“Todos os homens devem morrer”: Tolkien, Beauvoir e George Martin têm algo em comum? | Luiz Adriano Borges

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Simone de Beauvoir, George R. R. Martin e J. R. R. Tolkien

A morte sempre foi um tema sensível na história da humanidade. Talvez por estarmos em meio a uma pandemia nossos pensamentos se voltam uma vez mais e com mais intensidade à temática da nossa mortalidade.

Simone de Beauvoir, J. R. R. Tolkien e George R. R. Martin também pensaram sobre o tema. Mas por que, dentre tantos pensadores, fui escolher tratar justamente desses três? Por incrível que pareça, estes três autores usaram a frase “Todos os homens devem morrer” como algo fundamental em suas obras, porém com sentidos opostos. É isso que vou explorar nesse texto. Tudo teve início quando vi uma entrevista com Tolkien em que ele lê a seguinte passagem de uma obra de Simone de Beauvoir:

Não algo como uma morte natural: nada do que acontece para um homem é jamais natural, uma vez que sua presença coloca o mundo em questionamento. Todos os homens devem morrer: mas para cada homem  sua morte é um acidente e, mesmo que ele saiba e consinta com isso, é uma violação injustificável[1]

Uma vez que a frase em destaque na citação acima é comum aos três autores, é pertinente apresentar o que cada um desses autores pensa sobre a morte. Comecemos por Beauvoir.

A visão de mortalidade de Beauvoir

Simone de Beauvoir foi uma escritora e feminista francesa, nascida em Paris em 1908, crítica da sociedade burguesa, da qual ela própria fazia parte. Ficou famosa com seus escritos existencialistas tratando da condição da mulher. Mas, um tema que escreveu de maneira assídua, e que também foi tratado por outros existencialistas, foi o da mortalidade. Para Beauvoir a morte era intolerável, uma intrusa hostil. A frase “todos os homens devem morrer” são as últimas palavras na obra “Uma morte muito suave”, de 1964, em que ela conta os dramáticos anos finais de sua mãe.[2] Note-se que a obra é posterior à elaboração do legendarium, de Tolkien, mas mesmo assim, este autor achou que a frase resumia bem o que ele queria dizer.

Para a maioria dos existencialistas contemporâneos, o problema da morte é uma escolha entre consolações de nossa finitude e demonstrações de nossa eternidade. Para autores como Beauvoir, Sartre e Heidegger, a morte de Deus reproblematiza a morte. Em uma sociedade secular, a morte deve ser encarada sob a ótica do niilismo, uma vez que a morte é algo final.

Para Heidegger, que muito influenciou Beauvoir (1889-1976), o Dasein, isto é, o indivíduo humano autoconsciente, encontra sua autenticidade ao afirmar sua mortalidade e limitação. É a aceitação da finitude. Outros existencialistas como Sartre, Jung, Camus e Beauvoir construíram suas análises a partir das noções de Heidegger na obra “Ser e Tempo”:

Construíram com base no conceito de alienação de Nietzsche, desespero com a morte de Deus e atração pelo niilismo, e lutando com as revelações da capacidade distintamente humana para o genocídio revelada durante o Holocausto e a era do armamento nuclear, os existencialistas têm buscado maneiras de afirmar contra todas as probabilidades o significado da existência humana individual. [3]

Simone de Beauvoir (1908-1986)

Assim, longe de querer buscar segurança na noção de imortalidade, os existencialistas recomendavam uma resposta rebelde à injustiça cósmica de que os seres humanos morrem. Nas diversas obras de Beauvoir, a busca por uma resposta para a morte é uma constante.[4] Entretanto, sua resposta é somente uma rebeldia incontida que não trouxe nenhum consolo real, nem para a autora, e muito menos para seus leitores. Porque, se não há nada após a morte, o desespero existencialista só se agrava.

A visão de mortalidade de George R. R. Martin

Mais recentemente, a famosa frase de Beauvoir foi trazida à cena na cultura popular pelo escritor estadunidense George Martin, que começou a escrever “Crônicas de gelo e fogo” em 1991, tornando-se sua obra mais famosa, ainda que não finalizada até agora.

George R. R. Martin

“Todos os homens devem morrer” aparece diversas vezes ao longo da série de livros na linguagem do alto valiriano, uma linguagem mítica, como “Valar Morghulis”. Martin é um grande fã da obra de Tolkien, mas sua fantasia um tanto que se afasta do escritor inglês, principalmente pela sua moral (ou falta dela). A morte, muitas vezes banal, ronda o desenvolvimento da série, e diversas vezes somos apresentados a cenas brutais. Ninguém está salvo nesse universo, e características como honra são para os inocentes, que logo sofrem as consequências de sua falta de sagacidade. É um universo de perversões morais e negação de tudo o que a própria obra tolkieniana traz. É uma obra niilista e materialista, que se encaixa perfeitamente com a visão existencialista de Beauvoir. Como uma personagem na série da televisão (1ª temporada, 6º episódio) diz: “Há somente um deus verdadeiro, e seu nome é morte”. Se a morte é tudo o que existe, não há nada além. Assim, deve-se viver e aproveitar o máximo possível a existência aqui e agora. Isso é puro niilismo.

