Cuidado pastoral como teologia pública: uma conversa com Timothy Keller

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Por que a igreja sendo igreja é uma dádiva para a sociedade.

Este artigo foi publicado em 17 de agosto de 2017 na revista “Comment”, uma publicação da CARDUS: www.cardus.ca. Texto original aqui.

A Redeemer Presbyterian Church de Manhattan pode ser famosa por seu pregador recentemente aposentado, Tim Keller, e muitos leitores conhecem esta igreja como a base dos esforços kuyperianos como o Center for Faith and Work [Centro para a Fé e Trabalho]. Em uma conversa recente, o Dr. Keller e o editor-chefe da Comment, James K. A. Smith, discutiram como o trabalho básico de cuidado pastoral e disciplina é fundamental para o testemunho da igreja em um mundo globalizado. Aqui está a primeira parte dessa conversa. O resto pode ser encontrado na próxima edição de outono de 2017 da Comment, Uma Igreja para o Mundo.

James K. A. Smith: Em nossa edição de outono de 2017, estamos considerando a igreja como um aspecto crucial daquilo que chamamos de “arquitetura social”. Para usar uma distinção útil de Abraham Kuyper, acreditamos que a igreja como “instituição” – o povo de Deus reunido em torno da Palavra e dos sacramentos – tem um papel a cumprir para o bem comum e o bem público. Ou seja, não é apenas a igreja como um “organismo” – a igreja “enviada” – que tem um papel público a desempenhar. É a igreja como instituição, e é por isso que sua saúde é de fato importante para a sociedade. O que você acha dessa formulação? Existe alguma nela coisa que te deixa apreensivo?

Tim Keller: Não há nada que me deixe apreensivo nisso. Lesslie Newbigin diz em algum lugar que há um nome para as células do corpo que só se reproduzem e não fazem nada para o resto do corpo: “câncer”. Se a igreja é um mundo alternativo, se ela deveria se parecer com o que é a vida humana sob o senhorio de Cristo, e se ela deveria ser uma contracultura, então ela deve estar repleta de pessoas alcançando e curando outras pessoas, bairros e assim por diante.

Parece-me certo que, se a igreja for igreja, isso automaticamente ajudará o mundo. Isso tem que ser assim. Mas o perigo seria dizer que o propósito da igreja seja servir o mundo. Isso é falso; seu propósito é servir ao Senhor. Mas ela servirá ao mundo se estiver servindo ao Senhor.

JS: Isso me lembra da ideia de Stanley Hauerwas sobre transformarmos a igreja em uma capelã do Estado. Você está dizendo que, se a igreja está servindo ao Senhor, e se está formando discípulos que buscam a glória de Deus, então, por causa de nossa vocação, haverá um efeito de transbordamento que deve contribuir para um bem maior.

TK: Sim. Há um lugar nas Institutas de Calvino onde ele diz: “Você pode pensar que não deve nada ao seu próximo, mas, por causa da imagem de Deus em seu próximo, você deve. Você vê Deus em seu próximo, porque seu próximo é feito à imagem de Deus.” Ele até chega ao ponto, creio eu, de dizer: “Não olhe para o seu próximo e diga: ‘O que meu próximo merece de mim?’ Diga: ‘O que Deus merece de mim?’ e, então, quando você vê a imagem de Deus nele, ali está ele”.

Ele diz isso no nível da “criação”, por assim dizer. No nível da redenção, você encontra um homem, Jesus Cristo, que morreu por você e se derramou por você quando você era um inimigo. Seu próximo provavelmente nem é seu inimigo, ele apenas não é cristão. Calvino essencialmente diz que você deve muito ao seu próximo. Você lhe deve ajuda; você deve a essa pessoa o sacrifício do serviço. Você não é neutro.

JS: Você acha que a igreja está moldando os discípulos que estão respondendo a esse chamado?

TK:   Bem, se você perguntar a um cientista social, eles dirão que, de um modo geral, as pessoas que vão à igreja tendem a ser mais caridosas, tendem a se voluntariar mais, e assim por diante. Agora, eu não quero ser muito negativo, mas acho que provavelmente precisamos descer de tais generalizações e ver o quão longe estamos daquilo que deveríamos ser. De fato, os cientistas sociais dirão que há um sentido no qual o cristianismo – e especialmente do tipo que vai à igreja – o torna uma pessoa mais pública, mais disposta a oferecer seu tempo e esse tipo de coisa. Mas eu acho que uma pergunta melhor seria: estamos moldando as pessoas com as virtudes ou o caráter necessário para alcançar e servir pessoas para além de divisões raciais, políticas ou coisas do tipo? Estamos muito longe de onde deveríamos estar.

