Por uma outra visão da história: As ideias de Niall Ferguson em “Civilização” | Luiz Adriano Borges

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Galileu e Vincenzo Viviani (1892), Tito Lessi

A verdade é que conhecemos pouco de história. Mesmo quando nos debruçamos sobre livros buscando compreender o passado, em muitos momentos fazemos leituras insuficientes, quando não encontramos somente um lado da questão. O passado não muda, mas sua interpretação sim. E mesmo nos cursos universitários de humanidades encontramos ênfase quase que exclusiva na visão marxista da história. Falo isso como alguém que passou pela universidade pública desde a graduação até o doutorado, e agora como professor. A visão enfatizada é a do materialismo histórico. Estudamos tudo pelo viés da luta de classes e de uma crítica rígida à civilização ocidental, ao cristianismo e ao capitalismo e à uma relativização dos pontos positivos desses elementos. Isso ao mesmo tempo em que se faz um elogio do relativismo cultural e de regimes de influência socialista. O equilíbrio crítico é ausente.

Logicamente que a civilização ocidental, o cristianismo e o capitalismo possuem pontos negativos e críticas devem ser feitas, mas ouso dizer que eles foram mais salutares para todo o mundo do que o contrário.

Assim, acho que se faz necessário, e é saudável para o debate acadêmico, análises do ponto de vista conservador e cristão, desde que sejam feitas dentro de rígidos padrões acadêmicos, bem documentados, pesquisados e argumentados. Quem se identifica como um crítico da relativização dos valores, que acha que o livre-mercado (ainda que com ajustes necessários), o respeito à propriedade privada e certos valores da civilização ocidental possam beneficiar toda a humanidade, precisa arregaçar as mangas e começar o trabalho pesado de estudar e escrever acerca disso. Se optarmos por nos escondermos em nossos casulos eclesiásticos, ninguém fará o trabalho duro de convencimento de que certos valores fizeram a diferença para o ocidente.

Há várias obras que nos ajudam nessa caminhada e posso citar “Pobreza e riqueza das nações”, de David Landes, “A pobreza das nações”, de Wayne Grudem e Barry Asmus, e “Civilização”, de Niall Ferguson, três obras que podem ser lidas como complementares entre si.

Na presente postagem, comentarei brevemente sobre esta última obra.

Niall Ferguson é um historiador britânico que deu aulas em Oxford, Harvard e em Stanford focando seus estudos em história internacional. “Civilização” foi publicado em 2011 pretendendo responder à questão: Por que, por volta do início de 1500, algumas pequenas organizações políticas no extremo ocidental do continente eurasiático passaram a dominar o resto do mundo? Para Ferguson a resposta se encontra nas instituições. Assim, o autor apresenta “os cinco incríveis aplicativos” que permitiram o domínio do Ocidente sobre o Oriente e que ele explorará em todo o livro:

  1. Competição
  2. A ciência
  3. Os direitos de propriedade
  4. A medicina
  5. A sociedade do consumo
  6. A ética do trabalho

O que se percebe por essa lista de “aplicativos” é que a cultura importa, até mais do que puramente questões materiais. É esse fator que está ausente em análises marxistas como a de Jared Diamond em “Armas, germes e aço”, apesar de ser uma obra que vale a pena a leitura. Mas obras como a de Landes, de Grudem e Asmus e a de Ferguson que temos aqui em tela procuram perceber que a cultura é importante no desenvolvimento de uma nação. Como Landes aponta:

“Não é a falta de dinheiro que impede o desenvolvimento. O maior impedimento é o despreparo social, cultural e tecnológico – a falta de conhecimentos e de competência técnica. Em outras palavras, a falta de talento e de capacidade para usar o dinheiro.” (A riqueza e a pobreza das nações, p. 302).

