O Islã é uma religião de paz? | Christine Schirrmacher

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O islã primitivo era pacífico?

O fato é que mesmo em sua forma primitiva o islã não trouxe paz nem para muçulmanos nem para não muçulmanos, bem como não representou um estado de paz. Como comandante militar de seus seguidores, Maomé defendeu-se de ataques armados e fez campanhas hostis, principalmente depois que se mudou para Medina, em 622 d.C.

Em Meca, Maomé a princípio buscou reconhecimento e discípulos entre as tribos árabes, e reconheceu que judeus e cristãos possuíam a revelação divina, embora não partilhasse de suas convicções. “Dize: ‘Ó renegadores da Fé!’ ‘Não adoro o que adorais. Nem estais adorando o que adoro. Nem adorarei o que adorastes. Nem adorareis o que adoro. A vós, vossa religião, e, a mim, minha religião.’” (surata 109). Maomé não ameaçava com retribuição, mas buscava seguidores e permitia que muçulmanos e não muçulmanos existissem lado a lado. Deus seria o juiz derradeiro. “A mim, minha ação, e a vós, vossa ação: vós estais em rompimento com o que faço, e eu estou em rompimento com o que fazeis” (10.41).

No contexto do diálogo contemporâneo, citam-se com frequência as palavras da surata 2.256: “Não há compulsão na religião”, mas essa afirmação está sujeita a diferentes interpretações. Para uns, aqueles que já têm sua religião (p. ex., os muçulmanos) não podem ser obrigados a seguir certas práticas religiosas; para outros, o texto se refere à religião do coração, que não pode ser sujeita à compulsão. Afinal de contas, judeus e cristãos que vivem em áreas conquistadas pelo islã não foram, em geral, obrigados a se submeter ao islã, tendo sido tolerada sua prática religiosa pessoal.

Em Medina, o papel de Maomé passou cada vez mais de pregador — que alertava sobre o juízo iminente e chamava as pessoas para que se voltassem ao Deus único e verdadeiro — para legislador da jovem comunidade muçulmana, bem como comandante de exército e senhor da guerra.[1] Houve também mudança na relação de Maomé com judeus e cristãos, culminando em distanciamento e inimizade crescentes, o que para as três grandes tribos judaicas autóctones em Medina — Banu Nadir, Banu Qainuga’ e Banu Quraiza —, nos anos de 624 a 627, chegou ao auge com a repressão, a expulsão e o extermínio dessas tribos.

Depois de consolidar seu poder, Maomé fez uma última tentativa, em anos posteriores, de voltar ao seu local de origem, Meca, e, em 632, conseguiu finalmente fazer uma peregrinação de “despedida” à Caaba, poucos meses antes de sua morte, incorporando ao islã, de uma vez por todas, os ritos sacrificiais e de peregrinação. Uma revelação prévia dizia que banir os muçulmanos de seu local devido de adoração, a Caaba, é “mais odioso” do que violar um armistício, e que “perseguir”, “impedir” ou incitar outros para que se afastem do islã é “mais grave do que matar” (2.217). Essa definição um tanto vaga de “incitação” ou “impedimento” fornece aos extremistas islâmicos base suficiente, no Alcorão e na vida de Maomé, para declarar que os muçulmanos impedidos de praticar o islã são vítimas de agressão. Se a permissão para a construção de uma mesquita é recusada, ou se há imposição de limites para a altura do edifício, isso não conta como repressão e impedimento para que os fiéis pratiquem o islã? Isso justificaria resistência, uma vez que essa incitação é “mais grave do que matar”.

O que quer que se faça, trata-se definitivamente de uma injustiça cometida pelos não muçulmanos, uma vez que apenas a prática irrestrita do islã garante a justiça e a paz sobre a terra. Os obstáculos colocados no caminho do islã acabam impedindo a implementação e a difusão do governo divino sobre a terra. “Cabe aos muçulmanos defender o direito humano à liberdade de publicamente expressar sua fé em Deus a qualquer preço e, se necessário for, pela força.”[2] Não é difícil imaginar o quanto essa luta pela liberdade irrestrita da fé (islâmica) é suscetível de abusos. A ênfase de que o muçulmano “deve ser ativo em proteger os que invocam a ajuda de Deus para resistir à tirania”[3] é um chamado para ser solidário com todos os que, de algum modo, possam ser considerados uma minoria oprimida de irmãos muçulmanos. “E por que razão não combateis no caminho de Allá e pela salvação dos indefesos, dentre os homens e as mulheres e as crianças, os quais dizem: ‘Senhor nosso! Faze-nos sair desta cidade, cujos habitantes são injustos e faze-nos, de Tua parte, um protetor e faze-nos, de Tua parte, um socorredor!’”(4.75).

