“Vós sois o sal da terra”: as características do discípulo de Cristo | Luiz Adriano Borges

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Em certo momento, Jesus, falando para uma multidão no que ficou conhecido como o sermão do monte, afirma:

Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens. (Mateus 5:13)

O sal é uma metáfora com múltiplos significados. Talvez a maioria de nós que reside em um mundo fortemente urbano não compreende as implicações do que está sendo dito aqui. Temos um entendimento superficial ou ao menos não apreciamos profundamente o que nos está sendo dito. Então, analisar a metáfora nos ajuda a entender plenamente o que Jesus está nos comissionando. No mundo antigo o sal possuía (e ainda possui) quatro funções principais: necessidade básica humana, tempero, preservação de comida e antisséptico.

Como necessidade básica humana o sal, ou mais especificamente o componente cloreto, é essencial para a digestão e respiração. Sem o sódio, que o corpo não pode produzir, o corpo pode ser incapaz de transportar nutrientes ou o oxigênio, transmitir impulsos nervosos, ou movimentar músculos, incluindo o coração. A carência de sal pode gerar dores de cabeça, enjoos, além de várias doenças. Cientistas modernos argumentam que um adulto deve ingerir cerca de 7 quilos de sal por ano.[1]

Todos sabemos que o sal é componente fundamental em uma refeição. Mas ele em excesso também acaba estragando o sabor. A temperança, o equilíbrio é fundamental. Sabemos que o sal está presente em uma comida, mesmo não sendo visível.

C. S. Lewis, a certa altura do “Cristianismo Puro e Simples”, fala sobre o sal (p. 283). Alguém que hipoteticamente experimenta sal pela primeira vez pode pensar que em toda comida que o sal tocar terá o gosto característico do sal. Mas não é assim, o sal realça o sabor dos alimentos. Quando Jesus diz para sermos o sal do mundo, ele não quis dizer que tudo devia ter uma cara “Cristã”, uma cara do que nós consideramos Cristão, mas sim, que nossa ação no mundo deve realçar a verdadeira característica das coisas do mundo. Penso que é isso que significa “redimir”.

Ser discípulo de Jesus é ser sal no mundo. Na antiguidade, o sal era uma especiaria com certo valor econômico, e “comer sal com alguém” era o significado de ter comunhão e compartilhar hospitalidade.

O sal também era usado para preservação – a comida não dura para sempre; ela se deteriora e apodrece. Num mundo pré-industrial sem geladeiras, o sal era uma maneira de desacelerar os efeitos corrosivos do tempo. Era usado em carnes e peixes para consumo futuro e para transportá-los em longas distâncias. No sul do Brasil, nos séculos passados eram comuns as charqueadas, fazendas que cortavam e salgavam a carne para serem vendidas em regiões distantes. O mundo também decai (a despeito de visões utópicas de aperfeiçoamento da natureza humana e progresso), então não é responsabilidade do cristão salvar ESTE mundo, mas servir como uma presença fiel e exercer um testemunho da graça de Deus, sabendo que nem tudo ou todos serão salvos.

Por último, sua característica como antisséptico. A penicilina só foi descoberta em 1928 pelo inglês Alexander Fleming. Até então, o sal era utilizado como antisséptico que ajudava a evitar a proliferação de bactérias. Os judeus da época de Jesus tinham em alta estima o mar morto por ele possuir grandes concentrações de sal. Sua composição mineral tornava bastante efetivo o tratamento de doenças de pele crônicas. Quando Jesus envia os doze deu a seguinte instrução: “e, indo, pregai, dizendo: É chegado o Reino dos céus. Curai os enfermos, limpai os leprosos, ressuscitai os mortos, expulsai os demônios; de graça recebestes, de graça dai”. (Mt 10:7-8). A cura das pessoas também é uma tarefa dos discípulos, sabendo que a cura completa só virá na Redenção de todas as coisas (Ap 22.2).

Assim, quais as implicações aqui? Os discípulos são fundamentais para este mundo, sem o qual ele não funcionaria plenamente. O discípulo de Jesus deve preservar a Palavra Bíblica, vivendo integralmente o Evangelho, apontando os princípios de criação queda e redenção em todas as áreas humanas. Deve buscar fazer a diferença na sociedade, na cultura, no trabalho, enfim, em todos os aspectos da vida. Não há um só centímetro quadrado em que o cristão não deva exercer influência.

Muitas vezes vemos exagero; da mesma forma que a falta de sal traz uma comida insossa, sem graça, assim também seu excesso pode trazer problemas. Como um cristão, enquanto sal, pode trazer malefícios? Quando se arma de um discurso triunfalista, de que todos devem aceitar a Verdade através da força, de imposição de uma teocracia. Ao contrário, o cristão deve sim se envolver na política e na verdade em todos os campos. Mas deve fazer isso com sabedoria.

A passagem de Mateus 5: 13: “se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor?” no original pode ser traduzido literalmente da seguinte forma: “como a humanidade poderá ficar salgada?” Como poderemos temperar o mundo com o sal cristão? Essa deveria ser uma das principais reflexões pelos cristãos de hoje.

