Ele Está de Volta – A Lei de Godwin | Silas Chosen

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*Spoilers de Ele Está de Volta*

Em 1990, um advogado americano chamado Mike Godwin determinou que “À medida que cresce uma discussão, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou o nazismo aproxima-se a 1 (100%)”. Isso quer dizer que, segundo a então cunhada “Lei de Godwin”, se uma discussão na internet demorar tempo o suficiente, não importando seu conteúdo ou escopo, alguém ou alguma coisa vai ser comparado a Hitler, cedo ou tarde. Normalmente a lei serve como uma classificação argumentativa que significa a falta de argumentos. Se você foi longe o bastante para comparar algo que você está atacando ao nazismo, você provavelmente está exagerando. Ou seus argumentos acabaram.

O nazismo é, como já falamos em outro artigo, o vilão quintessencial. É uma ideologia tão perfeitamente odiosa que é quase irresistível colocá-la como elemento de vilania numa história. O totalitarismo, o ódio racial, a megalomania. Hitler foi uma das personalidades mais importantes e mais influentes do século XX, e a cultura mundial nunca vai se recuperar dos efeitos de seu governo. A cultura popular, é claro, vai reler tudo sobre o líder do nazismo, esmiuçar tudo o que é possível, passando pela humanização, pela troca de pontos de vista e, é claro, a sátira.

Depois de Mel Brooks, comediante judeu que ainda nos anos 60 lançou Os Produtores (musical que contava com a canção estilo Broadway “Primavera para Hitler”), um filme foi lançado em 2015 por outro pessoal que também tem um pouco de autoridade para falar do líder do terceiro reich, num filme que mistura sátira com comentário político para criar um tipo novo de pesadelo velho.

O filme é Er Ist Wieder Da, em alemão, é Ele Está De Volta, dirigido por David Wnendt, baseado no best-seller de Timur Vermes. A premissa é absurda e não perde tempo nenhum tentando explicar-se: na Berlin dos dias de hoje, um homem acorda atordoado no meio de uma rua. É Adolf Hitler em pessoa (interpretado por Oliver Masucci), e ele não lembra de nada do que teria acontecido depois dos últimos dias de abril de 1945. Levanta e olha em volta, e o que enxerga deixa-o perplexo e enfurecido. A Alemanha está transformada e está muito longe do que ele queria que fosse. Ao mesmo tempo, o produtor de TV Fabian Sawatzki (papel de Fabian Busch), está desesperado à procura de uma ideia nova para um programa. Ao encontrar com o que parece ser um ator interpretando Hitler 24 horas por dia, sua busca acaba. Cria um reality show cômico que segue um “Hitler” nos dias de hoje. A ideia é aprovada por seus superiores (desde que não se faça nenhuma “piada” com judeus), e lá vão eles, Alemanha afora, colocando gente real para conversar com o Hitler. O ex-chanceler e atual “ator de rua” percebe que o povo alemão o vê como um palhaço. E, entendendo perfeitamente o papel, dá corda para uma armadilha de carisma e ideias políticas mais extremas. Sua popularidade aumenta e seus ideais são bem recebidos, aos poucos, por muita gente.

A verdadeira intenção do filme é desenrolada aos poucos. No início, o tom e a linguagem usados lembram os episódios mais cafonas de Casseta e Planeta. Gags de tropeço e piadas verbais simples criam uma comédia até “leve demais” para o tema. Várias das cenas em que Oliver Masucci, dentro do personagem, conversa com pessoas normais, são feitas sem roteiro, num improviso estilo Borat, e criam uma comédia absurdista. Afinal, pessoas normais estão brincando com o “próprio Hitler” e algumas delas, que demonstram um certo positivismo com a ideia, parecem de fato absurdas.

Mas aí o Hitler começa a botar um plano em ação. E o tom de comédia vai ficando mais sombrio. Fabian começa a sair com uma assistente de produção, interpretada por Franziska Wulf, e quando ele e seu “parceiro ator” visitam a casa dela, dão de cara com sua avó. Uma avó judia, que ainda lembra daquela voz, daqueles trejeitos, daquelas ideias e daquelas palavras. Ela aponta e diz “eu ainda lembro de você. A mim você não engana”.

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Fabian descobre que o Hitler de verdade caiu num daqueles inexplicáveis “buracos no espaço tempo” e que o tempo todo está ajudando na popularização do pior monstro da história recente. Mas é tarde demais. Hitler manipula a mídia, prende Fabian num manicômio, e parte, em meio às sombras, para um banho de popularidade, e quem sabe mais o quê.

É inacreditável que este filme tenha sido lançado em 2015 e que o livro que o originou tenha sido publicado em 2012, quase como uma pequena profecia. Ou assim gostaríamos que fosse, que a situação atual do mundo tivesse realmente nos pego de surpresa. O diretor Alfonso Cuarón foi entrevistado recentemente por causa da visão pessimista de futuro que seu filme, o essencial Filhos da Esperança traz. Um filme lançado em 2006 que previa, num futuro próximo, crises internacionais de refugiados, guerras, líderes extremistas, apocalipses climáticos e uma falta de esperança generalizada. Quando perguntado como ele conseguiu profetizar muito do que acontece hoje, Cuarón é curto e grosso: “os sinais estavam todos lá, era só saber procurar”.

A linguagem de Ele Está de Volta, intencionalmente ou não, cria um paralelo muito angustiante com o que temos hoje. No começo ele é quase uma brincadeira de criança, uma piada de mal gosto. E gradualmente o tom cai. A cena final, com Hitler no carro, destoa tanto do começo do filme que não parece ser do mesmo gênero. E não é.

Uma pequena revolução está acontecendo à nossa volta. E os pontos em comum de várias versões dessa revolução são os do filme: no começo é uma piada. No final é um terror. Aos poucos, uma personalidade forte, com palavras ensaiadas e pontos de vista contundentes envenena as instituições. Quem acorda, quando acorda, é taxado de louco, porque a nova norma ignora fatos e ignora ética. 2+2 = 5. Isso aconteceu na Europa, aconteceu nos Estados Unidos, e é tão insano mesmo achar que pode acontecer no Brasil? Por falar em loucura, em piada, em absurdo, por que não falar do mais inconsistente: grande parte do protestantismo ocidental está abraçando esse avanço, muitas vezes como se fosse enviado do próprio Deus. Estamos ignorando, novamente, as pessoas que apontam e falam “reconheço essa voz. Reconheço esse discurso. Reconheço essa cruz torta”. E, já que muitas vezes os poderosos verborrágicos defendem o que parece ser um evangelho, estamos aplaudindo e apoiando.

Dizer que Hitler está entre nós é um exagero? Quem responde? O poder é uma coroa que brilha demais. O ato de tomar essa coroa queima no coração de muita gente. Essas pessoas estão aí gritando e sendo ouvidas, ganhando retweets e likes despreocupados. O fator piada, para muitos, inunda o pensamento. E os alertas do mundo das artes se afogam.

O temor é que, logo mais, a lei de Godwin entre em vigor.

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

1 Comments

  1. Mateus Santiago Lage disse:

    Não sei se estão falando sobre a esquerda ou a direita (se é que estão falando disso).
    Mundialmente, Donald Trump vem sendo comparado ao Hitler faz uns meses. Da mesma forma, no Brasil, o Bolsonaro. E muitos cristãos os tem apoiado.
    Por outro lado, como diz o texto, o protestantismo vem abraçando a “esquerda”.
    Como esse assunto (direita X esquerda) é muito popular na atualidade, não consegui entender o texto por causa dessa ambiguidade citada. Poderiam me explicar, por favor?

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