O Alcorão e os escritos muçulmanos apologéticos posteriores justificam os ataques a judeus e árabes que resistiram a Maomé e à sua proclamação do islã, argumentando que os judeus haviam ridicularizado Maomé e que ele estava agindo em legítima defesa. A comunidade islâmica tem direito absoluto à legítima defesa (22.39,40) e ao combate daqueles que não cumprem os tratados acordados e zombam dos muçulmanos. “E, se violam seus juramentos, depois de haverem pactuado convosco, e difamam vossa religião, combatei os próceres da renegação da fé […] na esperança de se absterem da descrença”(9.12). Maomé liderou cruzadas contra tribos árabes que se recusaram a ficar do seu lado. O Alcorão os condena como inimigos de Maomé e de Deus. “E, preparai, para combater com eles, tudo o que puderdes: força e cavalos vigilantes, para, com isso, intimidardes o inimigo de Alá e vosso inimigo” (8.60).

Nos primeiros séculos depois de Maomé, durante o reinado dos quatro primeiros califas, de 632 a 661, a difusão do islã pela península arábica e pelo norte da África nem sempre se deu sob a forma de conquista sangrenta, mas levou, em todos os casos, à subjugação de judeus e cristãos como “enclaves” em território islâmico e, consequentemente, à restrição de suas liberdades religiosas. A resistência da original maioria cristã à conquista islâmica foi também enfraquecida pela rivalidade eclesiástica interna, pelo suborno, pela ameaça de impostos elevados para não muçulmanos e ilusões a respeito da tolerância dos novos governantes, o que contribuiu para o avanço e a islamização progressiva de áreas que antes haviam sido preponderantemente cristãs.[4]

O caminho para a paz

Inúmeros versículos do Alcorão afirmam que uma pessoa que tenha aceitado o islã vai “com Alá” e os que o seguem por caminhos de paz, e ele “fá-los sair, com Sua permissão, das trevas para a Luz, e guia-os a uma senda reta” (5.16). Quem trilha o caminho de Deus e segue sua reta direção encontra a paz (20.47).

No Alcorão, a paz está intimamente associada à entrada no paraíso. Os anjos declaram paz a todos os que alcançaram o favor de Deus no juízo final (16.32). Quem entrar no paraíso será recebido com uma expressão de saudação e paz (25.75) e ouvirá as saudações de paz (10.10). A paz reina no paraíso (19.32) porque é “o lugar onde a paz habita” (10.25).

O indivíduo encontra paz agora e no porvir por meio da aceitação do islã. Se todos aceitassem o islã e vivessem de acordo com a charia de Deus, a sociedade também conheceria a paz. O conflito surge por causa da existência de não muçulmanos e “a paz virá somente quando as fronteiras do islã tiverem se estendido até os confins da terra”.[5]

O Alcorão também recomenda que haja empenho em favor da paz no plano interpessoal, embora refira-se a conflitos entre muçulmanos, sejam eles cônjuges (4.35) ou simplesmente “irmãos” (49.10). Nas disputas com os “infiéis”, a parte muçulmana deve entrar em acordo se a outra parte também estiver “inclinada à paz” (8.61; 4.90). O combate aos infiéis deve cessar se os ímpios se submeterem ao islã. “E combatei, no caminho de Allá os que vos combatem, e não cometais agressão. Por certo, Allá não ama os agressores. E matai-os, onde quer que os acheis, e fazei-os sair de onde quer que vos façam sair. E a sedição pela idolatria é pior que o morticínio. E não os combatais nas imediações da Mesquita Sagrada, até que eles vos combatam nela. Então, se eles vos combaterem, matai-os. Assim é a recompensa dos renegadores da Fé. E, se eles se abstiverem, por certo, Allá é Perdoador, Misericordiador (2.190-192).

