“Ninguém é perfeito” é uma resposta ruim aos escândalos nas igrejas | Dale Chamberlain

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Nos últimos anos, o movimento evangélico vem passando por um acerto de contas quando se trata de abusos e escândalos. Mas, por mais cansado que eu esteja em ler manchetes sobre líderes cristãos que estão cultivando culturas de abuso, talvez eu esteja ainda mais cansado da defesa composta de três palavras que se faz dessas personalidades, qual seja: ninguém é perfeito.

Devido ao trabalho de jornalistas investigativos, detalhes dolorosos de abuso por parte de certos líderes cristãos vieram à tona. Por exemplo, logo após sua morte em 2020, foi revelado que o apologista Ravi Zacharias havia se envolvido em comportamento sexual e espiritualmente abusivo contra massoterapeutas por mais de uma década.

As pessoas que denunciaram o abuso foram atacadas por tentarem destruir o legado do ministério de décadas de Ravi Zacharias. As pessoas que continuam a apoiar o apologista de maneira irrestrita argumentam que, embora ele fosse falho, Deus ainda o usou para fins incríveis.

Mais recentemente, o podcast “The Rise and Fall of Mars Hill” abordou a vida da megaigreja de Seattle, repleta de controvérsias, plantada por Mark Driscoll. O podcast destacou uma cultura abusiva da igreja, repleta de bullying, misoginia e abuso espiritual. A igreja fechou suas portas logo após a renúncia de Driscoll em 2014.

“Cometi muitos erros… e um deles foi ir rápido demais… Meu caráter não acompanhou meus dons”, disse Driscoll em 2015. Ele agora pastoreia uma grande igreja em Scottsdale, Arizona.

O pastor sênior global da Hillsong Church, Brian Houston, renunciou recentemente depois que foi revelado que ele havia se envolvido em comportamento inadequado em relação a duas mulheres separadas, uma das quais era uma funcionária da Hillsong que renunciou por causa do comportamento de Houston, mas retornou um tempo depois por não conseguir encontrar trabalho. A Igreja Hillsong também foi acusada de encobrir má conduta e abuso sexual, além de cultivar uma cultura de liderança tóxica.

Em um e-mail para os membros da Igreja Hillsong após sua renúncia, Houston se descreveu como “imperfeito e falho, mas genuinamente apaixonado por Deus, pelas pessoas, pelo chamado e pela vida”. Houston continuou escrevendo: “Estou confiante de que meus erros não definirão quem eu sou”.

Em cada um desses casos, ações que somente podem ser descritas como abusivas são mencionadas por meio de uma linguagem suavizada de “erros” e “falhas”. Embora seja compreensível que figuras públicas apanhadas em uma rede de escândalos usem essa linguagem na tentativa de salvar a reputação, não faz sentido que nós nos juntemos a elas.

Vejamos pelo menos três razões pelas quais a declaração de que ninguém é perfeito é uma resposta ruim a escândalos e histórias de abuso na igreja.

1. Deus não faz vista grossa ao abuso. 

Em razão da estatura e influência de certos líderes cristãos, muitos são tentados a minimizar a gravidade de seus delitos, a enfatizar o perdão de vítimas e testemunhas e a reprimir controvérsias.

Não é assim que Deus responde ao abuso — mesmo quando se trata de alguém talentoso e ungido. Quando o rei Davi forçou-se sobre Bate-Seba e matou seu marido Urias para encobrir a situação após descobrir que ela estava grávida, o profeta Natã entregou as seguintes palavras vindas diretamente de Deus a Davi:

Por que desprezaste a palavra do Senhor, fazendo o mal aos seus olhos? Tu mataste à espada Urias, o heteu, e tomaste para ti a sua mulher; sim, tu o mataste com a espada dos amonitas. Agora a espada jamais se afastará da tua família, porque me desprezaste e tomaste para ti a mulher de Urias, o heteu. Assim diz o Senhor: Da tua própria família trarei o mal sobre ti; tomarei tuas mulheres perante os teus olhos e as darei a teu próximo, e ele se deitará com tuas mulheres à luz do dia. Pois tu o fizeste em segredo, mas eu farei o que disse perante todo o Israel e à luz do dia. (2Sm 12.9-12 )

Sem dúvida, há uma linha muito clara entre “não ser perfeito” e “perpetrar o abuso descarado”, e Davi caiu no lado errado dessa linha.

Como resultado, a fase final da vida de Davi foi atormentada por conflitos, violência, dor e morte. Apesar do fato de que Deus usou Davi poderosamente no passado, e embora ele nunca tenha revogado as promessas que fez a Davi, Deus não o impediu de experimentar a devastação que suas ações causaram. Sua vida nunca mais foi a mesma, e esse foi o justo julgamento de Deus.

Deus não faz vista grossa ao abuso. Nem nós devemos fazer. Fazer isso cauteriza nossas consciências e nos ensina a minimizar ou aceitar atos hediondos, desde que tenhamos apreço pela pessoa que os praticou. Ninguém é perfeito. Mas nem todo mundo é um abusador.

Isso não quer dizer que devemos nos colocar no lugar de Deus, exigindo julgamento sobre esses líderes, além de garantir sua remoção de posições para as quais não são mais qualificados e são um perigo de causar mais danos a outros. Mas é dizer que devemos considerar seus abusos com a mesma medida de sobriedade que Deus, mesmo quando se trata de seus servos mais favorecidos.