JS: Você vê algum aspecto particular da igreja, digamos, na América do Norte hoje, que devemos tentar renovar de forma estratégica a fim de encorajá-la e capacitá-la como um organismo que se importa com o bem comum? Você vê alguma fraqueza particular, falha ou oportunidades de renovação na igreja atual?

TK: No livro Confident Pluralism [Pluralismo confiante],  John Inazu diz que não seremos capazes de andar juntos tendo visões tão profundamente diferentes das coisas. Não há dúvida de que as pessoas, hoje, têm estruturas morais radicalmente diferentes. Como é que temos uma sociedade coesa? Ele discorre sobre certas “aspirações” relacionadas a isso: tolerância, humildade, respeito, e esses tipos de coisa. Ele realmente faz um trabalho muito bom ao defini-los, eu acho; um trabalho melhor do que a maioria.

Ele diria que a paciência, por exemplo, é lembrar-se de que há um limite para o que você pode provar. Às vezes a paciência significa perceber que não posso provar para a pessoa com quem falo que ela está errada. E isso deve me tornar paciente, humilde. Mas ele tem receio de chamar isso de virtude, e você sabe por quê. É provavelmente porque a crítica de todo o seu projeto é que nada nessa cultura produz virtudes como essa. Não há lugar onde alguém esteja sistematicamente ensinando humildade, respeito, tolerância e amor por pessoas que são muito, muito diferentes.

Quando as crianças Amish foram mortas a tiros e os Amish se aproximaram e perdoaram a família do atirador e os pais do atirador, todos disseram: “Isso é incrível; é assim que devemos ser”.

JS: Seria o mesmo caso da Igreja Emmanuel, a Igreja Metodista Episcopal Africana em Charleston, certo?

TK:   Sim, sim. Mas no caso dos Amish, houve resistência. Três sociólogos que escreveram um pequeno livro chamado Amish Grace disseram que o problema é que o perdão é um ato de auto renúncia. Nossa cultura hoje não ensina nada além de autoafirmação, que você nunca deve levar desaforo para casa, que você deve sempre exigir seus direitos. Eles perguntaram: “Em uma cultura que ensina autoafirmação, poderemos perdoar e reconciliar?” A resposta é não.

A razão pela qual os Amish podiam fazê-lo, e a razão pela qual a igreja afro-americana poderia fazê-lo em Charleston, era porque eram contraculturas formativas, onde as pessoas ouvem todas as semanas sobre um homem que morreu por seus inimigos. Ou seja: você canta sobre isso, você pensa sobre isso, você ora sobre isso, assim, isso está em você. Acho que houve um tempo, e tenho idade suficiente para lembrar de uma época na qual a ideia de abnegação e renúncia era mais amplamente sustentada na cultura. A ideia de que você se sacrifica por outras pessoas, e não cria escândalos, e nem sempre se afirma, era algo mais comum, e é daí que obtemos a ideia de tolerância. Fora da igreja – e talvez das sinagogas ou outras instituições religiosas – eu não sei onde isso será produzido.

JS: Se os ideais de sacrifício e auto renúncia costumavam ser mais comuns, o quanto será que isso não acontecia por causa de mais pessoas participando dos ritos de confissão e garantia de perdão? Quantas pessoas não estavam lidando com sua própria pecaminosidade em uma base semanal? Isso é um exemplo de como uma prática de culto tangível, centrada em Deus e no evangelho, como também na prática da confissão e da palavra de misericórdia de Deus se reflete na postura que você tem no seu dia a dia.

TK:   Creio que isso é verdade, porque certamente todos os católicos fizeram assim, e a maioria dos protestantes tradicionais também. Este é o modo como Deus incute as virtudes que permitem que você perdoe. A propósito, devemos notar que hoje em dia existe uma espécie de culto evangélico que consiste em apenas muita música energética e depois um sermão. As formas normais não estão presentes – ou seja, realmente não se tem confissão ou perdão. Eu diria que o culto evangélico não-tradicional de hoje não tem essa capacidade de ensinar a autonegação.

JS: Especialmente se as igrejas forem criadas primariamente para atender ao interesse do consumidor em sua fé.

