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Ação divina e ação humana na composição da Bíblia

Já dissemos que, ao falar da obra do Espírito Santo em relação à Escritura, a Bíblia concentra-se em afirmar que, no que diz respeito à origem das Escrituras, Deus é ativo, e o ser humano, passivo. Vimos também que a Bíblia trata com relativo silêncio o modo ou mecanismo pelo qual o Espírito conduziu as pessoas a redigir as Escrituras. Contudo, resta ainda saber o que se pode dizer com certeza sobre tudo isso. Muitos autores evangélicos do passado referiram-se aos autores bíblicos como “escribas” do Espírito Santo, “copistas” de Deus e autores a quem o Espírito “ditava” as palavras. Às vezes, a doutrina evangélica conservadora da inspiração é criticada nesse ponto por (supostamente) propor o que os críticos chamam de ditado “mecânico”. Contudo, poucos evangélicos conservadores se dispõem a falar dos autores bíblicos como indivíduos totalmente passivos e de modo algum ativos na tarefa de redigir as Escrituras. A maior parte reconhece que a Escritura, em seu caráter, é totalmente humana tanto quanto divina. Os autores bíblicos apresentam estilos e objetivos claramente distintos, condizentes com seu caráter, dons e históricos pessoais. A linguagem da Bíblia é a linguagem humana comum; às vezes, é uma obra artística de alto nível, ao passo que outras vezes é muito comum. As histórias do Antigo Testamento muitas vezes se referem ao uso que fazem de outras fontes históricas, e Lucas introduz seu Evangelho recorrendo ao mesmo expediente. Nesse sentido, a Bíblia é como qualquer outro livro. Além disso, traduções da Bíblia para diversos idiomas têm sido produzidas através de conhecimento das línguas originais. Some-se a isso o fato de que compreenderemos corretamente as Escrituras somente se atentarmos para a forma de sua literatura e para os contextos históricos que ela apresenta, com base nos quais foi escrita. Deixar de dar a devida atenção a quaisquer desses elementos, com o objetivo de defender a origem divina das Escrituras, significa aviltá-las pelo desprezo a algumas características fundamentais dos escritos que Deus nos transmitiu.

Portanto, tanto o elemento plenamente divino quanto o plenamente humano das Escrituras devem ser levados em conta e não contrapostos um ao outro. Isso quer dizer que quando pensamos sobre a relação do divino e do humano atuando juntos na produção das Escrituras, fica evidente que ela é uma instância da atividade providencial de Deus. Ao longo da história, com o intuito de promover objetivos por ele decretados, Deus atua por meio de ações escolhidas livremente por suas criaturas. As pessoas agem livremente, mas não de forma autônoma sob a soberania divina. Esse princípio surge inequívoco em muitas partes das Escrituras, tal como na venda de José à escravidão (Gn 45.8) e, principalmente, na morte de Cristo (At 2.23). A isso às vezes se dá o nome de “operação de convergência” entre a ação humana e a divina. Warfield define essa operação da seguinte forma: “Nenhuma atividade humana — nem mesmo o controle da vontade — é anulada, mas o Espírito Santo trabalha em todas elas, em parceria com todas e através de todas, de tal forma que transmite ao produto qualidades especificamente supra-humanas”.[1] Em seguida, ele faz uma detalhada aplicação do conceito à produção das Escrituras: a inspiração, em sua definição mais ampla, diz respeito ao longo preparo divino do autor e do conteúdo. “[Deus] preparou Paulo para escrever, e o Paulo a quem ele confiou essa tarefa era um Paulo que escreveria espontaneamente as cartas [conforme Deus pretendia que ele as escrevesse].”[2] Portanto, a Bíblia é totalmente humana e totalmente divina, e a ação de Deus ao produzi-la estende-se além do momento da redação e abrange a totalidade de sua ação providencial nos autores.

É exatamente nesse ponto que muita gente se opõe à doutrina da inspiração. Os últimos três séculos de erudição bíblica nos proporcionaram um conhecimento das circunstâncias históricas e culturais nas quais os autores da Bíblia viveram e trabalharam, um conhecimento superior àquele das gerações que nos antecederam. Afirma-se que isso fez do aspecto humano das Escrituras um elemento de amplo alcance, diminuindo proporcionalmente o aspecto divino e dificultando a proposição de um modelo de operação de convergência entre o humano e o divino.[3] Warfield faz uma crítica específica a esse argumento, salientando que, se tivermos uma compreensão adequada da providência divina, o reconhecimento mais amplo do elemento humano das Escrituras não deverá diminuir nosso reconhecimento do elemento divino. As ações divina e humana se sobrepõem; elas não competem uma com a outra.[4] Por trás de muitas objeções à interpretação evangélica da ação do Espírito Santo na autoria das Escrituras encontram-se objeções à providência divina que tendem mais ao deísmo do que a uma doutrina bíblica de Deus, segundo a qual, por mais insondável que ela seja para nós, uma ação pode ser ao mesmo tempo um ato de Deus e um ato genuinamente humano.

