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19/out/2022Existe uma abordagem que se costuma usar ao defender a reaproximação entre evangélicos e católicos. Desta vez, a conexão advém da história da igreja e, especificamente, do patrimônio dos primeiros séculos da igreja. Os termos “fé nicena” ou “cristianismo niceno” são considerados sinônimos do cristianismo. São definidos suficientemente nas questões essenciais, mas, ainda assim, permanecem livres das incrustações confessionais subsequentes que “dividiram” o cristianismo entre as igrejas oriental e ocidental no século xi e entre as igrejas católica romana e protestante no século XVI.
Desejoso de apreciar a plausibilidade da fé cristã, em 1952, o intelectual cristão C. S. Lewis cunhou a expressão “cristianismo puro e simples”.[1] Ele o fez precisamente para indicar os contornos essenciais da fé cristã tais quais enunciados no Credo de Niceia, que todos os cristãos, qualquer que seja a tradição à qual pertençam (católica romana, protestante, ortodoxa etc.), tomam para si próprios. Na teologia ecumênica contemporânea, a “fé nicena” — costumeiramente designada como a “Grande Tradição” — é considerada a plataforma teológica a partir da qual todas as famílias tradicionais do cristianismo devem reconhecer umas às outras, já que todas derivam-se da árvore histórica do cristianismo niceno. Segundo esta perspectiva, Niceia é símbolo do passado indiviso, que se transforma na esperança de unidade a ser redescoberta.[2]
O apelo ao cristianismo niceno no evangelicalismo
O forte apelo à “fé nicena” vai além de círculos ecumênicos. Desejosos de superar a tendência fundamentalista que subestima o patrimônio histórico da fé, setores importantes do mundo evangélico convocam em alto e bom som ao evangelicalismo que “reclame” o testemunho apostólico que encontra o seu símbolo dogmático por excelência na fé nicena.[3] Tal convite imperioso pôs em movimento certo dinamismo no estudo dos Pais da Igreja nas últimas décadas, até mesmo entre estudiosos evangélicos.[4] Ganhou popularidade entre evangélicos a ideia de que a fé nicena (centrada na profissão da Trindade e na cristologia ortodoxa) é o denominador comum entre evangélicos e católicos romanos, ao passo que as diferenças se encontrariam em doutrinas como soteriologia, eclesiologia e mariologia.[5] A fé nicena aparentemente partilhada por todos é o denominador comum que refletiria “concordância mais profunda” entre todas as expressões do cristianismo, “a despeito de diferenças profundas” entre elas que viriam a ocorrer depois.[6] Nas palavras de Craig Carter:
A Grande Tradição da ortodoxia cristã começa com o Antigo e Novo Testamentos, cristaliza-se nos debates trinitários do século IV e, então, continua com Agostinho, Tomás de Aquino, os principais Reformadores protestantes, a escolástica do período pós-Reforma, bem como a contemporânea teologia confessional conservadora de católicos romanos, ortodoxos orientais e protestantes.[7]
Eis o ecumenismo “niceno” da Grande Tradição: uma frente transversal que envolve os conservadores de todas as famílias da cristandade e que incorpora todos aqueles que remetem a Niceia como plataforma teológica.
A pergunta a ser feita é se a fé nicena consegue realmente cumprir o papel que lhe atribuem. É necessário verificar a plausibilidade da ideia segundo a qual o ecumenismo contemporâneo pode achar em Niceia um ponto de encontro que, historicamente, preceda as controvérsias confessionais; que, teologicamente, acolha todas as confissões desenvolvidas após Niceia; e que, ecumenicamente, proporcione uma fundação comum para reconstruir a unidade perdida. À vista disso, será que a fé nicena é (ou pode ser) a base teológica para o ecumenismo contemporâneo? A resposta é negativa, por ao menos três razões. Atentemos para elas, cada uma à sua vez.
