantes escolheram cinco palavras para descrever sua resposta à Bíblia. As duas escolhas mais comuns foram ‘desatualizada’ (36%) e ‘contraditória’ (32%). Outras atitudes típicas em relação à Bíblia são de que ela é confusa, ambígua e falsa, embora as pessoas também a vejam como uma fonte potencial de orientação ou inspiração. Muitos se identificam com a visão do ator Ian McKellen, que diz: “Já pensei muitas vezes que a Bíblia deveria ter um aviso no início dizendo: ‘Isso é ficção’”.
Em quarto lugar, muitas pessoas são altamente desconfiadas da mensagem da Bíblia, associando-a a atitudes discriminatórias como misoginia, racismo e homofobia. A terceira resposta mais comum na pesquisa da Sociedade Bíblica foi que a Bíblia é “moralista” (25%). As pessoas rapidamente condenam a Bíblia por estar fora de sintonia com as sensibilidades contemporâneas.
Uma quinta maneira pela qual nossa era secular molda abordagens à Bíblia está ligada à nossa epistemologia padrão, isto é, como pensamos sobre a verdade e o conhecimento em geral. Desde, digamos, a declaração de Descartes, “Penso, logo existo” (1637), a cultura ocidental tem sido dominada pelo racionalismo: a valorização da razão acima de tudo. Como resultado, “conhecimento” é visto como fatos, proposições e coisas que podem ser provadas, ou seja, objetividade. Qualquer coisa relacionada a perspectivas subjetivas, emoções ou a nós mesmos é vista como inferior. Leitores ocidentais abordam a Bíblia com uma mentalidade ocidental: sem perceber, prestamos atenção especial a informações e declarações que são verdadeiras ou falsas. Queremos saber se a arqueologia pode provar ou refutar os relatos históricos da Bíblia. Os leitores tropeçam em frases como “Ele estabeleceu a terra sobre seus fundamentos, para que jamais se abale” (Sl 104.5), ou na declaração de Jesus de que qualquer um que “não odeie” sua própria família não pode ser seu discípulo (Lc 14.26).
Cristãos na era secular
Todos esses problemas afetam os cristãos. Uma pesquisa de 2018 com millennials[2] (aqueles nascidos entre 1981 e 1996) revelou que 51% dos cristãos nessa faixa etária só se envolvem com a Bíblia algumas vezes por ano ou menos. Minha impressão a partir de conversas ao longo dos anos é que um número surpreendente de evangélicos, apesar de seu alto respeito pela Bíblia como palavra de Deus, têm apenas um conhecimento superficial dela. Essa desconexão surge em parte porque os cristãos não são imunes às pressões cruzadas da era secular. As pessoas que se tornam cristãs descobrem uma dinâmica radicalmente nova em suas vidas à medida que o Espírito Santo passa a habitar nelas.
No entanto, sua cultura ainda os molda porque Deus criou os seres humanos como seres culturais, não como indivíduos isolados. Nenhum de nós vive em um vácuo: nossas comunidades formam nossos modos de comportamento, nossos valores e nossas maneiras de pensar. Nossa cultura nos molda decisivamente, mas estamos tão inconscientes disso quanto do ar que respiramos. Portanto, os cristãos também sentem o mundo moderno tornando fácil conduzir a vida sem referência a Deus. Engajar-se com as Escrituras pode parecer apenas útil, mas não aquilo que fornece orientação fundamental à vida.
Os cristãos resistem às ideias de que a Bíblia é desatualizada, confusa e contraditória, mas às vezes também têm dificuldade em entendê-la e ver como ela aborda nossas situações. A ideia de que a Bíblia é discriminatória apresenta um grande desafio para os leitores cristãos hoje. A Bíblia foi usada para justificar a escravidão e outros maus-tratos às pessoas, e alguns trechos são muito desconfortáveis. No entanto, é a própria Escritura que fornece motivos para ver todos os seres humanos com igual valor e dignidade e para resistir à discriminação com base no sexo ou etnia.
Talvez a maneira mais abrangente pela qual a era secular afeta os cristãos na leitura da Bíblia também seja a menos reconhecida. A epistemologia padrão que descrevi acima é tão intrínseca à cultura ocidental que passa despercebida — tanto pelos cristãos quanto por qualquer outra pessoa. É o que o sociólogo Peter Berger chama de uma “estrutura de plausibilidade”, tão profundamente enraizada na sociedade que passa despercebida e não é contestada. Os cristãos consideram as Escrituras como palavra de Deus, no entanto, muitos, inclusive eu, acabam analisando o texto em vez de meditar no que seu Autor Divino está dizendo. No primeiro caso, eu busco a Bíblia para encontrar fatos e informações sobre ela; no segundo, as Escrituras me buscam e me revelam. Admito que esta é uma falsa oposição: identificar a estrutura, características e significado do texto não é incompatível com ouvir a voz de Deus. Na verdade, o estudo diligente muitas vezes é o que me permite realmente ouvir o que Deus está dizendo. O problema é que o envolvimento intelectual com a Bíblia facilmente se torna o fim, não o meio. Saber informações sobre Deus não é conhecer a Deus.
Reaprendendo a ler a Bíblia
Como, então, lemos a Bíblia em uma era secular? Isso requer uma postura de humildade e oração, abrindo-se para a palavra de Deus e nos submetendo a ela, não tentando extrair fatos dela, ou julgá-la de acordo com os escrúpulos de nossa época. É fundamentalmente uma atividade relacional — querendo e esperando ouvir a voz de um Pai celestial —, não uma atividade analítica. Não se trata de perguntar “O que eu quero fazer com este texto?”, mas “O que Deus quer fazer comigo através deste texto?”.
Com essa atitude, ao ler passagens que não entendo ou que me deixam desconfortável, desejarei aprofundar minha compreensão para descobrir o que não estou vendo por causa das minhas bagagens culturais ou da minha própria ignorância. Quero habitar nas Escrituras, mergulhando nelas e vivendo-as, não apenas lendo-as. Então, também serei capaz de viver com um pouco de mistério, reconhecendo que, em minha finitude e falibilidade, não compreenderei tudo imediatamente, se é que compreenderei. À medida que habito nas Escrituras e aprofundo meu relacionamento com Deus por meio delas, cresço em minha confiança nelas e naquele que fala por meio delas.
Leituras adicionais
Abernethy, Andrew. Savoring Scripture: A Six-Step Guide to Studying the Bible. Downers Grove, IL: IVP, 2022.
Smith, James K. A. Como (não) ser secular. Brasília: Monergismo, 2021.
[1] ‘Pesquisa Lumino’, realizada pelo YouGov para a Sociedade Bíblica, 2018.
[2] Pesquisa “Digital Millennials and the Bible”, realizada pela ComRes para a Sociedade Bíblica, CODEC na Universidade de Durham e Barna Group, em 2018.
Texto original: Reading the Bible in a Secular Age. Tyndale House Cambridge. Traduzido e publicado no site Cruciforme com permissão. |
Tony Watkins é o membro de Engajamento Público na Tyndale House. Seu doutorado explorou ideias de florescimento na literatura profética e narrativas nos meios de comunicação de hoje. Tony é palestrante e escreve sobre a Bíblia e os meios de comunicação há anos. Ele trabalhou anteriormente em parceria com várias organizações, incluindo a Lausanne Media Engagement Network, Damaris Norway e IFES Graduate Impact. Foi professor adjunto na NLA University College, Noruega, e foi professor visitante em várias outras instituições acadêmicas. Tony é casado com Jane, que é Diretora de Mentoria para Crescimento de Discípulos Jovens. |