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Notamos, mais uma vez, que até os cristãos tendem a cair na armadilha da sedução das ideologias, apesar do seu suposto compromisso exclusivo com os ditames do evangelho. Não surpreende, portanto, que muitos crentes te­nham deliberadamente adotado o nacionalismo. Além disso, alguns acaba­ram ligando sua fé ao nacionalismo a tal ponto que as duas coisas passaram a ser uma só na sua mente. Há certa ironia no fato de muitos cristãos, perfei­tamente capazes de identificar os problemas do liberalismo e do socialismo, estarem entre os primeiros a apoiar o movimento “por Deus e pela pátria”. Isso é verdade sobretudo nos países que tiveram algum grau de influência formativa da fé cristã. Esse “nacionalismo cristão” tem, em grande medida, raízes na conversão que Constantino impôs ao Império Romano, que, de pagão, passou a ser cristão. Outra raiz é a aliança do Antigo Testamento entre Deus e seu povo escolhido de Israel. Os nacionalistas cristãos geralmente alegam que sua própria nação — seja ela definida politicamente, como os Estados Unidos, seja etnicamente, como a dos africâneres sul-africanos — foi especialmente vocacionada por Deus para cumprir um grandioso pro­pósito divino no mundo.

Os protestantes parecem mais suscetíveis que os católicos às tentações do nacionalismo cristão, talvez porque o caráter supranacional da Igreja de Roma constitua um certo antídoto aos particularismos do nacionalismo. Durante a campanha eleitoral para presidente dos Estados Unidos em 1960, muitos protestantes faziam objeção ao empossamento de um presidente ca­tólico romano, alegando que o Papa passaria a ditar a política americana, violando a soberania da nação. Os protestantes da Irlanda do Norte têm há várias gerações tentado manter a união do seu país com o Reino Unido, temendo as consequências de se verem sozinhos diante de uma maioria católica romana. Já no sul da Irlanda, na Polônia e na Ucrânia, o catolicismo romano teve um papel nacionalista, sustentando seus seguidores na longa luta contra os imperialismos britânico e soviético.

Todavia, mais que católicos e protestantes, são os cristãos ortodoxos que tendem mais a identificar a fé com os diversos nacionalismos étnicos da Europa. Isso já se vê claramente nos nomes das igrejas: Ortodoxa Grega, Ortodoxa Russa, Ortodoxa Sérvia e assim por diante. Embora um concílio local ortodoxo realizado em 1872 tenha condenado como heresia o “filetis­mo”, isto é, o estabelecimento de igrejas locais pautado nas etnias, as divisões da igreja ortodoxa sempre seguiram as fronteiras territoriais no velho mun­do e os contornos (territorialmente sobrepostos) das comunidades étnicas no novo mundo. Esse estado de coisas é devido, pelo menos em parte, a uma perversão da organização tradicional das instituições eclesiásticas, em que igrejas regionais autocéfalas, supervisionadas por um bispo ou patriarca local, se tornaram igrejas nacionais independentes, fortemente atreladas aos sucessos e desventuras da nação e seus líderes.[1]

Entretanto, apesar da influência da organização eclesiástica, a ortodoxia oriental também é herdeira direta do acordo constantiniano entre a igreja e o império. Não foi só Roma que se cristianizou: o cristianismo também se romanizou. A concepção ortodoxa tradicional da relação entre igreja e Estado é baseada no ideal de uma symphonia, uma harmonia entre as duas instituições. Na prática, isso às vezes fez com que a igreja abrisse mão de sua função profética, tornando-se uma serva do Estado e de seus imperativos. O dissidente soviético Yevgeny Barabanov afirmou que a sujeição da igreja ao Estado é uma longa tradição no seu próprio Oriente cristão: “Sem dúvida, temos de reconhecer que, em Bizâncio e na Rússia, as ideias sobre o reino de Deus e o reino de César se misturam tanto que chegam a se confundir”.[2] Não surpreende, portanto, que os cristãos ortodoxos e mesmo os hierarcas da Igreja Ortodoxa tenham passado a atrelar as venturas e desventuras do reino de Deus às de suas respectivas nações.[3]

Muitos protestantes conservadores americanos são vulneráveis a um tipo diferente de nacionalismo, mais associado ao Antigo Testamento. Aplicando as descrições bíblicas de Israel ao arranjo político americano contempo­râneo, esses cristãos acreditam que os Estados Unidos são os herdeiros das promessas feitas por Deus àquela nação na Antiguidade. Segundo o relato bíblico de Crônicas, Deus promete que “se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar, orar e buscar a minha presença, e se desviar dos seus maus caminhos, então ouvirei dos céus, perdoarei os seus pecados e sararei a sua terra” (2Cr 7.14). Uma vez que essa promessa foi feita por Deus ao povo da antiga aliança por ocasião da dedicação do templo de Salomão, é lógico pressupor que, após a vinda de Cristo, a promessa agora se aplica ao povo da nova aliança, isto é, à igreja ou corpus Christi. Afinal, Pedro escreve: “Vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (1Pe 2.9).

