No sinuoso caminho entre a cruz de Cristo e os dias da pós-modernidade, parte da cristandade ocidental derrapou no entendimento de um aspecto basilar da fé e passou a crer em uma loucura. Em algum ponto da jornada, sabe-se lá por quê, cristãos assumiram como verdade a ideia biblicamente insana de que é possível ser um servo bom e fiel a Cristo, aprovado por ele, e ser uma pessoa arrogante.
Difícil dizer, em termos escriturísticos, de onde tiraram essa ideia, mas ela está aí, presente em muitos púlpitos, em inumeráveis postagens das redes sociais, em músicas gospel sub-bíblicas triunfalistas, em debates de televisão, em textos e posturas pessoais. Fato é que, lamentavelmente, surgiu no meio cristão a diabólica ideia de que é possível ser, concomitantemente, cristão e arrogante. E a verdade é que são realidades absolutamente imiscíveis e irreconciliáveis.
João Calvino escreveu em As Institutas: “Se queremos dar lugar ao chamamento de Cristo, que bem longe de nós esteja toda arrogância”. C. S. Lewis foi incisivo no clássico Cristianismo puro e simples: “O vício fundamental, o mal supremo, é o orgulho. A devassidão, a cobiça, a ira, a embriaguez e tudo o mais não passam de ninharias comparadas com ele. É por causa do orgulho que o diabo se tornou o que é. O orgulho leva a todos os outros vícios; é o estado mental mais oposto a Deus que existe”. Orgulho, não custa lembrar, é sinônimo de arrogância, assim como altivez e soberba.
A arrogância é tão abominável para Deus que ele considerou preferível deixar o espinho na carne de Paulo do que permitir que o apóstolo fosse enredado pela arrogância: “Portanto, para evitar que eu me tornasse arrogante, foi-me dado um espinho na carne, um mensageiro de Satanás para me atormentar e impedir qualquer arrogância” (2Co 12. 7). E isso porque o olhar altivo do arrogante — reflexo externo de um coração apodrecido pela arrogância — é um dos defeitos que Deus mais detesta, como Salomão deixa claro em Provérbios 6.16-19. O salmista não mediu palavras ao reconhecer diante de Deus: “Os arrogantes não permanecerão à tua vista” (Sl 5.5).
Mais do que uma crença culturalmente adquirida, a tresloucada ideia de que é viável ser, ao mesmo tempo, cristão e arrogante é resultado de profunda ignorância bíblica. Nesse sentido, assusta ver grandes expoentes da teologia brasileira em posturas extremamente arrogantes em debates, postagens de redes sociais, programas de TV, exposições e diálogos, para não falar do trato pessoal. A impressão que passa é que esses homens e mulheres, embora intelectualmente privilegiados, não passaram pela renovação da mente e do coração.
Mais assustador ainda é quando a arrogância põe as garras para fora em debates apologéticos. Ora, como um cristão minimamente coerente pode defender a fé ferindo a fé? Que contradição é essa? Usar as armas do diabo — como a arrogância visivelmente é — para lutar a favor do manso Cordeiro é o suprassumo dos paradoxos. Como crer que, em defesa da sã doutrina, se pode ferir valores tão elementares do evangelho como a humildade, a gentileza, o bom trato interpessoal? O pretenso senso de superioridade intelectual, moral ou espiritual, denunciado pela arrogância, é opróbrio para quem diz ser homem de Deus. É incompreensível.
Todo cristão recém-convertido já aprendeu que “o orgulho precede a destruição; a arrogância precede a queda” (Pv 16.18). Como crer, então, que a arrogância é aceitável para Deus? Como acreditar que não há nenhum problema em ser arrogante quando o Altíssimo assevera nas Escrituras: “o que tem olhar arrogante e coração orgulhoso, não o suportarei” (Sl 101.5). Como pode um teólogo ou pastor ser arrogante em suas posturas e palavras se a arrogância denuncia um coração sem Cristo? Como pode um ministro do evangelho da cruz passar por cima de: “é indispensável que o bispo, por ser encarregado das coisas de Deus, seja irrepreensível, não arrogante […]” (Tt 1.7)? A esse, Deus só tem uma coisa a dizer: arrependa-se e converta-se dos seus maus caminhos!
Há muitas e muitas passagens bíblicas que revelam que a arrogância não tem espaço no coração de Deus e configura, sim, pecado — com terríveis consequências. Alguns exemplos são: 1Samuel 2.3; 2Reis 19.28; Jó 35.12; Neemias 9.10,16; Salmos 40.4; 75.4; 94.4; 131.1; Provérbios 8.13, 21.4,24; Eclesiastes 7.8: Daniel 5.20; Isaías 2.11,17; 10.12; 13.11; 16.6; Jeremias 50.29; Ezequiel 7.24; 16.50; Oseias 5.5; Habacuque 2.5; Romanos 1.30; 2Timóteo 3.2; Tiago 4.16; 2Pedro 2.10,18; Judas 1.16; Apocalipse 13.5.
