O amor não é fofura, mas força | Tiago Cavaco

Colapso ou Vitalidade: Cristianismo Liberal vs Cristianismo Conservador | David T. Koyzis
20/fev/2017
Igreja e Cultura | Timothy Keller, Michael Horton e Matt Chandler
23/fev/2017
Colapso ou Vitalidade: Cristianismo Liberal vs Cristianismo Conservador | David T. Koyzis
20/fev/2017
Igreja e Cultura | Timothy Keller, Michael Horton e Matt Chandler
23/fev/2017

Apóstolo Paulo, por Rembrandt van Rijn (c. 1657).

Quando lemos o texto de 1Coríntios 13, chegamos à conclusão prática que é tudo, menos romântica: o amor não acontece por ser natural. O amor acontece porque é necessário. A existência do amor numa igreja não é resultado de essa igreja ser boa, mas resultado de essa igreja ser má. Como assim? A necessidade de haver amor não é a cura, mas a doença. Precisarmos de amor não é, em sentido mais estrito, um fato positivo. Que o amor seja preciso parte de um fato negativo. O amor tem de existir para resolver a doença que é a sua ausência. A cura é, então, a muito urgente existência do amor. Logo, só é possível que haja amor numa igreja quando essa igreja reconhece antes que é má. Porque o amor impõe-se pelo fato de a igreja naturalmente se especializar no seu oposto, a inimizade.

Quando o apóstolo Paulo chama a igreja de Corinto ao amor, não o faz porque os coríntios estavam craques na tarefa de se amarem uns aos outros. Ele chama aquela igreja ao amor porque os coríntios estavam craques na prática de se tratarem mal. Os cristãos coríntios tratavam-se mal porque discutiam ferozmente entre si acerca de quais dons espirituais seriam mais importantes. Nessas discussões inflamadas, a maioria queria ter os dons miraculosos de falar línguas estranhas e profetizar. Por isso, 1Coríntios 13 não é um momento em que nos aliviamos porque, afinal de contas, amamos quase tudo à nossa volta. Não. Esse capítulo de 1Coríntios é um momento em que somos corrigidos com uma tarefa bem séria e exigente: temos de nos amar uns aos outros porque entre os dons espirituais esse é o dom espiritual por excelência. Como já vimos, o amor não é uma fofura em que nos deitamos — o amor é uma força em que transpiramos.

Ler bem esse texto leva-nos a um lugar em que ficamos de costas ao que nos diz a cultura dominante. Ao contrário do que cantam os refrões mais populares, não somos chamados a amar porque, bem lá no fundo do nosso coração, existe uma vontade de amar querendo extravasar. Não somos chamados a amar porque amar é tão natural para nós quanto respirar. Uma cultura que se convence precocemente de seus bons sentimentos é uma cultura mais alienada que acordada. Essa cultura se tornará a medida da sua própria qualidade. Essa cultura se tornará o centro de si mesma, numa espiral narcisista bem insuportável.

A lógica de 1Coríntios 13 é outra. E é assim: na realidade, o amor não condiz conosco. Somos chamados a amar porque o amor condiz com Deus. Consequentemente, o amor vai poder resolver aquilo que a sua ausência só piora. Porque Deus é o único com capacidade de resolver os problemas que são nossos e que não conseguimos resolver. O amor, que é uma característica dele, chega até nós através da fé. Aplicando isso pela negativa, nos damos conta de que aqueles que julgam fácil a solução amorosa, porque ela já existe dentro deles e só precisa de ser acordada, são os que mais contribuem para a continuidade do problema. Colocando isso de uma maneira muito pouco sutil: as pessoas que apresentam o amor como característica natural a elas próprias são mais perigosas do que as pessoas que mostram o ódio como sua característica natural. Por quê? Porque são pessoas que sugerem que dentro de si carregam a solução para o seu próprio pecado, coisa absolutamente oposta ao que a Bíblia ensina.

