O modelo brasileiro de laicidade | Thiago Vieira e Jean Regina

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Assembleia Constituinte de 1988. Foto: Agência Brasil.

O modelo brasileiro de laicidade não significa ausência da religiosidade na esfera pública, mas a garantia e a salvaguarda de todas suas expressões. A Constituição Republicana consagra no artigo 19, I, a separação entre as coisas (mundanas/seculares) do Estado e as coisas (espirituais/transcendentais) da igreja, respeitando, garantindo e protegendo as duas ordens distintas, mas com o mesmo objetivo (bem comum). Um de Ordem Material e outro de Ordem Espiritual.

Outros dispositivos constitucionais, como a imunidade tributária religiosa, que impede a relação de subserviência da igreja ao Estado pelo simples poder de império, deste sobre aquele, e, as proteções constitucionais de liberdade de culto e crença e objeção de consciência demonstram a efetividade constitucional de respeito, garantia e proteção à ordem espiritual e, por conseguinte, ao fenômeno religioso, resultando na plena liberdade religiosa.

O Estado Brasileiro tem como modelo o sistema de laicidade colaborativa (referida por alguns autores como “aberta”), distanciando-se totalmente do laicismo de combate e da laicidade à francesa, em que pese, no dizer de Aloisio Cristovam dos Santos Júnior, o fato de que “não há um modelo universal de laicidade que se aplique indistintamente a todos os países que adotam o regime de separação material entre Estado e igrejas”,[1] até porque o Estado Constitucional reflete os axiomas e a vontade popular quando de sua promulgação, que variam de acordo com a nação e seu consequente povo.

O povo brasileiro revelou sua vontade no preâmbulo constitucional, onde o constituinte originário invocou a proteção de Deus, em clara eleição pelo Estado Constitucional teísta, conforme ensinado por Jónatas E. M. Machado na obra Estado Constitucional e neutralidade religiosa: entre o teísmo e o (neo)ateísmo, já citada.

Apenas, abre-se, ao nosso ver, uma exceção à garantia, salvaguarda e, até mesmo, proteção da religião pelo Estado, na hipótese em que elege o sistema de laicidade neutra aberta ou de estrita separação na teoria, mas de acomodação na prática, como é possível verificar.

O Estado Laico Colaborativo Aberto Brasileiro, constituído como Estado Democrático de Direito, deve proteger seu fundamento de democracia, como ensina Alexis de Tocqueville em seus dois livros sobre a democracia na América, mas desde que se conforme com tal fundamento.

Os fundamentos sobre os quais se assenta o Estado Democrático Brasileiro estão dispostos no artigo primeiro de sua Constituição, quais sejam: soberania, cidadania, Dignidade da Pessoa Humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político, tendo como objetivos fundamentais da República Brasileira (art. 3º):

I — independência nacional;

II — prevalência dos direitos humanos;

III — autodeterminação dos povos;

IV — não intervenção;

V — igualdade entre os Estados;

VI — defesa da paz;

VII — solução pacífica dos conflitos;

VIII— repúdio ao terrorismo e ao racismo;

IX — cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

X — concessão de asilo político.[2]

De outra banda, toda a nação que se assenta sobre o tipo de Estado Constitucional, “não somente pressupõe a existência de Deus e a objetividade dos valores, como é insusceptível de justificação racional e moral se essa pressuposição for falsa”.[3] Ou seja, o Brasil que tem na Constituição Brasileira o fundamento de toda sua ordem jurídica,[4] pressupõe a existência de Deus. Para sanar qualquer dúvida, basta ler a parte final de seu preâmbulo: “promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

Com efeito, toda e qualquer religião, num conceito amplíssimo, que tenha regras objetivas de prática, crença, fé e conduta que atentem diretamente contra os fundamentos do Estado Democrático Brasileiro e os objetivos da República, é destinatária da proteção e das garantias estatais do sistema de Estado Laico brasileiro? Em outras palavras, toda religião que não buscar o bem comum como fim, objetivo final do Estado e da igreja, cada qual em sua ordem (material e espiritual), pode ter suas práticas de crença e de fé garantidas por um Estado Constitucional Teísta assentado numa democracia cristã (no dizer de Tocqueville)?