Três objeções ao uso ecumênico da fé nicena
Em primeiro lugar, o vocabulário de Niceia ao qual todas as confissões se referem é o mesmo: “Deus Pai”, “Jesus Cristo”, “salvação”, “Espírito Santo”, “virgem Maria”, “igreja”, “santa igreja católica e apostólica”, “batismo”, “remissão de pecados”. No entanto, embora os significantes sejam os mesmos, na medida em que os mesmos sons se combinam para formar as mesmas palavras, juntadas na mesma ordem, não se pode dizer o mesmo do significado teológico dos vocábulos empregados. Quando um católico romano se refere à “virgem Maria”, à “salvação”, à “igreja” e assim por diante, será que ele quer dizer a mesma coisa que um evangélico, um ortodoxo oriental ou um protestante liberal o fariam ao utilizar as mesmas palavras? É claro que não. Pense na palavra “salvação”: um católico romano a entenderia como itinerário sacramental sob a autoridade da igreja e com o auxílio das intercessões de Maria e dos santos; um evangélico entende a salvação como fundamentada unicamente em Jesus Cristo e recebida somente pela fé; um liberal tende a entendê-la como a busca por ser alguém melhor, a viver em uma sociedade melhor.
As palavras são as mesmas, mas seus significados, substancialmente diferentes.
Remeter a Niceia não é solução para transpor o abismo. Considere a palavra “igreja”: o católico romano tem uma visão da igreja como sociedade hierárquica cujo líder absoluto é o papa, que recebe o título de “Vigário de Cristo”; os evangélicos entendem a igreja, em linhas gerais, como comunhão dos crentes que dão testemunho do evangelho, mas não prolongam a encarnação de Jesus Cristo e, portanto, não reivindicam as suas prerrogativas. A “Grande Tradição” fala da “igreja”, mas será que cremos na mesma “igreja”? Seria fácil multiplicar a quantidade de exemplos.
Existe uma área de sobreposição e uma área de diferenciação que equivocam o uso dos mesmos termos. De fato, as palavras do Credo de Niceia são marcadas por entendimentos diferentes do ponto de vista teológico. Na recitação comum, a impressão é que todas elas dizem a mesma coisa, o que é verdade no nível fonético, mas não no nível semântico. Chamar a fé nicena de denominador comum pode ser apelo emocional, mas não se trata de ação responsável porque, embora se tenha a impressão de que dizemos as mesmas coisas, a realidade é que estamos dizendo coisas distintas.
Em segundo lugar, Niceia não é ponto de chegada, mas um passo na história da igreja. Por exemplo, após Niceia, ocorreu o Concílio de Éfeso (431 d.C.), que dogmatizou o título mariano de “Mãe de Deus”; o Concílio de Trento (1545–1563), que definiu a justificação como processo sinergista dentro de um sistema sacramental; os dogmas marianos da imaculada conceição (1854) e da assunção corpórea (1950); o Concílio Vaticano I (1869–1870); e, por fim, o Vaticano ii (1962-1965), com sua catolicidade inclusiva. A teologia das diversas tradições é caracterizada, atualmente, pela irreversível estratificação doutrinária e espiritual, não sendo mais aquela de Niceia. Por exemplo, o catolicismo romano deu estatuto dogmático à sua mariologia e ao papado. Tais dogmas marianos e papais interferem na cristologia, na doutrina do Espírito Santo, na eclesiologia e na salvação. Quando Niceia se refere a Jesus Cristo, ao Espírito e à igreja, o catolicismo romano atual também insere Maria nesse quadro geral. Quando Niceia se refere à salvação e ao perdão dos pecados, o catolicismo romano após Trento lê os sacramentos e as indulgências. Não é possível voltar no tempo, como se dezessete séculos de história não tivessem acontecido. É simplista, além de anti-histórico, pensar que a profissão comum de Niceia possa ser extraída dos importantes acréscimos que se transformaram nas chaves interpretativas católico-romanas do cristianismo dos credos. Niceia não pode, em última instância, unir-nos, pois os evangélicos e os católicos desenvolveram diferentes dogmas e práticas nas suas respectivas histórias, em todas as áreas centrais da fé cristã. Falamos de coisas diferentes, usando as mesmas palavras para descrever universos radicalmente distintos.