O Espírito Santo e a transmissão das Escrituras

Depois de feita a definição correta de inspiração como ação do Espírito Santo que fala diretamente por intermédio dos autores da Bíblia, fica claro que o Espírito Santo não atuou exatamente da mesma maneira através daqueles que copiaram e transmitiram os manuscritos posteriores da Bíblia. Aliás, cometeram-se erros durante a cópia dos manuscritos, e o complexo campo de estudos conhecido como crítica textual surgiu para trabalhar com esses manuscritos no intuito de determinar a redação precisa dos textos originais (conhecidos como “autógrafos”), os quais, até onde sabemos, não foram preservados. Portanto, segue-se que Deus supervisionou por sua providência o processo naturalmente falível de cópia e transmissão, disso resultando que os inúmeros textos preservados tornam possível, com base nas diferenças entre eles, reconstruir a redação do original com um alto grau de certeza em quase todos os casos. De fato, a existência da Palavra de Deus em forma escrita, em vez de simplesmente oral, tornou sua preservação e transmissão muito mais confiáveis. Quaisquer erros de importância secundária que tenham se infiltrado no processo de cópia de manuscritos, muitos dos quais podem ser resolvidos pela crítica textual, são poucos em comparação com as modificações que ocorrem na tradição oral com o passar do tempo. Embora em alguns lugares das Escrituras ainda haja dúvidas em torno da redação precisa do texto original, nenhum ensino importante depende de algum texto com sentido discutível.

O estudo anterior sobre a inspiração verbal também lança luz sobre uma questão que surge aqui. A rigor, somente os autógrafos, que não possuímos, são inspirados. Portanto, às vezes se pergunta não tanto se a inspiração verbal não estaria errada, mas qual seria seu valor prático, uma vez que se trata de uma declaração direta sobre textos que não possuímos, e cuja redação não pode ser reconstruída com precisão em todos os pontos. Isso faz com que, para alguns, a inspiração verbal pareça uma doutrina puramente hipotética. A resposta correta que se costuma apresentar é que nenhum ensino de importância depende de textos cujas formas originais exatas não possam ser reconstruídas com certeza e, seja como for, o grande número de manuscritos bíblicos antigos à disposição permite que decisões complexas acerca da redação do original sejam tomadas com um grau de certeza muito maior em comparação com qualquer outro texto antigo. Uma vez que o núcleo da inspiração verbal são os atos de fala e não palavras isoladas, e como as variações nos manuscritos antigos raramente colocam em dúvida o propósito e o conteúdo do ato de fala em uma frase ou parágrafo do original, podemos dizer que os textos que hoje temos se aproximam bastante do original, de tal modo que a inspiração verbal é uma doutrina importante que de fato se aplica aos textos da forma como se encontram, e não uma doutrina meramente hipotética.

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Esse mesmo argumento nos ajuda a refletir sobre as traduções da Bíblia: será que, por extensão, elas podem ser consideradas a Palavra inspirada de Deus? É claro que as palavras de Jesus proferidas neste mundo e registradas no Novo Testamento já são traduções para o grego da língua aramaica que ele falava. As palavras de Cristo em nossa língua foram, portanto, duplamente traduzidas. (Só raramente deparamos com o registro de uma frase curta de palavras em aramaico proferidas por Jesus, tais como as que ele disse à filha de Jairo quando a ressuscitou dos mortos em Marcos 5.41.) Essa observação tem sido tradicionalmente expressa por meio de duas frases latinas: não temos as ipsissima verba de Jesus (suas próprias palavras), mas temos sua ipsissima vox (sua mensagem — ou, nos termos que venho usando, seus atos de fala). Isso pode ser motivo de preocupação para os cristãos, à medida que as Bíblias atuais nos dão acesso às palavras de Cristo por meio de um vidro embaçado, uma vez que as traduções necessariamente deixam as águas mais turvas. Bem, é claro que aqueles que estudaram as línguas originais podem às vezes nos ensinar coisas sobre o significado de um texto que nossas traduções não podem deixar claro. Contudo, se tivermos em mente que o foco do ato de inspiração do Espírito Santo era os atos de fala, podemos então ter certeza de que estes foram traduzidos com exatidão, quaisquer que sejam as dúvidas em torno da tradução de palavras isoladas de uma língua para outra. Essa observação aponta para as virtudes das traduções normalmente conhecidas como de “equivalência dinâmica”, tal como ocorre como a Nova Versão Internacional. Elas se baseiam no conceito bastante correto de que a unidade básica de sentido é o ato de fala (como uma frase ou oração), e que isso, e não a palavra em si, é a unidade na qual o tradutor deve se concentrar ao reproduzir o sentido na língua de chegada.[5]

O Espírito Santo e o cânon das Escrituras

O Espírito também estava em ação nos primeiros séculos da igreja na compilação do cânon das Escrituras. A história desse processo já foi descrita com detalhes diversas vezes. Em termos muito simples, ele consistiu no reconhecimento notavelmente rápido e disseminado de, pelo menos, quatro Evangelhos e de várias cartas de Paulo como Escritura (estas últimas foram assim reconhecidas desde muito cedo, conforme 2Pedro 3.15,16), estendendo-se durante um longo período em que havia incertezas em algumas áreas em relação a outros livros como Judas e Apocalipse.