No versículo “E combatei-os, até que não mais haja sedição pela idolatria e que a religião seja de Alá” (2.192), o Alcorão exige que a luta prossiga até que o islã seja a única religião sobrevivente, uma vez que a escatologia muçulmana pressupõe que, nos últimos dias, quando surgir a besta do apocalipse (27.82), os mortos serão chamados a juízo (21.96), Jesus reaparecerá sobre a terra para combater o Anticristo, e somente o islã predominará. Um reino universal de paz despontará no momento em que os adeptos de outras religiões tiverem se convertido ao islã ou sido mortos — então haverá paz, enfim, por meio da criação de uma sociedade islâmica homogênea. Portanto, paz está relacionada a subjugação, com a submissão muçulmana a Deus, subjugação de não muçulmanos a muçulmanos, até que finalmente a liberdade (submissão de toda a humanidade) chegue no fim dos tempos.

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O significado da paz

Para avaliar a afirmação de que o islã significa paz, deve-se primeiramente, a exemplo do caso paralelo dos direitos humanos para homens e mulheres, definir o que se quer dizer com paz. O islã não conduz à paz no sentido de muçulmanos e não muçulmanos desfrutarem dos mesmos direitos nas sociedades islâmicas, ou de comunidades religiosas se reunirem em termos iguais, sem discriminação. O islã conduz à “paz” no sentido de uma ordem que determina a discriminação legal e a subjugação dos não muçulmanos, de acordo com a lei islâmica.

Para as comunidades “toleradas” de minorias cristãs e judias em áreas islâmicas, “paz” significa ser classificado como “facções” de status social, político e, com frequência, econômico inferiores na comunidade muçulmana predominante. Mesmo que ao longo da história posterior os indivíduos, por vezes, tenham galgado posições influentes, ainda assim conservaram um status legal inferior, foram submetidos a uma pressão incessante para se converterem e, por vezes, sofreram ameaças ou perseguição.[6] A proclamada “tolerância” islâmica para com não muçulmanos significa que cristãos e judeus em regra não têm de abandonar sua fé, enquanto o pagamento de um imposto por cabeça os desobriga da participação obrigatória na jihad. Portanto, “paz” nesse caso não implica um relacionamento de igual para igual, e sim uma hierarquização de privilegiados e subprivilegiados, como se fossem cidadãos de segunda classe, que coexistem lado a lado em uma área islâmica.

A religião do “povo do livro” é meramente tolerada, pois o islã é superior a todas as religiões em razão de sua “imunidade à ab-rogação [posterior]”,[7] por ser a única fé genuína, uma vez que o “o islã é verdadeiramente a religião divina” (3.19).

Ao mesmo tempo, a comunidade islâmica tem prioridade sobre todos os não muçulmanos (3.110), uma vez que “a tarefa da comunidade política de muçulmanos […] consiste em dar respaldo e preservar os direitos divinos e salvaguardar os direitos humanos emancipados de acordo com o padrão do direito divino”.[8] A surata 9.29 ordena aos muçulmanos que combatam o povo do livro que “não pertencem à verdadeira religião […] até que paguem pacificamente tributo”. Aqui também paz, no sentido de fim do conflito, vem por meio da subjugação e do reconhecimento da lei islâmica.

No século 11 d.C., o jurista sunita al-Mawardi advogava uma hipótese que ainda hoje encontra defensores, sobretudo entre os islamistas. Ele dividiu o mundo entre “a casa do islã” (em árabe, dar al-islam), onde vigoravam o islã e a lei islâmica, e a “casa da guerra” (em árabe, dar al-harb), onde o islã ainda não vigora. Essa classificação não é encontrada no Alcorão nem na tradição, mas é uma definição da teologia muçulmana. De acordo com essa hipótese, a “casa do islã” está envolvida em uma luta contínua contra a “casa da guerra”, e essa guerra justa de conquista, a jihad, persistirá até que a “casa da guerra” se torne a “casa do islã”. Essa perspectiva não dá espaço para a coexistência entre a única fé verdadeira (o islã) e a descrença (em árabe, kufr) ou politeísmo (em árabe, shirk).

Já para outros grupos, somente é legítima uma proclamação pacífica do islã, uma vez que a verdadeira fé não pode ser imposta às pessoas por meios políticos nem pela força. Os místicos islâmicos veem a essência do islã na piedade ascética, na meditação e na contemplação, e rejeitam a luta armada e as agendas políticas. Isso também vale para o movimento Ahmadiyya, perseguido no subcontinente indiano, que enfatiza o Da’wa, ou convite” ou “chamado ao islã”, mas se mantém distante de toda forma de violência.

