Deixe-me começar este texto de maneira ousada: nenhum escritor de ficção ateísta, vivo ou morto, criou com sucesso um mundo à imagem de sua não-crença. A possibilidade de um mundo não-crente desaparece no momento em que um autor ateu exerce a imaginação para criar personagens conscientes em uma sociedade fictícia. Assim que o autor ateu cria um mundo fictício, ele preenche esse mundo com personagens vivos. Esses personagens devem ter uma aparência de vontade, intenção, emoção, civilidade e devem viver de acordo com as leis, tanto naturais quanto morais, de seu mundo. É no mundo secundário, nos tropos de caráter e identidade, em temas de verdade ou dúvida, naquelas questões de significado moral e crença, que a imaginação resiste e, em última instância, corrige a criatividade ateísta.
Não quero dizer que os romancistas ateus não tenham criado mundos fechados, povoados por personagens que negligenciam a moralidade ou que recusam a fé. Muitos fizeram isso. Basta olharmos para obras como O Sol Também se Levanta, de Ernest Hemingway, O Inominável, de Samuel Beckett, ou a trilogia de fantasia His Dark Materials, de Philip Pullman, para vermos mundos fictícios de moralidade arbitrária escritos a partir de uma cosmovisão ateísta. Esses, que constituem alguns dos textos mais aclamados pela crítica e mais populares do século XX, são apenas alguns exemplos de tentativas incrédulas de submergir, incomodar ou desfazer suposições teístas sobre a vida e a moralidade. O que estou dizendo é que, como produtos da imaginação, as comunidades auto-enclausuradas dos personagens de Hemingway, a distopia enlouquecedora de Burgess, até mesmo a celebração anti-teísta de Pullman sobre a mentira e (Lyra “Silvertongue”, a heroína de His Dark Materials, orgulha-se de sua capacidade de mentir com “convicção impassível”) não conseguem escapar das leis inerentemente teístas da imaginação. Em outras palavras, existem escritores ateus, mas não existem histórias ateístas.
Imaginação significa o poder de criar imagens e experiências novas e anteriormente desconhecidas, juntamente com formas abstratas de conhecer essas imagens e experiências (ou seja, não adianta escrever uma história sobre exploradores espaciais descobrindo um outro mundo se eu não imaginar maneiras em que alguém possa imaginar conhecer, entender, acreditar e se relacionar com esse mundo). É importante notar que na literatura, a imaginação cria aquelas imagens e experiências consistentes com a realidade última do autor. Deste modo, para usar um exemplo fantástico, um autor pode escrever uma história sobre uma árvore gigante falante que faz amizade com uma criança solitária, sem que tenha conhecido o personagem fantástico nem a criança. Isto se dá precisamente porque, na realidade última em que o autor habita, a língua, as árvores, a amizade e as crianças realmente existem. Embora as imagens da história sejam inteiramente novas – seus personagens nunca existiram antes da concepção mental –, o autor extrai uma antiga experiência sensorial (como a linguagem) daquelas realidades familiares cognatas, como árvores e crianças. A partir da fonte material fragmentada da realidade – sua natureza, suas propriedades físicas, seus diversos habitantes, juntamente com sua moralidade e senso de significado da vida – um autor forma livremente um mundo secundário feito conforme a imagem precisa de sua visão criativa.
Desta forma, o mundo imaginativo, não importa quão fantástico ou ilustre ele seja, é essencialmente uma realidade destilada, uma parcela deliberadamente elaborada do cosmos escrita para que os leitores tenham que lidar com os significados da vida e, ao lidarem com isso, devem entender esses significados de maneira mais plena e profunda. O que é tão importante lembrar, porém, é que o autor, independentemente de sua cosmovisão, tem a liberdade de criar qualquer tipo de mundo, repleto de qualquer tipo de personagem que ele queira a partir do material mental disponível a ele. Um autor pode criar qualquer mundo que seu coração desejar a partir da matéria-prima de sua realidade. E, assim, os autores estão sujeitos à grande lei da criatividade humana: criamos o que é novo e desconhecido a partir do que é antigo e conhecido. O ex nihilo não faz parte da imaginação humana.