A morte nas “Crônicas de Gelo e fogo” não é algo que inspira uma vida boa, significativa e virtuosa, mas, sim, que instiga à maldade, à ausência de sentido e ações viciosas. É o oposto dos livros de cavalaria e do que vemos na obra de Tolkien, por exemplo. No universo de Martin, o transcendental é trocado pelo imanente, pela vida aqui e agora. Interessante que na finalização da série para a televisão, talvez por insatisfação dos fãs para onde a história estava indo, ocorreram várias mudanças de tom e certos valores foram reafirmados, tais como amizade e virtude. Assim, por enquanto, como um projeto de fantasia pós-moderna, “Guerra dos Tronos” falhou.

A visão de mortalidade de J. R. R. Tolkien

Agora voltemos para onde este texto começou, Tolkien e a citação da frase de Beauvoir, “todos os homens devem morrer”[5].  Como é do conhecimento de todos, Tolkien é um escritor católico inglês que escreveu “O Senhor dos Anéis”, além de outras obras que compõem o seu universo, seu legendarium. Ele foi mais ou menos contemporâneo de Beauvoir, tendo nascido em 1892, sendo dezesseis anos mais velho que a escritora.

É importante perceber também os comentários de Tolkien à passagem, antes que ele começasse a leitura na entrevista: “Histórias humanas são praticamente sempre sobre uma coisa, realmente, não? Morte. A inevitabilidade da morte”. Após a leitura da citação, ele diz que, mesmo que você não concorde com essas palavras, elas são a chave fundante para “O Senhor dos Anéis”. Não que a filosofia de Beauvoir tenha influenciado Tolkien na criação de seu universo (até porque a obra da autora é posterior), mas sim que essa frase faz sentido e encontra eco em tudo o que o escritor inglês compôs. A preocupação com a morte é algo perceptível e bem presente no legendarium e o autor chega a mencionar que este é um dos três principais temas tratados em sua obra (os outros dois sendo a queda e a mortalidade).[6]

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Apesar de a frase de Beauvoir ser comum aos três autores, em Tolkien ela assume outro teor. Para Tolkien, como cristão, a sensação de mortalidade faz com que o ser humano tenha um anseio por algo transcendental que não consegue obter aqui nesta terra. Como diz seu amigo C. S. Lewis: “Ao descobrir em mim um desejo que nenhuma experiência desse mundo poderia satisfazer, a explicação mais provável é que eu tenha sido feito para outro mundo”.[7]  É exatamente o que Tolkien diz em uma carta quando escreve que “esse desejo está unido a um amor ardente pelo mundo primário real”. É algo também que James K. A. Smith trata de maneira belíssima em “Desejando o Reino”.

Assim, o ser humano, em seu desejo por tentar imanentizar, ou materializar, o desejo pelo céu, tem duas opções: ou se render ao absurdo da morte, ou buscar superar a sua mortalidade, através de esforços materiais. Primeiro há a posição francesa existencialista de negação, em segundo, e que surge contemporaneamente à Tolkien e Beauvoir, a tendência de procurar transcender suas limitações físicas, corpóreas, basicamente, humanas, através da ciência e da tecnologia. Tolkien foi crítico das duas formas de pensamento. Em sua obra, as mortes são doloridas, não naturais, mas ainda assim com significado. Os valores de virtude, honra, sacrifício e verdade são centrais na Terra Média.

J. R. R. Tolkien (1892-1973)

É sintomático até comparar o final de “O Senhor dos Anéis” e da série televisiva de “Guerra dos Tronos”. Enquanto que naquela, Frodo retorna para casa após ter destruído o Um anel e, mesmo após muita dificuldade, luta pela reconstrução de sua terra, trazendo completa paz, em “Guerra dos Tronos”, uma rainha Daenerys enlouquecida mata pessoas inocentes e soldados que já haviam se rendido[8]. Há uma completa falta de valores e até mesmo o mais niilista telespectador considera um final amargo.