O amor verdadeiro se vê no ringue

É irônico, mas as pessoas que se apresentam como naturalmente amorosas acabam por sugerir uma salvação por obras e não pela graça. Porque essas pessoas que se julgam naturalmente amorosas creem que é a qualidade inata dos seus gestos que demonstra o melhor que existe, quando o que a Bíblia afirma é o contrário: só podemos alcançar a solução para qualquer coisa porque essa solução nos é dada gratuitamente por Deus. Por isso é que o apóstolo João, dos escritores do Novo Testamento o que mais se destacou explicando o que é o amor, escreveu: “Nisto está o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4.10). Ou seja, a mecânica do amor não repousa num bom sentimento que seja natural a qualquer ser humano, mas numa atitude externa a nós que é praticada pelo sacrifício que Deus fez, dando o seu Filho Jesus por nós. Fazendo uma relação direta muito dura: se as pessoas fossem naturalmente boas, não precisariam ser salvas — quando muito, precisariam ser reprogramadas à sua bondade original. Pessoas que não são naturalmente boas é que precisam ser salvas. O amor condiz com pessoas perdidas. Pessoas que “se acham” não precisam do amor para nada.

Logo, e voltando ao texto de 1Coríntios 13, o apóstolo Paulo aplicava o esquema com tenacidade: uma igreja tem de se render ao amor, não espalhá-lo naturalmente. A rigor, o verdadeiro amor que espalhamos naturalmente não é amor, é ódio. Odiar é o que fazemos naturalmente e sem esforço. Qualquer amor genuíno e duradouro precisa de esforço, de uma entrega que é tudo menos passiva. Até nos exemplos mais óbvios, quando pensamos em amor natural, como o exemplo do amor que sentimos pelos filhos, reconheceremos que na primeira infância deles tudo parece razoavelmente orgânico no que diz respeito aos nossos sentimentos por eles. Mas, com o crescimento daqueles que geramos, rapidamente concluímos que nos custa amá-los. Nosso amor diminui diante dos defeitos deles. E só crescerá se tomarmos a iniciativa.

Ora, esse reconhecimento de que a igreja é chamada a render-se ao amor e não a espalhá-lo naturalmente carrega consigo uma ética de luta. Significa que o amor é sinal de que Deus nos combate, não que Deus se rende aos nossos encantos. Uma igreja que verdadeiramente ame faz sempre uma inesperada declaração de derrota: foi vencida pelo Espírito Santo. É um paradoxo — é preciso que Deus ganhe e nós percamos para realmente podermos amar os outros. O amor verdadeiro vê-se no ringue.

O que nos concilia é o confronto

É por causa dessa ética de luta que, em 1Coríntios 13, Paulo apresenta o amor como arma. O amor surge como uma crítica do assunto que ele estava tratando, o das tais discussões que vimos acerca dos dons do Espírito Santo. Quando Paulo ensina os cristãos coríntios com essa carta que lhes escreve, interrompe a essa altura o assunto dos dons espirituais para trazer o assunto do amor. Se lermos atentamente todo o texto, perceberemos que o capítulo 13 parece não ter nenhuma relação com o 11 e com o 14. Por que então o amor é chamado ao assunto? Não estávamos aprendendo sobre dons do Espírito Santo? O que Paulo quer então com isso? Estaria fazendo um apelo a que nos concentremos no fundo bonzinho que existe dentro de cada ser humano para que a discussão acalorada sobre os dons espirituais se acalmasse? Como quem diz, “Vamos fazer um momento zen para que o nosso bom karma tenha uma chance?”. Não. O apóstolo Paulo está dizendo que o amor é urgente, e essa urgência está em tudo ligada com aquilo que em nós não é bom. Por isso, o amor aparece elogiado — por ser diferente do que há em nós e não por ser aquilo que já temos.

Todo o capítulo 13 se estrutura num jogo de contrastes: o lado do “Mesmo que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos” contrasta com o lado do “mas não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o prato que retine” (v. 1). O lado do “E mesmo que eu tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios, e tivesse todo o conhecimento, e mesmo que tivesse fé suficiente para mover montanhas” contrasta com o lado do “mas não tivesse amor, eu nada seria” (v. 2). O lado do “E mesmo que eu distribuísse todos os meus bens para o sustento dos pobres e entregasse meu corpo para ser queimado” contrasta com o lado do “mas não tivesse amor, nada disso me traria benefício algum” (v. 3). E depois Paulo descreve o amor, nessa mesma linha de contraste em relação àquilo que em nós é natural. O amor é apresentado como uma alternativa completamente diferente do nosso material humano de origem.