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2. Uma denúncia inequívoca de abuso não nos torna culpados por associação. 

Muitas vezes ligado à nossa indisposição de denunciar abusos e escândalos em que nossos líderes cristãos favoritos estão envolvidos, há um profundo sentimento de vergonha. E isso porque, antes das revelações chocantes do que estava acontecendo a portas fechadas, admirávamos essas pessoas. Aprendemos com elas. Podemos ter ouvido seus ensinamentos e sido impactados de maneiras que moldaram profundamente a trajetória de nossas vidas espirituais.

E se estávamos errados sobre eles, sobre o que mais estávamos errados? Como eles podiam pregar coisas que nos eram tão úteis e, ao mesmo tempo, fazer coisas que eram tão nocivas aos outros? Podemos nos deparar com uma ansiedade atormentadora: se essas alegações são verdadeiras e tão sérias quanto tememos, de alguma forma nos tornamos culpados pelo erro deles?

Para as pessoas que eram próximas a esses líderes, realmente pode haver alguma responsabilidade por não fazerem o suficiente para enfrentar os abusos. Mas a graça alcança isso.

Ou talvez você esteve próximo da situação e esteja experimentando uma falsa sensação de culpa, porque na verdade não havia nada que você pudesse ter feito para evitá-la. Nesse caso, há muita coisa a ser trabalhada com Jesus e seu terapeuta. E a graça alcança isso também.

Para outros, nem sequer conhecíamos esses líderes pessoalmente, não poderíamos saber o que estava acontecendo a portas fechadas e não somos responsáveis ​​por nada que eles tenham feito. Contudo, tendo em vista que nos vemos tangencialmente associados a eles, nosso senso de autopreservação nos tenta fazer minimizar ou negar o que eles fizeram. Ninguém quer ovo na cara.

Precisamos de coragem para admitir que estávamos errados. Fomos enganados. Nós não sabíamos. Mas agora sabemos.

Deus pode e usa vasos quebrados. Mas quando vemos que um vaso tem rachaduras e fissuras tão extensas que não tem capacidade de reter água, a prudência nos diz que devemos reconsiderar o quanto confiamos nele.

3. Graça e justiça não se opõem. 

Nessas conversas, os temas da graça e do perdão muitas vezes se impõem. Por serem as principais virtudes da fé, é justo que seja assim.

No entanto, sempre que a linguagem da graça é empregada para interromper nossa busca pela verdade e justiça, entendemos mal o que a graça realmente é. Graça e justiça não se opõem.

Expor a verdade sobre o que os abusadores fizeram e tomar as medidas apropriadas em resposta a isso é uma graça para os abusados. Ouvir e valorizar as vozes dos sobreviventes restaura parte do que foi tirado deles: sua dignidade, seu arbítrio, suas valiosas contribuições para a comunidade dos crentes.

Para que o abusado experimente a graça, os abusadores precisam experimentar a justiça.

Isso não quer dizer que não haja graça disponível para aqueles que perpetraram abusos ou construíram culturas organizacionais que o toleram. Nas palavras pungentes, se não desconfortáveis, do pastor e autor Albert Tate, “Jesus veio tanto para o opressor quanto para o oprimido”.

No entanto, não há graça em negar ou minimizar o impacto dos escândalos da igreja e abusos de liderança. Jesus nos diz que manter as duras realidades nas trevas é obra dos malfeitores.

E o julgamento é este: A luz veio ao mundo, e os homens amaram as trevas em lugar da luz, pois suas obras eram más. Porque todo aquele que pratica o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que as suas obras não sejam expostas. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, a fim de que se manifeste que suas obras são feitas em Deus. (Jo 3.19-21)

Quem faz o que é verdadeiro não teme a luz. Alguns acreditam erroneamente que se opor vocalmente às injustiças sistêmicas que ocorrem dentro da igreja equivale a se opor à própria igreja. Mas nada poderia estar mais longe da verdade.

Nada disso é fácil. Na verdade, tudo é incrivelmente doloroso. Mas, na tentativa de minimizar nossa própria dor, não nos tornemos culpados de deixar de cuidar da dor dos abusados ​​e maltratados. Em nossas negações, apenas aprofundamos suas feridas.

Tomemos o exemplo de Jesus, que por nossa causa mergulhou nas profundezas da dor para que pudéssemos ser curados.

Traduzido e revisado por Jonathan Silveira.

Texto original: ‘Nobody’s Perfect’ Is a Poor Response To Church Scandals. Kainos Project.

Dale Chamberlain (M.Div. Talbot School of Theology) é pastor, podcaster e escreve com sua esposa Tamara no blog Her&Hymn.

 

 

 

2 Comments

  1. Wilson de Mello Junior disse:

    Este argumento que “ninguém é perfeito”, é no mínimo uma explicação injustificável. Os erros são parte de nossas imperfeições como resultado ao pecado; os escandalos é resultado de deficiência de caráter e de mau testemunho de um cristao.

  2. Diego Stallone disse:

    Excelente reflexão, além do tema ser atual e pertinente. Obrigado por compartilhar.

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