Retornando ao meu ponto principal, por que nenhum autor jamais criou um mundo livre da moralidade teísta, isto é, de uma moralidade que transcende a condição humana e não contém verdades inerentes que apontam para um Ser superior? Um autor ateu é livre para escrever qualquer número de histórias humanistas seculares, livre para desfazer o antigo mito da crença cristã, livre para criar uma sociedade livre dos deuses opressivos de uma verdade superior, e ainda assim, nenhum deles fez isso. Toda história, mesmo a mais niilista, fornece um subtexto moral inexplicável à parte de algum agente superior de quem essa moralidade se origina. Quando nos lembramos de que a imaginação está criando o que é novo a partir de partes do que é antigo, que criamos o que não é a partir daquilo que é, descobrimos que nenhum autor jamais escreveu um romance ateísta, uma vez que o material inerente de sua imaginação se torna prejudicado para o seu propósito.
Se eu me propus a escrever uma história sem Deus sobre amor, coragem, ódio, covardia, ou até mesmo sobre dúvida existencial, descubro que minhas próprias ideias estão irremediavelmente infundidas com um significado maior do que aqueles que dei a elas. E mesmo que eu queira escrever sobre uma sociedade cuja moralidade se dê bem sem um legislador moral, descubro imediatamente que as próprias ideias de moralidade que eu gostaria de inovar carregam consigo incômodas noções antigas. E, se eu começasse a investigar de onde exatamente derivam essas ideias incômodas, não levaria muito tempo para eu descobrir que os mesmos preceitos morais surgiram nas civilizações e em sua literatura desde a aurora do tempo documentado.
Não adianta dizer que esses preceitos morais são simplesmente provenientes de anos de evolução da prescrição social humana, pois a maioria dos preceitos morais, mesmo aqueles que defendem a utilidade social, permaneceram os mesmos desde o seu primeiro surgimento. A duvidosa virtude do amor ciumento em Medeia, de Eurípedes, aparece novamente em Otelo, de Shakespeare. O tema da honra e vergonha sobre o qual Homero escreveu em sua Odisseia é o mesmo tema com o qual Hemingway se preocupa em O Sol Também se Levanta. A amizade presente na Epopeia de Gilgamesh não é muito diferente da amizade em Harry Potter e o Cálice de Fogo.
Parece que algum tipo de ascensão moral inexplicável continua a surgir quando pensamos em obras de literatura seminal escritas sem nenhuma finalidade teísta. Mesmo nas mais sombrias visões literárias da era moderna – algo como a obra não-linear, quase impenetrável e obscena de William Burroughs, o livro Almoço Nu –, as tentativas imaginativas de desvendar um significado moral superior servem apenas para confirmar sua permanência. Em um mundo como o de Burroughs, a imaginação interage e luta contra a matéria-prima dos princípios morais aceitos. Assim, quando ele escreve uma frase como: “A imagem quebrada do Homem se move minuto a minuto e célula por célula… ódio, guerra, policiais criminosos, burocracia, insanidade, todos os sintomas do Vírus Humano”[1], ele imagina que exista uma “imagem do Homem” que pode experimentar quebrantamento moral (confira o capítulo Corporação Islã e os partidos da Interzona). Ele faz um julgamento moral imaginativo. O que é o quebrantamento, o mal da pobreza ou o ódio, senão confirmações de princípios morais superiores e polarizados – por exemplo, uma imagem não-quebrada do homem caracterizada pela abundância e pelo amor – a partir dos quais esses valores se originaram (e não da imaginação i/moral de Burroughs)?
Apesar de todos os incômodos com os princípios judaico-cristãos ou da crença teísta básica, romances como Almoço Nu apresentam um mundo imoral imaginário que, em última instância – quando começamos a questionar o próprio significado dos pronunciamentos morais da obra – presume, e em seguida admite, uma lei moral superior. As origens dessa lei moral são inexplicáveis e apenas impostas ao mundo criado por Burroughs porque foram primeiro aninhadas na própria imaginação dele. É espantoso que, mesmo em obras como Almoço Nu, os leitores não encontrem páginas de respostas niilistas a questões niilistas. Se fosse esse o caso, a imaginação moral dos leitores experimentaria uma desconexão instantânea e o livro se desvaneceria em um esquecimento impopular. Em vez disso, Burroughs preenche seu mundo com dúvidas eclesiásticas sobre o significado moral ao mesmo tempo em que as interroga com fragmentos de verdades possíveis. E em cada fragmento existe um significado inerente do qual Burroughs é apenas um transcritor. A imaginação só cria o que não é a partir daquilo que é, e, até mesmo em um romance de Burroughs, aquilo que é está carregado de significado moral. Desta forma, o ateísmo em Almoço Nu não consegue romper totalmente com as amarras do preceito moral superior.