Jacques Maritain ensinava que a sociedade política deve sempre buscar o bem comum, sendo principal fim e tarefa mais essencial, respondendo:

Qual é o principal fim e a tarefa mais essencial do corpo político ou da sociedade política? Não é o de assegurar a conveniência material de indivíduos isolados, absorvidos cada qual no seu próprio bem-estar e na preocupação de enriquecer. Nem é, tampouco, o de provocar o domínio industrial sobre a natureza ou o domínio político sobre outros homens. É, antes, o de melhorar as condições da própria vida humana ou de alcançar o bem comum da multidão, de tal modo que cada pessoa concreta, não somente em uma classe privilegiada, mas através de toda a massa da população, possa, realmente, alcançar aquela medida de independência que é própria da vida civilizada e que é garantida simultaneamente pela segurança econômica do trabalho e da propriedade, pelos direitos políticos, pelas virtudes cívicas e pelo cultivo do espírito.[5]

Arremata Fontoura:

A secularização completa do poder civil é a negação da origem divina do poder. Dar ao poder social outra origem primária, que não seja Deus, é degradar a natureza humana, sujeitando-a indevidamente a seu semelhante.[6]

Ao falarmos em bem comum, não podemos “subjetivar” (se é que esse verbo existe) a expressão. Para tanto, é importante pensar na forma objetiva de bem comum emanada dos direitos naturais do homem e da dignidade da pessoa humana. Podemos, também, citar como conceito de bem comum o magistério de S. S. o papa João XXIII, na encíclica Pacem in terris:

60. Hoje em dia se crê que o bem comum consiste sobretudo no respeito aos direitos e deveres da pessoa humana. Oriente-se, pois, o empenho dos poderes públicos sobretudo no sentido de que esses direitos sejam reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres. “A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres.”

[…]

63. Por outro lado, exige o bem comum que os poderes públicos operem positivamente no intuito de criar condições sociais que possibilitem e favoreçam o exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres por parte de todos os cidadãos.

[…]

85. Elemento fundamental do bem comum é o reconhecimento da ordem moral e a indefectível observância de seus preceitos. “A reta ordem entre as comunidades políticas deve basear-se sobre a rocha inabalável e imutável da lei moral, manifestada na ordem do universo pelo próprio Criador e por ele esculpida no coração do homem com caracteres indeléveis […] Qual resplandecente farol deve ela, com os raios de seus princípios, indicar a rota da operosidade dos homens e dos Estados, os quais devem seguir os seus sinais admoestadores, salutares e úteis, se não quiserem abandonar à sanha das procelas e do naufrágio todo o trabalho e esforço para estabelecer uma nova ordem de coisas.”[7]

Eis uma questão que merece reflexão. Mas, respondendo à pergunta anterior,[8] entendemos que a resposta é negativa. O Estado laico colaborativo brasileiro é benevolente com o fenômeno religioso porque este visa o bem comum da sociedade política e o aprimoramento do ser humano. Quando este não for o escopo de determinada religião, esta não deverá encontrar amparo e proteção nas garantias constitucionais destinadas ao fenômeno religioso e todas as suas manifestações. Em casos assim, o Estado tem competência para dissolver tal seita religiosa que atenta contra a ordem, a justiça e o bem dos povos. Ensina o mestre Jacques Maritain:

Além disso, considerando o fato da formação de alguma seita religiosa que vise a destruição das bases da vida comum — por exemplo, ao prescrever o suicídio coletivo ou o aniquilamento racial — deveria ter o Estado competência para dissolver tal seita religiosa, assim como qualquer outra associação de caráter criminoso ou destrutivo da segurança nacional. Tudo isso diz respeito à administração de direitos de todos os cidadãos, qualquer que seja sua raça, sua condição social ou sua confissão religiosa.[9]

Para arrematar, Maritain fala da essencialidade do cultivo do espírito pelo ser humano:

À medida que os acontecimentos trágicos das últimas décadas provavam a falsidade do racionalismo burguês nos séculos 18 e 19, impunha-se-nos o fato de que a religião e a metafísica constituem parte essencial da cultura humana, e incentivos primários e indispensáveis para a própria vida da sociedade.[10]

O essencial, tanto para o Estado quanto para a igreja, sempre é a busca da virtude. Ensina John Finnis que “os governantes e leis do Estado têm a autoridade e o dever de promover e defender o bem comum, incluindo o bem da virtude”.[11]

Leia também  Depressão e suicídio: um olhar para o sofrimento humano sob a ótica de um psicólogo calvinista | Aender Borba

___________________

[1] Rosa Silva Júnior; Maranhão; Pamplona Filho, orgs., op. cit., p. 106.