_________________

[1] Compare também a descrição de mudança de papel de Maomé em Earle H. Waugh, “Peace”, in: Encyclopaedia of the Qur’an (Leiden: E. J. Brill, 2004), vol. 4, p. 35.

[2] “Was sagt der Islam zu Krieg und Frieden”, disponível em: http://www.enfal.de/krieg.htm.

[3] “Was sagt der Islam zu Krieg und Frieden”, disponível em: http://www.enfal.de/krieg.htm, p. 3.

[4] Martin Tamcke cita alguns exemplos concretos: “Der Patriarch und seine arabischen Christen. Die nestorianischen Katholikoi-Partriarchen in ihren Anweisungen für Kirchenglieder auf der Arabischen Halbinsel in frühomajadischer Zeit”, in: Detlev Kreikenbom u.a., org., Arabische Christen — Christen in Arabien. Nordostafrikanisch/Westasiatische Studien 6 (Frankfurt: Peter Lang, 2007), p. 105-19.

[5] A. Th. Khoury, “Frieden”, in: A. Th. Khoury; Ludwig Hagemann; Peter Heine, Islam–Lexikon, vol. 1, p. 259.

[6] Algumas das leis discriminatórias clássicas da charia impostas a judeus e cristãos na “casa do islã” são mencionadas por Yohanan Friedmann, Tolerance and coercion in Islam: interfaith relations in the Muslim tradition (Cambridge: Cambridge University Press, 2003), p. 37.

[7] Conforme definido por Yohanan Friedmann (Tolerance, op. cit. p. 26).

[8] A. Th. Khoury, “Frieden”, in: A. Th. Khoury; Ludwig Hagemann; Peter Heine, Islam–Lexikon, vol. 1, p. 261.

Trecho extraído e adaptado da obra “Entenda o Islã: história, crenças, política, charia e visão sobre o cristianismo“, de Christine Schirrmacher, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2017, pp. 306-311. Traduzido por A. G. Mendes. Publicado com permissão.
Christine Schirrmacher (mestre e doutora em Estudos Islâmicos) estudou árabe, persa e turco e é atualmente professora de Estudos Islâmicos no Departamento de Estudos Religiosos e de Missiologia da Evangelisch-Theologische Faculteit de Lovaina, na Bélgica. Na Universidade Estadual de Bonn, na Alemanha, leciona no departamento de Estudos Islâmicos e também no departamento de Ciência Política e Sociologia. Dá aulas semestralmente como professora convidada na Universidade Estadual de Erfurt (cadeira de Estudos Islâmicos) e do departamento de Antropogeografia da Universidade Estadual de Tübingen. É diretora do Institut für Islamfragen (Instituto de Estudos Islâmicos) da Aliança Evangélica Alemã, palestrante e assessora para assuntos referentes ao islamismo da Aliança Evangélica Mundial (WEA). Também dá palestras sobre o islã e questões de segurança para autoridades de diversos países. Já visitou vários países do mundo muçulmano e participa de iniciativas atuais de diálogo, como o congresso “Amando a Deus e ao Próximo com Palavra e Ação: Implicações para Muçulmanos e Cristãos”, realizado em julho de 2008 pelo Centro de Fé e Cultura da Universidade Yale, em New Haven, Connecticut, Estados Unidos.
Na era da globalização, pessoas de diferentes países, culturas e religiões vivem, mais do que nunca, mais próximas umas das outras. Em meio a essa babel de povos e culturas, os muçulmanos no Ocidente constituem uma minoria substancial que clama por direitos políticos iguais.

O crescente fluxo migratório de pessoas vindas de países muçulmanos para países ocidentais tem colocado em primeiro plano as diferenças e, por vezes, o choque de duas visões de mundo bem distintas: o cristianismo e o islã. Além disso, a radicalização do islã político e a onda de atentados terroristas deixam claro que o mundo ocidental e sobretudo os cristãos não mais podem permanecer indiferentes ao modo de funcionamento da religião, cultura, sociedade, política e sistema legal do islã.

Por essa razão, em Entenda o islã, Christine Schirrmacher apresenta os ensinamentos básicos, as fontes, a cultura e os objetivos políticos do islã.

Publicado por Vida Nova.

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