Portugal e Espanha foram sociedades riquíssimas no século XVII, graças ao ouro e prata da América do Sul, mas logo foram ultrapassadas por Inglaterra e Holanda devido ao seu desenvolvimento prematuro dos cincos aplicativos elencados por Ferguson. Voltemos nossa atenção para o que Ferguson quer dizer com cada aplicativo e como eles determinaram o sucesso do Ocidente.

Sobre competição o autor aponta a extrema divisão política interna na Europa, o que levou a situações de guerra constante e que por fim culminou em avanços tecnológicos. E avanços não somente militares, mas também civis. A competição acirrada levava estados a se esforçarem para estar à frente no desenvolvimento tecnológico de seus vizinhos, pois do contrário eram deixados para trás. De maneira oposta, na China, o monopólio político retardava o desenvolvimento.

A ciência também foi fundamental para o avanço do Ocidente. Incrivelmente, apesar de se dever muito ao mundo muçulmano medieval, a ciência se desenvolveu plenamente no Ocidente, enquanto que entre os islâmicos ocorreu um retrocesso. A Revolução Científica teve início na Inglaterra, local onde as instituições científicas e a impressão de livros era abundante. Muitos autores criticam a visão eurocentrista ao focar a Europa como o berço da Revolução Científica, mas estes autores por sua vez acabam relativizando o sucesso europeu em criar um ambiente propício à pesquisa e a disseminação de conhecimento. É o caso do antropólogo Jack Goody na obra “Renascimentos” que, ao buscar corretamente as bases do islã como “mestre” da Europa, acaba desmerecendo totalmente a inovação europeia. Sim, pois é no Ocidente que a alquimia se torna química e que a astrologia se converte em astronomia, para ficar em dois exemplos. Muita coisa foi emprestada do islã e da China, mas foi no Ocidente que uma cultura de “invenção da invenção” floresce. Moinhos, prensa mecânica, papel, pólvora, já eram invenções conhecidas há muito tempo fora da Europa, mas foi ali que estas tecnologias evoluíram e foram plenamente utilizadas.

O direito de propriedade também é um dos aplicativos que Ferguson considera como essenciais (assim como outros autores como Grudem e Asmus e Landes). Por quê? Simplesmente porque a garantia de que você tem seus direitos assegurados lhe dá segurança para inovar e inventar. Se um invento meu pode ser tomado pelo Estado, por que criarei algo? Se não for premiado pela minha inovação, o que me levaria a criar algo tecnologicamente superior? De fato, a China vivia um ambiente tecnologicamente abortivo, com um governo autoritário. Isso fez toda a diferença para o Ocidente. Um inventor podia enriquecer da noite para o dia graças ao aperfeiçoamento de uma máquina. Foi isso que aconteceu na Revolução Industrial, cujos melhoramentos tecnológicos trouxeram uma explosão de produtividade e colocou o Reino Unido na frente de todas as outras nações por várias décadas. Somente quando outros países começaram a emular não apenas os métodos produtivos, mas a cultura inglesa, é que começaram a reduzir a distância.

Leia também  A iPhonização da nossa cosmovisão e de nossas liturgias: a visão de tecnologia de James K. A. Smith | Luiz Adriano Borges

Sobre a medicina, o quarto aplicativo, os efeitos estão muito presentes no nosso cotidiano. Os países mais desenvolvidos têm mais saúde e vivem mais, isso desde a Revolução Científica, que levou os países europeus a investirem pesado também em medicina, principalmente no final do século XIX. Na Inglaterra, a expectativa de vida passou de pouco mais de 30 anos em 1725 para 75 anos em 1990. E a longevidade não para de aumentar.