Apesar disso, a tendência de muitos protestantes conservadores, que no mais são bem literalistas na sua interpretação da Escritura, é ver sua própria nação americana como potencial beneficiária dessa promessa. É verdade que não foram eles que inventaram a noção dos Estados Unidos como nação escolhida, pois a origem dessa ideia remonta aos primeiros anos da imigração inglesa na América do Norte. John Winthrop, primeiro governador da colônia da Baía de Massachusetts, afirmou as aspirações de seus companheiros purita­nos a estabelecer uma “cidade sobre a colina”, que haveria de ser um exem­plo fulgurante de comunidade piedosa para o resto das nações.[4] No século 19, os protestantes evangélicos, que perfaziam a maioria dos norte-americanos na época, criam que o experimento americano de liberdade e autogoverno fora planejado por Deus para inaugurar seu reino milenar e, assim, tornar-se uma bênção para o resto do mundo. Durante a Guerra Hispano-Americana, o presidente William McKinley alegou ter concluído, após passar noites a fio em oração, que os Estados Unidos tinham o mandato divino de anexar as Filipinas para o propósito de civilizar, melhorar e cristianizar a população daquele lugar.[5]

Mais recentemente, grupos como a Maioria Moral e a Coalizão Cristã, por exemplo, apelaram para sentimentos nacionalistas por parte dos funda­mentalistas e evangélicos americanos.[6] Os Estados Unidos, dizem eles, é uma “nação submetida a Deus”, escolhida e encarregada por ele de proteger a liberdade pelo mundo afora. Durante a Guerra Fria, essa responsabilidade acarretava uma política de contenção do comunismo ateu. Após o colapso do comunismo, os nacionalistas americanos tiveram de achar um novo pro­pósito para animar os esforços ultramarinos do seu país, e esse novo propó­sito foi proporcionado pela luta sem fim contra o terrorismo. Nesse ínterim, os mesmos nacionalistas têm enfrentado diversas preocupações dentro do seu próprio país. Muitos protestantes conservadores acham que perderam a hegemonia que pertencera aos seus antepassados evangélicos. Depois da Primeira Guerra Mundial e da tremenda guinada cultural da década de 1920, incluindo o notório caso Scopes em Dayton, Tennessee (envolvendo o ensino do evolucionismo nas escolas públicas), os fundamentalistas recuaram para dentro de uma subcultura própria, com sua rede de congregações e insti­tuições educacionais independentes. Uma geração depois, após a Segunda Guerra Mundial, eles saíram do isolamento que se tinham imposto e tenta­ram recuperar o que haviam perdido: a nação americana.

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Importar-se com a comunidade política é correto e apropriado, e nin­guém pode censurar os cristãos por tentarem corrigir as deficiências da nação. Por outro lado, essa variedade de nacionalismo cristão comete pelo menos quatro erros. Em primeiro lugar, ela entende erroneamente as pro­messas bíblicas feitas ao corpo de Cristo como um todo, aplicando-as a uma única concentração geográfica de pessoas vinculadas a um determinado contexto político. Isso envolve uma hermenêutica bíblica duvidosa.

Em segundo lugar, o nacionalismo cristão norte-americano tende a identificar as normas de Deus para a vida política e cultural com uma ma­nifestação particular e imperfeita dessas normas num período específico da história da nação. Assim, por exemplo, muitos ativistas políticos pró-família dizem que as práticas da família agrária do século 19 ou da família nuclear urbana da década de 1950 refletem as normas divinas para uma vida fa­miliar equilibrada. Do mesmo modo, os nacionalistas cristãos norte-ame­ricanos creem que toda comunidade política temente a Deus deve seguir uma ordem constitucional que limite o poder político por meio de freios e contrapesos, em vez de se basear no que Walter Bagehot chama de uma “fusão de poderes” num gabinete que responde ao parlamento. Dessa forma, os nacionalistas cristãos, como seus rivais conservadores, tendem a julgar as ações presentes do seu país não à luz das normas transcendentes dadas por Deus para a vida política, e sim pelo critério dos precedentes na história da própria nação que supostamente teriam cumprido essas normas.