Em terceiro e último lugar, a fé nicena não pode ser a base do ecumenismo contemporâneo, por causa dos distintos papéis que as diferentes tradições cristãs atribuem à profissão de um credo. O que significa “professar” um credo como o de Niceia? Aprendê-lo de cor e recitá-lo? Crer nas afirmações que ele contém? Identificar-se com a cosmovisão à qual ele dá voz? Executar um ato convencional, ligado a uma prática religiosa tradicional? Repetir mecanicamente uma “cantiga” que recorda a nossa infância? A gama de possibilidades para a apropriação de Niceia é ampla. Por exemplo, quantos cristãos liberais (que não teriam nenhum problema em dizer que Niceia é importante) creem que Deus é verdadeiramente o criador dos céus e da terra? Quantos estão convencidos de que Jesus realmente nasceu da virgem Maria, ou que ressuscitou corporalmente dentre os mortos? Se tivermos só um pouco de familiaridade com a teologia contemporânea, perceberemos quantas interpretações há destes e de outros alicerces da fé cristã. Assim, o que significa professar a fé conjunta, de modo conjunto, se, apesar de recitarmos as mesmas palavras, cremos em doutrinas substancialmente diferentes? Além disso, para quantos cristãos nominais a recitação do credo faz alguma diferença em suas vidas? O que significa dizer “Creio…” para tantos que, apesar de terem sido batizados e de, ocasionalmente, frequentarem cultos religiosos, não são regenerados e, portanto, não são crentes? É claro que podem recitar o Credo de Niceia, mas tal profissão não passa, muitas vezes, de um exercício retórico, com quase nenhum valor espiritual. Por si só, recitá-lo em conjunto não traz a unidade.
Remeter-se a Niceia como o denominador comum do ecumenismo é doce ilusão, e não esperança teologicamente responsável. À luz destas três razões, entre as confissões e tradições cristãs há discordância mais profunda, a despeito de algumas áreas de concordância aparente e formal. O caminho da unidade sempre passa pela verdade bíblica que o Concílio de Niceia buscou honrar, mesmo nas complexidades da história. Por si só, Niceia é necessário. Não é, porém, suficiente para expressar a unidade bíblica pela qual o Senhor Jesus orou, dando sua vida para obtê-la.
[1] C. S. Lewis, Mere Christianity (Londres: Geoffrey Bles, 1952) [publicado em português por Martins Fontes sob o título Cristianismo puro e simples].
[2] Veja, por exemplo, C. Steitz (org.), Nicene Christianity: the future of a new ecumenism (Grand Rapids: Brazos Press, 2004).
[3] T. George (org.), Evangelicals and the Nicene faith: reclaiming the apostolic witness (Grand Rapids: Baker, 2011).
[4] Para um panorama, veja K. Stewart, “Evangelicalism and patristic Christianity: 1517 to the present”, Evangelical Quarterly 80.4 (2008), p. 307–21.
[5] Esta é a abordagem adotada pela iniciativa de Evangelicals and Catholics Together [Evangélicos e Católicos Unidos], desde 1994.
[6] Conforme argumentam K. Collins e J. Walls, Roman but not Catholic: what remains at stake 500 years after the Reformation (Grand Rapids: Baker, 2017), p. 78.
[7] C. A. Carter, Interpreting Scripture with the great tradition: recovering the genius of pre-modern exegesis (Grand Rapids: Baker, 2018), p. xi.
Trecho extraído da obra “Mesmas palavras, universos distintos”, de Leonardo De Chirico, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2022, p. 34-40. Traduzido por Djair Dias Filho. Publicado no site Cruciforme com permissão.
Leonardo De Chirico é doutor em Teologia pelo King’s College de Londres, pastor da igreja Breccia di Roma, professor de Teologia Histórica no Istituto di Formazione Evangelica e Documentazione (IFED) em Pádua e diretor de Reformanda Initiative. É o editor de Studi di teologia, revista teológica evangélica em publicação na Itália há quarenta anos, além de autor dos livros Evangelical Theological Perspectives on Post-Vatican II Roman Catholicism (2003), A Christian’s Pocket Guide to the Papacy: Its origin and role in the 21st century (2015) e A Christian’s Pocket Guide to Mary: Mother of God? (2017). Também escreve para o Vatican Files [Arquivos do Vaticano], em www.vaticanfiles.org. |
Protestantes evangélicos e católicos romanos compartilham a mesma fé? Será que suas incontornáveis diferenças teológicas revelam que, apesar de serem chamados de cristãos, na verdade, não pregam o mesmo evangelho? Leonardo De Chirico, estudioso renomado tanto da teologia católica quanto da evangélica, apresenta uma clara e profunda reflexão sobre a questão de católicos e evangélicos comungarem ou não da mesma mensagem. Embora as palavras usadas para compreender o evangelho sejam as mesmas, elas divergem drasticamente nas questões fundamentais da teologia. A partir de uma análise criteriosa, De Chirico oferece uma crítica arguta e bem fundamentada da mariologia, da intercessão dos santos, do purgatório e da infalibilidade papal. Em sua visão, a teologia católica não é fiel ao evangelho, e, por isso, a Reforma deve continuar protestando ainda hoje. Publicado por Vida Nova. |