Apesar de sofrermos face à morte, o cristão tem a percepção da redenção porque a morte já foi vencida pela Ressurreição de Cristo. Como diz Tim Keller em “Nascimento, casamento e morte: como encontrar Deus nos eventos mais significativos da vida”:

“Em vez de viver com medo da morte, devemos considerá-la uma sacudida espiritual para nos despertar da falsa convicção de que viveremos para sempre. Em um funeral, especialmente de um amigo ou de um ente querido, ouça Deus falar com você, dizer-lhe que tudo na vida é temporário, exceto o amor dele. Essa é a realidade. Tudo nesta vida será tomado de nós, exceto uma coisa: o amor de Deus, que pode nos acompanhar na morte, nos fazer atravessá-la e nos levar para os braços dele. Essa é a única coisa impossível de perder. Sem o amor de Deus para nos acolher, sempre nos sentiremos radicalmente inseguros, e devemos nos sentir dessa forma”.[9]

O cristão, assim como Tolkien, sabe que “todos os homens devem morrer”, mas também sabe que ela é algo “não natural”, no sentido de que a morte foi fruto do pecado. A nova criação irá redimir isso. O antigo mote medieval “memento mori”, “lembre-se que vai morrer”, era trocado entre monges para sinalizar que tudo deve ganhar sentido face à fragilidade da vida humana; devemos nos esforçar para viver uma vida que traga verdadeiro florescimento humano. Uma vida que vale a pena ser vivida é conduzida na presença de Deus, “Coram Deo”. Tudo isso é o oposto do jargão niilista, que Beauvoir e Martin concordariam, de “Carpem diem”. A experiência cristã traz no seu bojo a reflexão existencialista da mortalidade, mas nunca em caracteres niilistas e imanentes. A esperança cristã é saber que mesmo a morte aparentemente mais insignificante possui valor infinito face a um Deus que encarnou, chorou a morte de um amigo e ressuscitou. Esse é o verdadeiro sentido do sofrimento humano.

______________________________

[1] Originalmente: “There is no such thing as a natural death: nothing that happens to a man is ever natural, since his presence calls the world into question. All men must die: but for every man his death is an accident and, even if he knows it and consents to it, an unjustifiable violation.”. (veja a entrevista aqui: https://m.youtube.com/watch?v=Ca5TUYB1nlw; o contexto da citação ocorre a partir do minuto 8’04’’.)

[2] Veja mais sobre Beauvoir e outros existencialistas na ótima obra “No café existencialista”, de Sarah Bakewell. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.

[3] Death: III. Western Philosophical Thought. Encyclopedia of Bioethics. Encyclopedia.com. 11 Aug. 2020 <https://www.encyclopedia.com>.

[4] CARD, Claudia. The Cambridge companion to Simone de Beauvoir. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

[5] Parte da entrevista de Tolkien com a citação é audível no final da música “Sand e Mercury”, da banda The Gathering: https://www.youtube.com/watch?v=3BE-0NTdL8M&ab_channel=FernandoRoche

[6] TOLKIEN, J. R. R. Silmarillion. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2019, p. 20.

[7] LEWIS, Cristianismo puro e simples. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017, p. 183

[8] https://www.refinery29.com/en-us/2019/05/233151/george-r-r-martin-game-of-thrones-finale-lord-of-the-rings-tolkien).

[9] KELLER, Timothy. Nascimento, casamento e morte: encontrando Deus nos eventos mais significativos da vida. São Paulo: Vida Nova, 2020, p. 173-174.

Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)".
Esta obra dedica-se a esses três momentos-chave da vida em três seções bem destacadas e de fácil consulta. Na seção sobre o "Nascimento", Timothy Keller nos ajuda a compreender o nascimento físico e espiritual e como o batismo conecta essas duas experiências. Na seção sobre o "Casamento", Keller e a esposa, Kathy, mostram — à luz da Bíblia e com a experiência de 45 anos de matrimônio — como iniciar e nutrir um casamento. E, por fim, na seção sobre a "Morte", Keller trata de um dos assuntos mais negligenciados em nossa cultura, mostrando como a Palavra de Deus oferece alternativa e esperança para o desespero e a negação causados pela morte.

Nascimento, casamento e morte proporciona orientação, consolo e sabedoria, e nos aponta o caminho para encontrar Deus e conhecê-lo ao longo de toda a vida.

Publicado por Vida Nova.

2 Comments

  1. Pedro H. Lima disse:

    Realmente interessante Tolkien fazer essa citação! Textos como este, comparando cosmovisões, são sempre enriquecedores.
    Como diz Salomão, há mais sabedoria no luto que no riso.

  2. Eliel Diorgenes Amin disse:

    Muito boa análise, sintética, pertinente sempre, pois a morte é a presença constante em todo tempo, ainda que silenciosa, escondida atrás de uma sombra, de um farol, de um exame a ser revelado, de um telefonema… a morte humana é uma cura para a terra, 120 anos é um bom tempo “insuficiente”, mais que isso a tortura sobre a terra seria demasiada em escala para esta suporta-la…

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