[2] Constituição [da] República Federativa do Brasil (Brasília: Senado Federal, 1988).

[3] Jónatas E. M. Machado, op. cit., p. 28-9.

[4] “É ela a base da ordem jurídica e a fonte de sua validade. Por isso, todas as leis a ela se subordinam e nenhuma pode contra ela dispor”, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de Direito Constitucional, 22. ed. (São Paulo: Saraiva, 1995), p. 18.

[5] Maritain, op. cit., p. 59-60, grifo dos autores.

[6] Fontoura, op. cit., tomo I, p. 141.

[7] João XXIII, “Pacem in terris” Santa Sé (1963), disponível em: <http://w2.vatican. va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem.html>, acesso em: 12 dez. 2017.

[8] Aquela religião que não busca o bem comum como fim, objetivo final do Estado e da igreja, cada qual em sua ordem (material e espiritual), tem suas práticas de crença e de fé garantidas por um Estado Constitucional Teísta assentado numa democracia cristã?

[9] Maritain, op. cit., p. 172.

[10] Ibidem, p. 110, grifo dos autores.

[11] Finnis, p. 64.

Trecho extraído da obra “Direito Religioso: Questões práticas e teóricas“, de Thiago Vieira e Jean Regina, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2020, pp. 163-168. Publicado no site Tuporém com permissão.

Advogado; especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; especialista em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com estudos pela Universidade de Oxford (Regent’s Park College) e pela Universidade de Coimbra; especialista em Teologia e Bíblia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA); mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor visitante da ULBRA. Membro do Conselho Editorial da Dignitas - Revista Internacional do Instituto Brasileiro de Direito e Religião. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião - IBDR. Colunista da Gazeta do Povo e outras revistas e sites. Presidente do sub-comitê da rede de apoio das entidades temáticas em Defesa e Promoção da Liberdade Religiosa da ALESP. Em 2019, foi um dos delegados do Brasil na Universidade de Brigham Young (Utah/EUA) no 26º Simpósio Anual de Direito Internacional e Religião, evento com mais de 60 países representados.
Jean Regina é advogado desde 2004, professor, escritor e ensaísta. Graduado pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA, 2004). Membro da OAB/RS, inscrito sob o n.º 59.445, membro da OAB/SP, inscrito sob o n.º 370.335. Pós-graduado em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa pela Universidade Mackenzie, em parceria com a Universidade de Oxford (Regent’s Park College) e pela Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae/Centro de Direitos Humanos, 2017). Pós-graduado em Teologia e Bíblia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Professor em diversos cursos de Direito Religioso. 2º. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR). Coordenador do corpo de juristas das Igrejas Históricas Protestantes Brasileiras para estudos de Direito Eclesiástico. Colunista dos blogs “Voltemos ao Evangelho” e “Gospel Prime”. Articulista na Revista de Teologia Brasileira/Vida Nova, Burke Instituto Conservador e Mensageiro Luterano. Advogado aliado da Alliance Defending Freedom (EUA), maior entidade de advogados cristãos do mundo, Fellow Alumnus da Acton Institute (EUA). Casado com Patrícia e pai de Felipe e Gabriel Regina.
Direito religioso aborda questões teóricas profundas sem perder o olhar prático da experiência profissional dos autores, Thiago Vieira e Jean Regina, advogados especializados no atendimento a inúmeras igrejas e entidades confessionais no país.

Nosso desejo, ao publicar esta obra — agora em sua terceira edição revisada e ampliada —, é que ela seja uma ferramenta prática para pastores, presbíteros e demais líderes religiosos, auxiliando-os especialmente nas questões jurídicas diárias da igreja.

Além disso, o livro também tem o propósito de, definitivamente, tornar o Direito Religioso uma área autônoma do Direito, sendo uma ferramenta também para advogados, juízes, promotores, professores, acadêmicos e demais operadores do direito.

Publicado por Vida Nova.

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