Timothy Keller procura trazer essa reflexão em muitos de seus escritos. Na obra fundamental “Deus na era secular”, ele aborda o que o cristianismo tem a ofertar a uma sociedade secular e pós-cristã. Ao longo dos doze capítulos dessa obra, Keller aponta como o cristianismo pode conferir sentido ao sofrimento, trazer um contentamento que não é baseado nas circunstâncias, uma liberdade que não fere, mas que traz amor, uma identidade que não esmaga o indivíduo e nem exclui outros, traz uma bússola moral que não converte o cristão em opressor e uma esperança que torna capaz de enfrentar qualquer coisa, até a morte. (Outro livro do autor, “A fé na era do ceticismo” também é um excelente ponto de partida para atuação fiel no mundo, principalmente no debate com aqueles que acham que o cristianismo é irracional ou um grande mal; para universitários ou quem está no meio acadêmico, é uma obra básica).

Leia também  Uma catequese para uma era secular | Timothy Keller e James K. A. Smith

Dietrich Bonhoeffer, no contexto dos extremos do regime nazista, escreveu a obra “Discipulado”. Em certa parte em que reflete sobre o sermão do monte, ele comenta que:

os discípulos não pensam somente no reino dos céus, mas são constantemente lembrados de sua tarefa no mundo. (…). Jesus, ao chamar seus discípulos em vez de designar a si mesmo sal da terra, transfere a eles seu poder de ação. Ele os inclui em sua tarefa no mundo (…) A terra só poderá ser conservada pelo sal se o sal nunca deixar de ser sal e preservar sua força purificadora e temperante.”  (p. 87).

Ainda como Bonhoeffer afirmou, Jesus não disse “vós deveis ser o sal da terra”, mas sim “vós sois o sal da terra”. Não há opção para o cristão ficar de braços cruzados vendo a banda passar. Temos que nos inserir no mundo e temperá-lo. Com o cuidado de que há sempre a possibilidade de o sal tornar-se insípido, de nos misturarmos ao mundo e nos tornarmos confortáveis com os prazeres dele.

Como afirma o filósofo canadense Charles Taylor, o cristianismo difere do budismo e de posições estoicas porque Deus deseja o florescimento humano. O chamado cristão para renúncia desse mundo não é uma negação do valor do florescimento;

é um chamado para centrar tudo em Deus, mesmo que seja às custas de renunciar a esse bem insubstituível, e o fruto dessa renúncia é que ela se torna num nível a fonte de florescimento para outros e, em outro, uma colaboração com o restabelecimento de um florescimento mais pleno por Deus. É um modo de curar ferimentos e ‘concertar o mundo’ (tomo emprestado aqui a frase hebraica tikkun olam).

E Charles Taylor continua:

Isso significa que florescimento e renúncia não podem simplesmente desintegrar-se para formar um único objetivo, lançando, por assim dizer, para fora do barco os bens renunciados como se fossem um contrapeso desnecessário na jornada da vida, ao modo do estoicismo. Uma tensão fundamental persiste no cristianismo. O florescimento é bom, apesar de sua busca não constituir nosso objetivo último. Mas, mesmo onde renunciamos a ela, nós a reafirmamos, pois seguimos a vontade de Deus ao sermos um canal de florescimento para outros e, finalmente, para todos (Uma era secular, p. 32).

A implicação da ação de verdadeiros discípulos de Cristo é uma sociedade saudável, que preserva a verdade da Palavra, que é temperada com princípios bíblicos, que traz cura física e espiritual e que faz florescer a vida humana, tendo consciência que somente Cristo, na completa redenção, tornará todas as coisas novas de novo. Assim, não nos tornemos discípulos insípidos, temperemos esse mundo com os ensinamentos do mestre!

_________________

[1] KURLANSKY, Mark. Salt: a world history. Ed. Walker & Company, 2002, p. 15.

Referências bibliográficas:

Charles Taylor. Uma era secular. São Leopoldo: Editora Unisinos,

C. S. Lewis. Cristianismo puro e simples. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.

Dietrich Bonhoeffer. Discipulado. São Paulo: Mundo Cristão, 2016.

Mark Kurlansky. Salt: a world history. Ed. Walker & Company, 2002.

Timothy Keller. A fé na era do ceticismo. São Paulo: Vida Nova, 2018.

Timothy Keller. Deus na era secular. São Paulo: Vida Nova, 2017

Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)".
Vivemos em uma época que valoriza a razão empírica, a evolução do progresso humano e o direito de todos escolherem sua própria expressão de significado, propósito e alegria. Para muitos hoje, a ideia de Deus ou de um poder superior não faz mais nenhum sentido. Para muitos, a fé e a religião já não podem oferecer nada de valor. Como seres humanos, não podemos viver sem satisfação, sentido, liberdade, identidade, justiça e esperança.

Por isso, neste novo livro, Timothy Keller, pastor e autor best-seller do New York Times, convida o cético e o estudante de filosofia e de religião a considerar que o cristianismo ainda é a resposta para todas essas necessidades. Escrito para crentes e para quem ainda não vê razões para crer, Deus na era secular lança luz sobre o profundo valor e importância do cristianismo em nossas vidas.

Publicado por Vida Nova.

1 Comments

  1. Alberto Soma Miguel disse:

    Bons livros só não sei Como conseguir algumas obras.

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