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Toda semana surgem discussões sobre maus tratos a animais e isso pode nos levar a pensar sobre valores éticos que damos a esses seres e até mesmo aos seres humanos. Veja-se a decisão do STF de tornar constitucional o sacrifício de animais em cultos religiosos (28/03/2019).

Logo, fiz três conexões de coisas que li sobre, mesmo não tendo uma opinião aprofundada sobre o assunto.

Uma primeira conexão foi com um quadrinho que li, Shangri-la, do francês Mathieu Bablet. Trata-se de um quadrinho de ficção científica que ocorre em um futuro distópico. Um dos temas principais é a questão da utilização de animais da forma que bem se entender para trazer conforto aos humanos nessa sociedade futurística.

Há uma cena bastante chocante em certa parte do quadrinho, em que os personagens principais se veem face a face com um fábrica de montagem de componentes eletrônicos com raças animais sendo modificadas para atuar na linha de montagem de forma escrava.

Essa cena me levou à obra de H. G. Wells “A ilha do doutor Moreau“. A ideia básica deste livro é tratar acerca das polêmicas em torno do nascente campo da biologia e da vivissecção no final do século XIX. A obra foi publicada em 1896, e traz a narração em primeira pessoa de Edward Prendick, um náufrago resgatado por um navio e deixado na ilha do Doutor Moreau, que criava híbridos de humanos através da vivissecção (cirurgia experimental em organismos vivos) de animais. Como é comum em obras de ficção científica, o livro traz uma série de temas filosóficos como dor e crueldade, responsabilidade moral, identidade humana e interferência humana na natureza.

Talvez uma questão fundamental de cunho filosófico esteja na própria figura do Dr. Moreau. Qual o limite moral de experimentos biológicos? Pela boca do doutor, entre uma vivissecção e outra, ouvimos:

“Até hoje a questão ética deste meu trabalho não me preocupou, em absoluto. O estudo da natureza deixa um homem tão despido de remorsos quanto a própria natureza. Fui em frente, sem pensar em nada a não ser nos problemas com que me defrontava.”

Um alerta contra a noção de que a ciência deve ser deixada aos cuidados unicamente dos cientistas e de que a filosofia e o estudo da ética são fúteis e desnecessários. Mas tem um outro autor que pensou um pouco mais detidamente sobre animais e questões éticas. E essa é a minha última conexão (apesar de pensar em diversas outras): um texto de C. S. Lewis chamado “Vivissecção” (1947), publicado no Brasil em “Ética para viver melhor” (Pórtico) e também em “Deus nos bancos dos réus” (Thomas Nelson).

Na verdade, Lewis tinha muitas questões e reflexões sobre o sofrimento animal e isso transparece em diversas obras. Em Perelandra, por exemplo, segundo romance de sua trilogia cósmica, publicada em 1943, nós lemos sobre uma figura demoníaca que rasga criaturas parecidas com sapos e as deixa abertas e vivas para sofrer agonias. A descrição das feridas em forma de “V” traz à mente a vivissecção.

Umas das coisas que mais chama atenção em quem lê as Crônicas de Nárnia é o papel desempenhado pelos animais. Nas Crônicas, os maus-tratos aos animais sempre são um sinal de impiedade ou cegueira moral. (Bashham, p. 265.)

Voltando ao artigo “Vivissecção” de Lewis, que foi escrito em 1947 como uma crítica voraz ao sofrimento dos animais. Nesse texto Lewis critica a visão de alguns cristãos de que, por os seres humanos serem hierarquicamente superiores na ordem da criação com relação aos animais, isso justificaria infringir dor aos animais com intuito de produzir um bem maior. Não que Lewis fosse contrário à morte de animais, mas que o sofrimento deles deve ser evitado e amenizado. Lewis afirma que “deveríamos nos mostrar melhores do que os animais ao reconhecer que temos deveres para com eles” (Vivissecção, p. 158).

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E mais importante, Lewis critica cientistas naturalistas que empreendem práticas como a vivissecção, pois, em princípio, eles negam qualquer diferença entre seres humanos e animais; do ponto de vista naturalista e puramente evolucionista, todos somos iguais. Mas mesmo que naturalistas considerem humanos com um status superior aos animais, o que lhes proíbe de “ascender” a linha para aplicar crueldade a outras raças humanas, outros povos menos civilizados etc.? O próprio Lewis viu o auge da utilização de um darwinismo puramente naturalista como justificativa para domínio europeu sobre outros povos.

O que Lewis quer dizer é que, aqueles que não possuem escrúpulos na forma de utilização de vidas animais, também não terão resistência em experimentos humanos. Para ficar em um exemplo, testes com clonagem animal logo escalam para clonagem humana. E como a corrupção moral não vê limites, podemos refletir sobre as implicações.

“Cortamos os animais só porque não são capazes de nos deter e porque estamos defendendo nosso lado na luta pela sobrevivência, e é lógico, como consequência, cortar deficientes, criminosos, inimigos ou capitalistas pelos mesmos motivos.” (Vivissecção, p. 160).

Experiências como estas já ocorreram diversas vezes na história da humanidade e podem acontecer novamente.

Para Lewis, o sucesso de um tipo de discurso para os usos da vivissecção, e de qualquer sofrimento animal banal, aponta para a vitória de um utilitarismo rude e amoral que, em última instância, justificaria os campos de concentração nazistas e Hiroshima. Em nossa sociedade secular, em que os valores não são objetivos, parece não existir meios de defender que algo é errado; o mal e o cruel são relativos.  Mas logo a conta utilitarista chegará e aí talvez não tenhamos mais peito nem argumentos para confrontar certas opções. Porque, se todas as opções culturais são válidas, se não existe respeito pela natureza e pela criação, tudo é permitido e sufocaremos em um mundo que começou a ser destruído primeiramente no campo das ideias. É por isso que Lewis achava tão importante e útil estudar e combater as más filosofias, mesmo em tempos de guerra, quando parecia ser mais correto gastar dinheiro e tempo com armas e exércitos. Lewis está chamando atenção de que as ideias têm consequências. Mesmo algo que nos aparece como banal como o sofrimento animal carrega sérias implicações.

Referências bibliográficas

C. S. Lewis. Vivissecção. IN: Lewis, Ética para viver melhor. São Paulo, Planeta, 2017.

Gregory Bassham. Alguns cães vão para o céu: Lewis e a salvação animal. IN: Gregory Bassham, Jerry L. Walls (org.). As crônicas de Nárnia e a filosofia. São Paulo, Madras: 2006.

Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)".

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