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Foto de Pedro Lima na Unsplash

Imagine que não há paraíso […]

Você pode dizer que sou um sonhador

Mas não sou o único

Espero que um dia você se junte a nós

E o mundo será como um só

Na sua icônica canção da década de 1970, John Lennon imagina um mundo melhor em que não há guerra, injustiça, contenda, miséria, desigualdade, ruína e dor que ele vê neste mundo. Ele anseia — pode-se ouvir o desejo ardente em sua voz — por um mundo de paz e justiça que “será como um só”, por uma “fraternidade dos seres humanos”, pelo fim da ganância e da fome, por pessoas que compartilham o mundo inteiro em paz e harmonia. Todas as barreiras ao shalom serão removidas, inclusive um cristianismo egoísta e que só pensa no além, outras religiões que promovem e sancionam a violência, e nações que sacrificam bilhões de dólares em armas ao ídolo da segurança garantida.

Lennon reconhece que, para que se torne realidade neste mundo, seu sonho não pode consistir em meras palavras e ideias: deve se tornar visível em uma comunidade, uma sociedade de pessoas que já “imaginam” como ele e estão dispostas a incorporar esse sonho, a dirigir sua vida a partir dele. Ao dizer “não sou o único”, Lennon se identifica de maneira explícita exatamente com este tipo de pessoa: o movimento de contracultura dos anos 60 e 70, uma massa crescente de gente que (acredita ele) já começou a manifestar em sua vida a paz e a justiça pelas quais ele anseia. Ele convida outros a abraçar seu sonho e engrossar as fileiras daqueles que o vivem. Essa comunidade, da qual Lennon se vê fazendo parte, é um povo “venha-e-junte-se-a-nós” que, por suas palavras e vida, oferece uma alternativa atraente para a cultura violenta, gananciosa e egocêntrica dominante da época.

Com o distanciamento histórico, entretanto, sabemos que muitos daqueles que se identificaram com esse movimento contracultural — os hippies dos anos 60 e 70 —acabaram se tornando os “yuppies” dos anos 80, que rejeitaram o idealismo de sua juventude não conformista e abraçaram uma ideologia que priorizava a prosperidade acima de tudo. E sabemos o quanto essa ideologia tem se mostrado destrutiva em seus efeitos sobre a paz e a justiça globais. A visão de Lennon era um lindo sonho e uma nobre ambição; porém, se nunca houve esperança alguma de que ele pudesse se tornar realidade, parece cruel oferecê-lo como uma possibilidade.

O problema é que injustiça e egoísmo estão profundamente arraigados nos recônditos mais íntimos do coração humano. Os membros da jovem comunidade contracultural de quatro ou cinco décadas atrás não conseguiram incorporar a sonhada mudança porque, apesar de todas as suas boas intenções, a ganância e a ruína que eles abominavam estavam tão profundamente enraizadas em seus próprios corações quanto nas estruturas e instituições religiosas, militares e políticas — o “establishment” — que eles repudiavam. Consequentemente, apesar de toda sua percepção dos perigos da cosmovisão científica convencional que havia moldado a tecnocracia ocidental, o movimento contracultural da segunda metade do século 20 não foi e não poderia ser a vanguarda de uma nova humanidade que adotasse paz e justiça verdadeiras.[1] Eles simplesmente não tinham como chegar lá — tinham somente sonhos e boas intenções. Não havia comunidade que conseguisse viver o sonho de Lennon.

No entanto, certamente todos anseiam pelo tipo de mundo que Lennon descreve. Não é a igreja cristã que deve ser exatamente a espécie de sociedade com a qual os hippies dos dias de Lennon sonharam? O que fez Lennon considerar a “religião” propriamente dita — o que para ele certamente incluía a igreja cristã — um dos obstáculos para alcançar paz e justiça para todos? Na Europa do século 17, as longas e dispendiosas guerras entre facções rivais dentro da igreja cristã pareciam ter provado para muitos que a igreja nada mais tinha a oferecer a um mundo moderno: o cristianismo parecia abrir mão da oportunidade de trazer paz, justiça e harmonia social. Desde então, a constante violência daqueles que identificam suas causas pelas religiões que professam — a violência evidente no terrorismo, no genocídio e em outras atrocidades como essas — apresenta um argumento convincente de que o nosso mundo não deveria buscar esperança na fé religiosa tradicional. E o desfile de falsos messias seculares durante os últimos séculos — ciência, tecnologia, educação, políticas liberais, economia de livre mercado entre outros — não proporcionou o mundo dourado prometido no século 18.[2] Portanto, muitas pessoas no nosso mundo deixaram de sonhar ou esperar por um mundo melhor, apesar da insistência de Lennon em que não desistissem — “é fácil se você tentar!”. Mas Lennon estava realmente certo a respeito de uma coisa: esses sonhos e esperanças são críveis somente se houver a vida de uma comunidade que já torna essas coisas visíveis aqui e agora na sua vida comunitária.