Sobre consumo, há muito a se criticar acerca do consumismo desenfreado e os problemas ambientais gerados por essa cultura, mas o fato é que o mundo se tornou melhor graças a ele. Com a Revolução Industrial, cujo pilar estava fincado no consumo, tivemos acesso a roupas melhores, a produtos que nos trazem conforto e mais segurança, padronização, além de gerar riquezas para aqueles países que foram se industrializando. Até Mahatma Gandhi, um grande crítico da modernidade e do imperialismo, reconheceu que a máquina Singer foi uma das poucas coisas úteis já inventadas. Isso é exemplar em como as novas tecnologias que foram surgindo após a Revolução trouxeram estilos de vidas mais confortáveis e seguras para aqueles que aderiram.

Por último, o aplicativo do trabalho foi o que diferenciou muitos países da Europa de outros. Aqui é onde Ferguson vai usar criticamente das ideias de Max Weber, autor que analisou como uma ética protestante modificou o modo como se via o trabalho. Apesar de salientar que a tese de Weber possui alguns problemas, Ferguson argumenta que ela está certa ao indicar como o protestantismo encorajou a alfabetização e a imprensa e como esses dois elementos acabaram impulsionando o desenvolvimento econômico através da acumulação de capital humano, assim como o estudo científico. As crenças protestantes incentivaram o bom comportamento neste mundo e isso gerou culturas que viam o trabalho com bons olhos, além de terem indivíduos mais confiantes uns nos outros e fomentar a parcimônia e a honestidade, características economicamente benéficas.

Para Ferguson “as religiões importam (…). O protestantismo fez o Ocidente não só trabalhar, como também ler e economizar (…). Pensando melhor, mais que um ética do trabalho, seria mais adequado falar de um ética da educação protestante.” (p. 310).

Concluindo, é importante ressaltarmos que o Ocidente não é perfeito. Como todo cristão sabe, a falibilidade humana é uma marca que está presente em qualquer aspecto deste mundo. E Niall Ferguson está ciente disso a despeito de críticas de eurocentrismo que se fazem a ele:

“É claro que a civilização ocidental está longe de ser isenta de falhas. Perpetuou sua cota de delitos históricos, das brutalidades do imperialismo à banalidade da sociedade de consumo. Seu materialismo intenso teve todos os tipos de consequências dúbias (…). E certamente perdeu aquele ascetismo próspero que Weber considerou tão admirável na ética protestante.” (p. 375).

Apesar desses problemas inerentes, esse “pacote de aplicativos ocidentais” ainda parece oferecer às sociedades humanas as melhores instituições para desenvolvimento econômico, social e político.

O problema atual é que, em uma ânsia de extirpar tudo o que de ruim a Civilização Ocidental produziu, se acaba jogando o bebê com a água do banho e se exclui tudo em favor de movimentos decolonialistas. Por desconhecimento ou cegueira ideológica, não somos capazes de reconhecer as vantagens desses aplicativos e como eles foram fundamentais para o desenvolvimento atual.

Como cristãos, não devemos nos furtar do combate intelectual. Hoje em dia o principal campo de batalha está na mente de nossos jovens; estes definirão os caminhos de nosso país nas próximas décadas. Procuremos analisar criticamente esses aplicativos e busquemos melhorá-los e aplicá-los em nossa sociedade.

Se nos esquivarmos dessa luta, nos retirando para nossos casulos culturais, outra versão civilizacional baterá à porta, uma civilização que pode ser menos tolerante, valorativamente relativística, e tudo isso com a alcunha de um pretenso secularismo, que nem de longe é religiosamente neutro.

_______________________

Referências:

DIAMONG, Jared. Armas, germes e aço. Redord, 2017.

FERGUSON, Niall. Civilização. Planeta, 2016.

GOODY, Jack. Renascimentos. Editora Unesp, 2011.

GRUDEM, Wayne; ASMUS, Barry. A pobreza das nações. Vida Nova, 2016.

LANDES, David. A riqueza e a pobreza das nações. Elsevier, 1998.

Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)".

1 Comments

  1. CLAUDIO REGIS CUSTÓDIO disse:

    Acabei lembrando do livro “A revolta de Atlas”!!!
    Excelente artigo! Compartilhei em minhas redes sociais…

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