C. S. Lewis, em Cristianismo Puro e Simples, chama esses inescapáveis preceitos morais de “lei moral” e faz as seguintes observações fundamentais sobre a presença perene da lei:
A Lei Moral, ou Lei da Natureza Humana, não é simplesmente um fato a respeito do comportamento humano, como a Lei da Gravidade é ou pode ser simplesmente um fato a respeito do comportamento dos objetos pesados. Por outro lado, não é mera fantasia, pois não conseguimos nos desvencilhar dessa ideia; se conseguíssemos, a maior parte das coisas que dizemos sobre os homens seria absurda. Ela também não é uma simples declaração de como gostaríamos que os homens se comportassem para a nossa conveniência, pois o comportamento que taxamos de mau ou injusto nem sempre é inconveniente, e, muitas vezes, é exatamente o contrário. Consequentemente, essa Regra do Certo e do Errado, ou Lei da Natureza Humana, ou como quer que você queira chamá-la, deve ser uma Verdade – uma coisa que existe realmente, e não uma invenção humana.[2]
Ao fazer o que é novo, a imaginação trabalha com o que já existe, e o que já existe são as realidades irremovíveis sobre como a moralidade deve se dar nas vidas dos personagens. Essa lei moral “está além e acima dos fatos comuns do comportamento humano, algo que no entanto é perfeitamente real – uma lei verdadeira, que nenhum de nós elaborou, mas que nos sentimos obrigados a cumprir”.[3] É por causa da presença dessa lei que autores como Burroughs imaginam temas naturalmente carregados da condição humana, da pobreza e do ódio. Assim como o escritor ateu trabalha a partir da imaginação, a imaginação ateísta trabalha a partir de uma realidade moral superior.
Não podemos deixar de enfatizar que as matérias-primas da imaginação a partir das quais um escritor ateu cria algo estão completamente saturadas de um significado moral superior. O ato imaginativo, então, implica vislumbrar novos mundos para velhas verdades, inclinando-se a partir daqueles significados morais já disponíveis ao autor, sobre os quais George MacDonald – escritor de fantasia, teólogo, grande teórico imaginativo e autoproclamado “mestre” de C. S. Lewis – diz: “pois o mundo ao seu redor é uma figuração externa da condição de sua mente; um depósito inesgotável de formas de onde ele pode escolher expoentes… os significados já estão naquelas formas, senão não poderia haver vestimenta de desvelamento.”[4]
O autor ateu não escreve em nenhum outro poder imaginativo que não seja o depósito inesgotável de formas oferecidas pelo mundo. Assim como os preceitos da lei moral, toda e qualquer configuração externa da realidade externa já contém significado, esperando que o ato imaginativo revele suas verdades mais profundas. Ao criar essas formas inerentemente significativas através de histórias, o escritor exerce “aquela faculdade no homem que é mais adequada à operação primordial do poder de Deus”.[5] Sem que saibam, portanto, os escritores ateus imitam essa operação primordial do poder divino criando mundos que involuntariamente afirmam uma lei moral transcendente. E, assim, o ateísmo opõe-se à imaginação do homem (seu principal poder criativo), o qual, conforme descreve MacDonald, foi “feito à imagem da imaginação de Deus”.[6]
Para mostrar quão inescapável é a adesão da imaginação à moralidade teísta, quero analisar um pequeno texto que incorpora a incapacidade do ateísmo de ser transportado para o mundo criado de um autor: a história de Ernest Hemingway, Um Lugar Limpo e Bem Iluminado. Escolhi o conto de Hemingway por duas razões simples: Primeiro, é um conto escrito de maneira extraordinária, rico e repleto de significados complexos, e belo em estilo. Em segundo lugar, Hemingway escreveu Um Lugar Limpo e Bem Iluminado sem nenhuma finalidade cristã ou teísta. Trata-se, portanto, de um verdadeiro estudo de caso na imaginação ateísta.
Um Lugar Limpo e Bem Iluminado, de Hemingway, conta a história de dois garçons, um velho e um jovem, ambos aguardando para fechar o café já em hora avançada da noite. O único cliente presente no estabelecimento é um velho surdo que tentou se suicidar na semana anterior. Os dois garçons veem o velho se demorando até tarde da noite de maneira distinta. O garçom mais jovem está impaciente para que o surdo vá embora e o mais velho é muito mais compreensivo sobre a necessidade do velho por um “lugar limpo e bem iluminado”.
