Em linhas gerais, uma teodiceia é a “defesa” de Deus diante da realidade do mal. Uma teodiceia cristã[1] busca dar razões para a possibilidade de coexistência entre o mal e um Deus bom, amoroso e todo-poderoso. Para interagir com este dilema, teólogos e filósofos geralmente apelam para argumentos lógicos e formulam respostas muitas vezes interessantes, mas também bastante complexas.
Contudo, nos dias de hoje, fala-se muito a respeito de questões afetivas. Alguns estudiosos defendem, inclusive, que estamos passando por uma mudança profunda na cosmovisão dominante, onde os aspectos racionais perdem espaço para as emoções e sentimentos individuais. Independentemente das nossas opiniões a respeito das consequências dessa mudança, parece ser inegável que os desejos e afetos exercem um papel importante na vida das pessoas e devem ser levados em conta quando interagimos com não-cristãos.
Qual o lugar das teodiceias nesse contexto? Seria possível desenvolver uma teodiceia que lide com questões afetivas também? Pode parecer um contrassenso unir algo tão racional como uma teodiceia a algo tão subjetivo quanto sentimentos. Todavia, eu acredito que sim, é possível desenvolver uma Teodiceia Afetiva.
O primeiro passo em direção a uma Teodiceia Afetiva é reconhecer que nossa rejeição a Deus envolve muito mais do que objeções racionais. Sim, muitos usam argumentos racionais para se oporem a Deus. Contudo, como bem lembra Frank Turek, nós rejeitamos a Deus não apenas com nossa mente, mas também com nosso coração.[2] A única teodiceia capaz de convencer o coração é a teodiceia do desejo, dos sentimentos, dos afetos.
Diante disso, um bom caminho é viver uma vida que seja desejável até mesmo para aqueles que rejeitam a Deus. Obviamente, não basta simplesmente viver como este século e passar um verniz de cristianismo. Esse é o erro que assola a teologia da prosperidade: crer que Deus é um mero instrumento e usar o nome de Cristo como uma palavra mágica capaz de materializar a vida mundana que nós desejamos. Não, é preciso ir além da superfície e viver uma vida marcada pela bondade em meio a um mar de maldade.
Mas em que consiste essa vida marcada pela bondade? Por mais importante que seja fazer boas obras, não pode ser apenas isso. Afinal, não é necessário ser cristão para fazer o bem de acordo com padrões humanos. É preciso um estilo de vida que atrai não apenas em função de boas ações horizontais, mas também porque aponta para a fonte de todo o Bem, para aquele que cativa nossos pensamentos e sacia nossos desejos: o Santo Deus.
Creio que o mais importante nesse processo de apontar para Deus é apontar para a santidade divina. Isso por que a santidade acrescenta uma dimensão extra ao nosso mundo corroído pelo pecado: a dimensão daquilo que é separado e incorruptível, a dimensão da santidade. Uma vida de santidade é uma vida translúcida à presença de Deus. Portanto, é um estilo de vida que permite que todos vejam a luz de Cristo que, brilhando através de nós, dá contornos definidos, dimensões reais, e cores vivas a este mundo de sombras.
Além disso, a glória divina irrompendo em nós através da ação do Espírito Santo, concede peso a todos os aspectos da existência. Deixamos de existir apenas para nós mesmos e passamos a ter um lugar especial na história da humanidade. As decisões deixam de ser incidentais e passageiras para ganharem repercussões eternas. E os inevitáveis sofrimentos perdem peso quando comparados ao peso da glória que receberemos em Cristo Jesus.
Por fim, uma vida de santidade demonstra que é possível viver uma vida boa e desejável e, ao mesmo tempo, agradar a Deus. Desde o Éden Satanás tenta nos convencer que Deus é um estraga-prazeres cósmico, e que a única forma de sermos completos e felizes é desobedecendo aquilo que Deus nos ordenou. Demonstrar o contrário, que uma vida marcada pela santidade é uma vida desejável, é uma arma poderosíssima para convencer corações inquietos a aquietarem-se em Deus.
Em resumo, uma vida de santidade é uma vida que aponta diretamente para o único ser capaz de satisfazer todos os nossos desejos e conceder lugar a todas as nossas emoções. É por isso que faz sentido falar em uma “Teodiceia Afetiva”: afetiva porque lida com os afetos, desejos, sentimentos; teodiceia porque demonstra quão desejável pode ser uma vida de santidade em um mundo marcado pelo pecado.
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[1] É importante dizer que uma teodiceia não precisa ser, necessariamente, cristã e muito menos ortodoxa. Há teodiceias muçulmanas, judaicas, e até mesmo liberais.
[2] Frank Turek menciona isto neste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=BCyTJvx4jJc
Pai e marido, Lucas Vasconcellos Freitas é Mestre em Estudos Teológicos com ênfase em Estudos Interdisciplinares pelo Regent College (Vancouver, Canadá) e em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É parte da equipe do Claraboia Brasileira e escreve ficção nas horas vagas. |