Como pode alguém não cair de joelhos, em profunda contrição de temor e lágrimas, ao ler afirmações bíblicas como: “Porque o Dia do Senhor dos Exércitos será contra todos os orgulhosos e arrogantes e contra todos os que se exaltam, para que sejam humilhados” (Is 2.12)? Você consegue enxergar a gravidade do problema? E consegue ver a seriedade de não tratarmos a arrogância com a gravidade que a Bíblia lhe atribui?
Cristianismo e arrogância são incompatíveis. Ser portador da verdade não pode nos envaidecer, muito menos nos ensoberbecer. Isso é um comportamento esquizofrênico. Nunca podemos esquecer de que tudo é fruto de graça, logo, se o que temos de bom foi presenteado pelo Deus gracioso, não é mérito nosso. Nem mesmo a verdade. Não, ser um porta-voz da verdade não nos dá o direito de sermos arrogantes ao proclamarmos ou defendermos essa mesma verdade.
Temos de pregar regularmente contra a arrogância, esse mal abominável tão difundido impunemente entre líderes religiosos e, por efeito cascata, entre membros de igrejas. As redes sociais que o digam! Precisamos escrever livros sobre o tema. Organizar conferências teológicas que o discutam. Botar a boca no trombone.
De que adianta debatermos tanto sobre as marcas de igrejas saudáveis e sobre qual é a igreja relevante se os que compõem tais igrejas vivem a arrogância sem considerá-la um mal? Não há pecado pior do que aquele do qual não se arrepende! E, se um pecado não é visto como pecado e, portanto, não é denunciado, naturalmente ninguém se preocupará com ele, logo, não se arrependerá, portanto, viverá em pecado não confessado. Resultado: líderes que dão mau exemplo, membros que mimetizam o pecado dos líderes e, por fim, igrejas cancerosas, carcomidas pelo abominável, hediondo e repulsivo pecado da arrogância.
Já passou da hora de mudar isso. Líderes, pastores e teólogos: olhem para a arrogância com o nojo que esse pecado merece. E o denunciem. Parem de falar apenas sobre calvinismo versus arminianismo, cessacionismo versus continuísmo e questões que compõem o eterno rame-rame da teologia e passem, pelo amor de Deus, a tratar daquilo que ninguém mais está tratando. Contamos com vocês — com seu ensino e, acima de tudo, com o seu exemplo.
Maurício Zágari é membro da Igreja Cristã Nova Vida em Copacabana (Rio de Janeiro, RJ), é casado com Alessandra e pai de Laura. É teólogo, escritor, editor e jornalista. É autor de vários livros, dentre eles "O fim do sofrimento", "Perdão total no casamento" e "Perdão total na igreja". Escreve regularmente em seu blog Apenas (apenas1.wordpress.com). |
5 Comments
Muito interessante essa exposição de algo que fica velado e com um ar de cinismo. Essa postura acaba sendo visto de forma honrada e é glorificada, ao invés de ter pessoas que colocam o dedo no rosto do arrogante exponha. Infelizmente, a arrogância está travestida como firmeza de fé, zelo pela verdade e “santidade”.
Que Deus nos ajude a sermos quebrantados pela cruz de Jesus!!!
Essa turma precisa, de fato, passar pela renovação da mente e do coração. Depois dessa transformação, a leitura de Igreja Sinfônica, da Mundo Cristão, cairia muito bem. Sou presbiteriano. Acabei de ler um clássico que ganhei do meu pastor: O Sistema Presbiteriano, da Ed. Cultura Cristã. No livro, o autor explica a razão de ser de todas as denominações e, claro, a razão de ser do sistema presbiteriano. Apesar de defender um sistema específico, o autor fala em tom amistoso e respeitoso das outras tradições. A Igreja é linda. O Corpo de Cristo é maravilhoso. Chega de brigas bobas e de tanta arrogância! Valeu Maurício!
necessário.
Ótimo!
Se fosse um texto falando sobre supralapsarianismo e infralapsarianismo já teria pelo menos 1000 comentários.
Parabéns pelo texto.
Vigiemo-nos.
Conheço um rapaz que talvez seja um cristão que se mostra em tudo superior, na faculdade chama os demais alunos de burro, se gaba de receber cantadas pelo celular e incrível como a esposa confirma o ocorrido, se autoproclama maravilhoso, condena as pessoas de outras denominações como heréticas, gosta de se impor em debates políticos, e por aí vai, agora uma pergunta isso pode ser considerado uma idolatria de si mesmo?