O amor é paciente; o amor é benigno. Não é invejoso; não se vangloria, não se orgulha, não se porta com indecência, não busca os próprios interesses, não se enfurece, não guarda ressentimento do mal; não se alegra com a injustiça, mas congratula-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais é vencido. Mas, havendo profecias, serão extintas; havendo línguas, silenciarão; havendo conhecimento, desaparecerá. Porque parcialmente conhecemos e parcialmente profetizamos; mas, quando vier o que é completo, então o que é parcial será extinto. Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança; mas, assim que cheguei à idade adulta, acabei com as coisas de criança. Porque agora vemos como por um espelho, de modo obscuro, mas depois veremos face a face. Agora conheço em parte, mas depois conhecerei plenamente, assim como também sou plenamente conhecido. Portanto, agora permanecem estes três: a fé, a esperança e o amor. Mas o maior deles é o amor (v. 4-13).

Na Bíblia, o amor não é um relaxamento que nos permite reencontrar a verdadeira substância da nossa personalidade. Na Bíblia, o amor é uma guerra que Deus declara a nós e ganha. O que nos concilia é o confronto.

Tirando forças da fraqueza

Por que é importante percebermos as coisas dessa maneira num livro que fala sobre a relação entre fé e vida na cidade moderna? Porque as esperanças para o tipo de comunidades cívicas que construímos são menores se ficarem principalmente ligadas às nossas qualidades naturais. Antes, é no reconhecimento das nossas fragilidades de saída que podemos construir soluções mais realistas e funcionais para a vida em comunidade. Da mesma maneira que o amor se impõe às igrejas locais por não estarem em condições ideais de manifestá-lo, até as comunidades que não são de fé podem almejar uma maior harmonia, precisamente por não contarem com ela por norma.

O amor impõe-se às comunidades de fé porque elas não estão à altura de manifestá-lo e porque, por isso mesmo, devem render-se a ele para que seja Deus a ganhar as guerras comuns entre homens dentro das igrejas. O paradoxo é que somos chamados a amar como Deus ama porque odiamos como os homens odeiam. Logo, o amor não é algo que fica guardado para quando nos damos bem uns com os outros, mas algo a que somos obrigados por naturalmente nos darmos mal uns com os outros. Reparemos nisto: o amor, a melhor coisa que há, é explicado à pior igreja do Novo Testamento, que é a de Corinto. Isso tem de nos fazer soar o alarme. O amor é algo de que precisamos porque, tal como os cristãos coríntios, temos conflitos uns com os outros.

Isso significa que o cristianismo sugere que os seres humanos são, por definição, o pior que podem ser? Não. Mas o cristianismo, com a doutrina do pecado original, sobre a qual já falamos no início, sugere um estado inescapável de maldade. Usando os termos teológicos usados por Agostinho, Adão e Eva eram no Éden posse non peccare — capazes de não pecar. Depois de pecarem, e consequentemente serem expulsos do Éden, Adão e Eva passaram a non posse non peccare — incapazes de não pecar. A visão radical, que o cristianismo defende quanto ao pecado original, não sugere que todo ser humano é um monstro. Mas, de fato, defende que nenhum ser humano é incapaz de ser um monstro. Por essa mesma circunstância é que o amor se impõe com força incontornável. Não há solução para o nosso pecado que precise de um poder menor que o do amor. O amor é mesmo uma força.

Trecho extraído e adaptado da obra “Ter Fé na Cidade: O Diálogo Entre Uma Pequena Igreja de Bairro e a Cultura“, de Tiago Cavaco, publicado por Vida Nova: São Paulo, 2017, pp. 64-72. Publicado com permissão.

Tiago Cavaco é formado em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa e pastor da Igreja da Lapa. Trabalhou dez anos em televisão, colabora com a revista Ler e mantém desde 2003 o blog Voz do Deserto. Casado com Ana Rute e pai de Maria, Marta, Joaquim e Caleb, é autor de "Ter Fé na Cidade, "Seis Sermões Contra a Preguiça", "Cuidado com o Alemão" e "Milagres no Coração" publicados por Vida Nova.
Neste livro inovador e provocativo, o autor responde a uma importante indagação: “A religião até pode ter servido para o meu antepassado que vivia no interior, mas como pode servir para a minha vida moderna na cidade?”.

Ao partilhar o diálogo que uma pequena igreja de bairro tem mantido com a cultura à sua volta, ele sugere uma resposta: o cristianismo é não apenas adequado para a vida moderna nos grandes centros urbanos em que habitamos, mas também urgente para essa vida. Quando temos fé em Cristo em contextos que podem ser desfavoráveis, podemos ter a verdadeira fé na cidade.

Publicado por Vida Nova.

Deixe uma resposta