Em terceiro lugar, os nacionalistas cristãos facilmente rendem à nação uma honra que cabe somente a Deus. Eles exageram na consideração que têm pelos símbolos do país e por suas instituições, leis e costumes. Veem a história de seu país como uma espécie de revelação do plano de Deus e fe­cham os olhos para a operação do pecado nessa mesma história. Ao detectar algum pecado nacional, tendem a atribuí-lo não a alguma deficiência no próprio fundamento ideológico da nação, e sim ao distanciamento desta em relação a uma suposta origem sólida e bíblica, uma imaginária era de ouro antes da queda. Se as origens do país não são tão cristãs como eles querem crer, eles saem em busca de todos os indícios disponíveis para inventar um passado útil que sirva melhor a um futuro cristão.[7]

Em quarto e último lugar, os crentes que mais prontamente empregam o linguajar da nacionalidade são os que mais têm dificuldade para postular quaisquer limites para o seu conceito de nação. Os cristãos nacionalistas fre­quentemente veem a nação como uma comunidade indiferenciada que deve sofrer poucas restrições, se é que deve sofrer alguma, em seu apelo à lealdade dos cidadãos.[8] Esse fato indica mais uma vez que devemos reconhecer um papel modesto para a nação, como quer que ela se defina, e manter-nos sempre distantes das pretensões totalitárias do nacionalismo. Quer a nação já esteja ligada ao corpo político, quer esteja vinculada a um povo etnicamente definido em busca de reconhecimento político, ela deve se sujeitar aos limites normativos que Deus impôs a todas as coisas por ele criadas.

____________________

[1] V. o capítulo “Ecclesiastical Regionalism: Structures of Communion or Cover for Separatism?”, em John Meyendorff, The Byzantine Legacy in the Orthodox Church (Crestwood: St. Vladimir’s Seminary Press, 1982), p. 217-33.  

[2] Yevgeny Barabanov, “The Schism Between the Church and the World”, em Aleksandr Solzhenitsyn et al., From Under the Rubble (Boston: Little, Brown, 1974), p. 172-93.

[3] Para uma análise da abordagem característica da Igreja Ortodoxa às questões políti­cas, v. meu artigo “Imaging God and His Kingdom: Eastern Orthodoxy’s Iconic Political Ethic”, Review of Politics 55 (primavera 1993), p. 267-89.  

[4] A. J. Beitzinger, A History of American Political Thought (New York: Harper and Row, 1972), p. 31.  

[5] G. J. A. O’Toole, The Spanish War: An American Epic, 1898 (New York: W. W. Norton, 1984), p. 386.  

[6] O termo “fundamentalista” é geralmente usado na mídia americana num sentido de­preciativo, aplicado tanto a cristãos como a islamistas radicais. Aplico-o unicamente àqueles protestantes conservadores que se chamam eles próprios de fundamentalistas, sem implicar nenhum sentido negativo.  

[7] V., p. ex., John Eidsmoe, Christianity and the Constitution: The Faith of Our Founding Fathers (Grand Rapids: Baker, 1987), p. 39-49, em que o autor, tentando refutar a tese de que a maioria dos patriarcas da independência norte-americana eram deístas, se limita a listar quem era membro de qual igreja entre os delegados da Convenção Constitucional. Já Michael P. Zuckert, The Natural Rights Republic: Studies in the Foundation of the American Political Tradition (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1997), argumenta persua­sivamente que, longe de ter sido obra de conservadores whigs ou puritanos, a Revolução Americana girou em torno de uma preocupação lockeana com os direitos individuais.

[8] V., p. ex., a análise de James W. Skillen sobre os “conservadores pró-americanos” em The Scattered Voice: Christians at Odds in the Public Square (Grand Rapids: Zondervan, 1990), p. 33-53. Cf. Skillen, Recharging the American Experiment: Principled Pluralism for Genuine Civic Community (Grand Rapids: Baker, 1994), esp. p. 26-30, 66-8.

Trecho extraído da obra “Visões e ilusões políticas: Uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas“, de David T. Koyzis, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2014, pp. 143-148. Traduzido por Lucas G. Freire. Publicado no site Tuporém com permissão.

David T. Koyzis é doutor em Filosofia pela Universidade de Notre Dame e atualmente é professor de Ciência Política na Redeemer University College, em Ancaster, Ontário, onde leciona desde 1987. Em 2004, sua obra Visões e ilusões políticas, publicada por Edições Vida Nova, foi premiada em primeiro lugar na categoria não ficção/cultura pela The Word Guild Canadian Writing Awards.
Neste estudo abrangente e atualizado, o cientista político David Koyzis examina as principais ideologias políticas de nosso tempo, a saber, o liberalismo, o conservadorismo, o nacionalismo, o democratismo e o socialismo. Koyzis faz tanto uma análise filosófica quanto uma crítica honesta a cada ideologia, revelando os problemas de cosmovisão inerentes a cada uma delas, destacando seus pontos fortes e fracos. Além disso, ele oferece modelos alternativos que são fruto do engajamento histórico de cristãos na arena pública ao longo dos tempos.

Escrito sob uma perspectiva bastante ampla e analítica, Visões e ilusões políticas reafirma, em sua segunda edição ampliada e atualizada, o compromisso de ser um guia útil e sensível, sobretudo para aqueles que atuam na esfera pública, analistas culturais, eruditos, cientistas políticos, enfim, todos os que se interessam pelo pensamento político.

Publicado por Vida Nova.

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