O garçom mais velho diz: “Toda noite eu hesito em fechar porque pode haver alguém que precise do café.”[7] Ele sente a necessidade de criar um espaço para “todos aqueles que não querem ir para a cama” e de esperar junto com “todos aqueles que precisam de uma luz para a noite”. O garçom mais jovem não entende porque o homem surdo não pode simplesmente ir a um bar, e taralha ao garçom mais velho: “Hombre, há bodegas abertas a noite toda.” Ao que o garçom mais velho responde: “Você não entende. Este é um café limpo e agradável. É bem iluminado. A iluminação é muito boa e, inclusive, há até a sombra das folhas.”[8] Vemos nas obras de Hemingway uma moralidade subtextual – e o que eu chamaria de uma metafísica sutil – em ação.
De que serve um lugar limpo e bem iluminado? Não tem valor inerente. Não é nem moral nem imoral. Hemingway apenas imaginou um café iluminado de modo incandescente e contrastou-o com o escuro da noite e com a atmosfera opaca de um bar. E, no entanto, ao se afastar dos cafés, bares e armazéns de imagens de sua própria vida, Hemingway escreveu uma espécie de apologia à moralidade. De acordo com o garçom mais velho, a voz moral de Hemingway, o suicídio surdo e malsucedido se coloca no caminho da esperança dentro do café. Hemingway imagina o café como um consolo, contendo limpeza e ordem moral latentes. Segundo o garçom mais velho, os desesperançados e os desesperados precisam de “uma certa limpeza e ordem” em suas vidas.
Mas a imaginação realista de Hemingway levanta questões sobre o significado moral supremo. Por exemplo, que tipo de declaração o narrador realmente faz sobre o garçom mais velho, quando diz: “Ele não gostava de bares e bodegas. Um café limpo e bem iluminado era realmente diferente?”[9] Parece que Hemingway, apesar de sua notável incredulidade pessoal, faz uma declaração sobre a moralidade e o sentido da vida que transcende misteriosamente o que parece ser um mundo fechado de iluminação artificial, suicídios malsucedidos e garçons ordinários.
Para chegar ao tipo de declaração que o conto de Hemingway faz, acho que pode ser útil olharmos o ensaio de C. S. Lewis sobre cristianismo e cultura. Em relação ao valor da cultura na transmissão de uma verdade teológica superior, Lewis escreve, “a cultura é um depósito dos melhores valores (subcristãos). Esses valores são em si mesmos da alma, não do espírito. Mas Deus criou a alma. Portanto, podemos esperar que seus valores contenham alguma reflexão ou antepasto dos valores espirituais.”[10] Quando olhamos para o espelho da literatura, o grande espelho na sala da cultura, e vemos seus reflexos, seus lampejos cintilantes de caráter, enredo e desenlace, vemos imagens de intuição moral. E o pequeno espelho escuro de uma história de Hemingway não é uma exceção.
O café de Hemingway, sua limpeza e sua atmosfera bem iluminada, refletem algo maior e mais essencial à condição humana. A moralidade, a esperança e a existência iluminada na comunidade de outras pessoas estão embutidas nas imagens de Hemingway do homem surdo no café limpo e bem iluminado. Essas características da imaginação ateísta, apesar das intenções criativas do autor ateu, em última análise, “lembram a vida regenerada”, mas, como Lewis indica, apenas no sentido de “como a afeição se assemelha à caridade, a honra se assemelha com a virtude, ou a lua com o sol. No entanto, embora ‘parecer não signifique o mesmo que’, ainda assim é algo melhor do que não parecer. A imitação pode passar para a iniciação.”[11] Lewis capta o que o café de Hemingway significa enquanto função da imaginação. Ele é essa imitação do depósito da realidade imaginada como um lugar de iniciação moral. Hemingway escreve uma história envolvendo um café com tópicos de moralidade humanista como a prática da benevolência em relação ao outro, o cuidado com a vida e a necessidade de recuperar uma vida machucada – que se tornam absurdos à parte da verdade transcendente que trabalha para tecer esses tópicos em um significado moral universal.
Para aplicar os termos de Lewis à ficção de Hemingway, o surdo poderia passar da imitação da ordem moral limpa para uma iniciação à verdadeira transformação moral. Ele poderia ir do reflexo da verdade moral em um café artificialmente bem iluminado para a substância da verdade na luz real de uma vida redimida. O que Hemingway imaginou como uma história de moralidade minimalista, torna-se, ao considerar a personificação da história dessa moralidade e seu significado superior, uma história de ascensão moral à verdade metafísica.