O principal elemento nesse processo que estabeleceu a distinção entre a visão protestante e o entendimento católico foi a natureza da ação do Espírito Santo que se acreditava existir por trás da história. Para o catolicismo, o Espírito estava em ação sobretudo na igreja e através dela de um modo essencialmente novo, expandindo a autoridade da igreja no que dizia respeito à definição do conteúdo das Escrituras. Com o passar dos séculos, essa expansão transformou-se na autoridade do magistério da igreja estruturada, que então passou a definir o sentido das Escrituras. Para os protestantes, em contrapartida, a obra do Espírito nos acontecimentos históricos de compilação do cânon não levou à criação de uma nova realidade e de uma nova autoridade na igreja. Foi, antes, um ato a serviço de sua autoria original das Escrituras, pelo qual, através de um complexo processo histórico, ele levou a igreja a reconhecer de quais livros ele era de fato autor e de quais não era. As listas de livros canônicos que os líderes da igreja primitiva eventualmente publicavam não eram tentativas por parte das autoridades eclesiásticas de impor ordem a uma situação confusa. Pelo contrário, eram expressões de uma realidade que a igreja estava descobrindo no tocante à Escritura. A igreja, portanto, não criou o cânon das Escrituras através do Espírito, mas veio a reconhecê-lo por intermédio dele. Esse é um aspecto da fidelidade de Deus à sua Palavra e de sua coerência com ela, promovendo o reconhecimento humano do que ele já havia realizado ao inspirar as Escrituras.

_________________

[1] Warfield, Inspiration and authority, p. 83.

[2] Ibidem, p. 155.

[3] E.g., Bruce Vawter, Biblical inspiration (London: Hutchison, 1972), p. 128.  

[4] A. N. S. Lane, “B. B. Warfield on the humanity of Scripture”, Vox Evangelica 16 (1986), p. 77-94.  

[5] Contudo, é claro que toda boa tradução recorre a uma mescla de “equivalência dinâmica” e de “palavra por palavra”. Apesar de tudo o que ocasionalmente dizem as editoras e os conselhos editoriais das novas traduções da Bíblia em relação ao seu trabalho, todas as boas traduções se debruçam primordialmente sobre a reprodução do “pensamento” (i. e., o ato de fala) do original, refletindo ao mesmo tempo a estrutura da frase e a escolha de vocabulário do original, tanto quanto o permitam as limitações da língua de chegada. Para dar um exemplo: dentre as traduções de língua inglesa, o que diferencia em grande medida a recente English Standard Version da New International Version, e contra o que muitos se insurgiram, é somente o fato de que os tradutores da ESV estavam mais dispostos a sacrificar a naturalidade da expressão em inglês para seguir o mais próximo possível a estrutura da frase grega. Certamente não é nenhum mérito de tradução satisfazer-se apenas com o “pensamento” geral sem se esforçar para refletir o quanto possível a estrutura e o vocabulário usados no original. Todavia, uma tradução não deve receber grandes elogios se transformar regularmente frases em grego, que devem ter soado muito naturais para um público falante desse idioma, em fragmentos artificiais de inglês que nenhum nativo falaria, simplesmente para refletir detalhes do original que talvez não tenham nenhum significado e sejam apenas simples aspectos do estilo linguístico do grego. Em outras palavras, em tradução há mais de um tipo de precisão, e toda tradução tem de escolher constantemente onde fazer sacrifícios.

Trecho extraído e adaptado da obra “Teologia da Revelação: As Escrituras como Palavras de Vida“, de Timothy Ward, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2017, pp. 104-111. Traduzido por A. G. Mendes. Publicado com permissão.
Timothy Ward é um dos presbíteros da igreja Holy Trinity Church, em Hinckley, na Inglaterra. É autor de Word and supplement: speech acts, biblical texts and the sufficiency of Scripture e colaborador nas seguintes obras: The trustworthiness of God, The Word became flesh, Reformed theology in contemporary perspective e Spirit of truth and power.
Por toda a história cristã, a Bíblia tem sido considerada pela esmagadora maioria de estudiosos a palavra viva e ativa de Deus.

Neste livro, Timothy Ward descreve a natureza da relação entre o Deus vivo e as Escrituras. Examina a razão por que, para adorarmos a Deus fielmente, precisamos prestar atenção à Bíblia; para sermos fiéis discípulos de Jesus, o Verbo Encarnado, precisamos fundamentar nossa vida nas palavras da Bíblia; para nos mantermos em harmonia com o Espírito Santo, precisamos confiar no que diz a Bíblia e a ela obedecer.

Ward oferece uma compreensão da natureza das Escrituras em três seções principais: o esboço bíblico mostra que as palavras da Bíblia formam parte significativa da ação de Deus no mundo; o esboço teológico enfoca a relação das Escrituras com cada uma das Pessoas da Trindade; o esboço doutrinário examina os “atributos” das Escrituras. O último capítulo explora algumas áreas significativas em que a doutrina das Escrituras deve ser aplicada.

Publicado por Vida Nova.

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