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Precisamente por isso a eclesiologia é tão importante! Deus fez a promessa no início da história bíblica de que ele criaria exatamente esse novo mundo. Ele escolheu e formou uma comunidade para encarnar sua obra de cura no meio da história humana. Deveria ser um povo que realmente pudesse dizer “espero que um dia você se junte a nós” manifestando o conhecimento de Deus, a alegria, a retidão, a justiça e a paz desse novo mundo que um dia encheria a terra. Nessa comunidade, todos poderiam ver os princípios do tipo de mundo que Deus havia originalmente planejado na criação, e que ele ainda tinha em mente realizar por meio de sua obra redentora no final da história. Durante o período histórico do Antigo Testamento, Israel foi escolhido para ser essa comunidade, e a dádiva da lei e da sabedoria de Deus a Israel expressou um padrão de vida que tornaria palpável esse novo mundo no meio dos povos do antigo Oriente Próximo. Porém, o povo de Israel fracassou seguidamente na sua tarefa, não foi a comunidade exemplar que Deus havia pretendido, porque o velho mundo ainda governava seu coração.

Deus renovou continuamente o povo de Israel, mas através dos profetas prometeu que um dia agiria de maneira decisiva para finalmente renová-lo, tratar de seu pecado e convertê-lo em uma nova sociedade de pessoas restauradas. Ele o fez em Jesus, o Cristo, e pelo Espírito. E esta é a boa-nova: na cruz Deus obteve uma vitória decisiva sobre tudo que Lennon abominava. O novo mundo pelo qual ele ansiava começa na ressurreição. Jesus enviou seu recém reunido “Israel” (que logo incluiria os gentios), capacitado pelo Espírito, para o meio de culturas em todas as partes do mundo, como um sinal tangível e visível de que o novo mundo de Deus de fato estava se aproximando. As palavras e ações, a própria vida de cada um deles, bem como a vida comunitária dos seguidores de Jesus, afirmam: “Nós somos o prenúncio de um novo dia, de um novo mundo. Porque um dia o mundo realmente viverá como um só. Você não quer juntar-se a nós?”. É por esse motivo que a igreja foi escolhida e experimentou o que é salvação. Isso é quem nós somos.


[1] Theodore Roszak, The Making of a Counterculture: Reflections on the Technocratic Society and Its Youthful Opposition (Garden City, NY: Doubleday, 1969), 205.

[2] Ver Michael W. Goheen; Craig G. Bartholomew, Living at the Crossroads: An Introduction to Christian Worldview (Grand Rapids: Baker Academic, 2008), 103-6.

Trecho extraído e adaptado da obra “A igreja missional na Bíblia: luz para as nações“, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2014, p. 17-20. Traduzido por Ingrid Neufeld de Lima. Publicado no site Cruciforme com permissão.

Michael GoheenMichael W. Goheen (PhD, Universidade de Utrecht) é diretor de educação teológica no Missional Training Center e pesquisador residente no Surge Network of Churches, em Phoenix, Arizona. Autor do livro A igreja missional na Bíblia, publicado por Vida Nova.
O corpo de literatura sobre a igreja missional está em constante crescimento, mas a palavra “missional” é com frequência definida de maneiras conflitantes, com pouco empenho em fundamentá-la firmemente nas Escrituras. Michael Goheen, orador dinâmico, autor e coautor de diversos livros, desembrulha a identidade missional da igreja ao investigar o papel para o qual o povo de Deus foi chamado a cumprir na história bíblica. Goheen mostra que a identidade da igreja pode ser entendida somente quando seu papel é articulado no contexto de toda a narrativa bíblica, não somente do Novo Testamento, mas também do Antigo. Ele também examina desdobramentos e implicações práticas, apresentando sugestões já testadas e aprovadas para as igrejas contemporâneas.

Publicado por Vida Nova.

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