Quando o velho garçom finalmente deixa o café, ele para em um bar. O velho garçom fica no bar sorrindo, enquanto reflete a respeito de uma versão zombeteira da Oração do Senhor: “O nada nosso de cada dia nos dai nada e nada os nossos nadas assim como nós nada a quem nos têm nada não nos deixei nada em nada, mas livrai-nos do nada; pues nada. Ave nada, cheia de nada, nada é convosco.”[12] Ao se voltar à Oração do Senhor, é como se a imaginação de Hemingway não pudesse abandonar completamente a linguagem espiritual como uma maneira de despertar a dúvida niilista em seu caráter. Esta oração de bar é um exemplo de dúvida buscando a garantia da fé. A oração desdenhosa do velho garçom não é descartada, pois o velho garçom já se entregou aos pedidos da oração. A visão imaginativa de Hemingway para esta oração desordenada inclui versões fragmentadas das frases, “o pão nosso de cada dia nos dai hoje” e “livra-nos do mal”; frases essas que chegam à essência do serviço do velho garçom ao surdo. O fato de o velho garçom se lembrar dessas frases específicas da oração de Jesus no evangelho de Mateus é bem apropriado, uma vez que ele literalmente servia ao homem surdo seu pão de cada dia e também o livrava do mundo escuro fora do café.
O garçom, como Hemingway, usa sua imaginação para zombar de um Deus para o qual ele tem pouca utilidade. E, por meio dessa mesma imaginação, ele cria um imperativo moral que transcende o mundo fechado da história, apontando sutilmente para algum Ser superior. Curiosamente, ao recusar outra bebida do barman, ir para casa e ficar acordado até o sol nascer, as ações do garçom se movem em uma corrente diferente de sua oração zombeteira. Uma espécie de pequena escatologia surge à medida que a história que começa em luz artificial termina em luz do dia. O ateísmo do velho garçom, como evidenciado nas falsas orações, revela-se um fracasso no ato imaginativo. Tendo em vista a liberdade teoricamente fornecida pelo ateísmo, por que o velho se comprometeria com uma espécie de amor ao próximo? Pela mesma razão que Hemingway (um autor livre para criar qualquer visão moral que deseja) imagina um mundo de obrigação moral e angústia em relação à espiritualidade cristã. A imaginação literária não permite nenhum outro mundo.
Comecei dizendo que nenhum escritor ateu jamais criou um mundo fictício à sua própria imagem, e apresentei apenas algumas breves considerações sobre o motivo pelo qual acredito que a imaginação corrija a influência do ateísmo. Terminarei onde comecei, dizendo que o papel da imaginação no ateísmo é subversivo. Ela não pode permitir que um autor construa um mundo habitável à parte daquelas leis morais transcendentes e intemporais que governam a habitação necessariamente imaginável. Se, como disse MacDonald, a imaginação é o poder mais parecido com “a principal operação do poder de Deus”[13], então faríamos bem em estudá-la no trabalho de escritores ateus na esperança de que podemos conhecer melhor as semelhanças criativas da vida regenerada na literatura, bem como aprender como a imitação da moralidade teísta da imaginação passa para a iniciação cristã.
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[1] William Burroughs, Almoço Nu (Companhia das Letras, 2016).
[2] C. S. Lewis, Cristianismo puro e simples (Martins Fontes, 2009). Tradução: Álvaro Oppermann e Marcelo Brandão Cipolla.
[3] Ibid.
[4] George MacDonald, “The Imagination: Its Functions and Its Culture,” in A Dish of Orts (London : Sampson Low Marston & Company, 1893), 5.
[5] Ibid., 3.
[6] Ibid., 4.
[7] Nota do tradutor: Os trechos mencionados do conto neste artigo foram traduzidos por Washington Hemmes. Confira a tradução completa do conto neste link: http://raymundo-netto.blogspot.com/2011/07/um-lugar-limpo-e-bem-iluminado-conto-de.html
[8] Ernest Hemingway, “Um Lugar Limpo e Bem Iluminado”, Contos: Volume 2 (Bertrand Brasil, 2015).
[9] Ibid., 383.
[10] C. S. Lewis, “Christianity and Culture”, in The Seeing Eye: And Other Selected Essays em Christian Reflections (ed. Walter Hooper; New York: Ballentine Books, 1967), 30.
[11] Ibid., 31.
[12] Hemingway, “Um Lugar Limpo e Bem Iluminado”.
[13] MacDonald, “The Imagination: Its Functions and Its Culture,” 3.
Traduzido e revisado por Jonathan Silveira.
Texto original: Atheism and Its Impossible Imagination: How Literary Imagination Insists On Theist Morality. Houston Baptist University.
Corey Latta é escritor e professor de inglês e literatura na Union University. É mestre em Religião e língua inglesa, e doutor em literatura. |