TK: Sim, basicamente você se torna um consumidor consumindo serviços espirituais.

JS: E, nessa experiência, não há nada da atitude de tirar-se do centro do mundo.

TK:   A outra coisa, é claro, é que a Ceia do Senhor sempre requer arrependimento. Deve haver arrependimento diante da mesa do Senhor. Então, certamente, por anos e anos a Eucaristia e a confissão de pecados fizeram e fazem de você o tipo de pessoa que provavelmente pode perdoar e reconciliar. Nossa cultura é fragmentada em parte porque as pessoas não estão aprendendo isso.

JS: Ou estão aprendendo, mas não estão apreendendo.

TK:   Estávamos dizendo há pouco que compreender a imagem de Deus em seu próximo e a morte de Jesus por seus inimigos deveria tornar nossos corações mais dispostos a servir e com um espírito mais público, e de fato, até certo ponto isso acontece. O culto de adoração na verdade cria agentes para uma sociedade pluralista, na qual pessoas profundamente diferentes estão unidas e em paz. Essa é uma das maiores necessidades da sociedade, e a igreja está fornecendo esse tipo de pessoa.Parte inferior do formulário

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JS: Vamos deixar de instrumentalizar isso por um segundo. Esqueça a preocupação com o bem público; confiemos que isso seja apenas uma consequência. Como pastor, e agora cada vez mais um educador teológico, onde você vê mais a necessidade de renovação e intencionalidade? Se você pudesse curar as igrejas, o que você curaria? O que você gostaria que fosse mais forte, mais profundo, mais saudável e mais funcional nas congregações locais?

TK:   Um desafio é o cuidado pastoral, principalmente por causa da transitoriedade. Existem indícios – embora seja difícil de provar – de que, digamos, trinta anos atrás, o membro típico provavelmente ia à igreja em quatro vezes a cada cinco semanas, ou cinco vezes a cada seis semanas. Hoje, o comum é mais ou menos uma vez a cada duas. As pessoas estão viajando mais; e sua atenção está dividida. Também os custos são tais que é muito caro ter uma equipe em tempo integral. Sinceramente, é sedutor hoje ter uma igreja maior e com menos pastores na qual as pessoas sejam basicamente consumidoras. Elas não estão realmente sendo observadas ou cuidadas. Existe uma triagem pastoral, ou seja, quando sua vida estiver desmoronando, as boas igrejas estarão presentes. Elas estarão no hospital, na funerária ou na sala de aconselhamento. Mas quando se trata do tipo comum de atenção e intervenção pastoral positiva e proativa, na qual você está realmente em contato com as pessoas, perguntando – Como você está? Onde você está indo? Quanto você sabe sobre o cristianismo? Onde você poderia crescer? – bem, isso simplesmente não está acontecendo.

JS: Você não acha que isso é um enfraquecimento do sacerdócio de todos os crentes? Seu ponto me faz pensar em uma frase de Klaas Schilder, um teólogo holandês do século XX que disse algo como: “Não subestime o significado do sábio presbítero local. Ele é uma força cultural.” Ao prestar atenção nas famílias e fazer visitas domiciliares, o presbítero é uma força formadora de cultura, uma vez que está formando pessoas. Eu me pergunto se o que esteja faltando não seja apenas a falta de trabalho pastoral, mas também a incapacidade de equipar os presbíteros leigos para fazer esse cuidado.

Vários anos atrás, eu estava na universidade de Whitworth, e eles realizam um programa de verão para o desenvolvimento profissional pastoral – o Whitworth Institute of Ministry. Mas, juntamente com isso, eles têm uma iniciativa para liderança de presbíteros na qual os pastores levam com elas alguns presbíteros, e eles mergulham na teologia e nos recursos pastorais. Eu fiquei pensando: o que acontece com os presbíteros acontece com a igreja. O que você está vendo em termos da capacidade das pessoas de serem presbíteros?

TK:   Eu acho que está havendo um colapso. De fato, eu entendo onde você quer chegar e concordo absolutamente. A coisa certa a fazer é ter uma base maior com líderes leigos; talvez exista um grupo ainda menor que você possa chamar de seus presbíteros, mas, mais do que isso, você deverá ter provavelmente uma parcela de 10 ou 15% de pessoas suficientemente maduras e dispostas, que têm tempo para serem regularmente treinadas pelos pastores para ministrar e fazer o cuidado pastoral de todos os membros – incluindo o evangelismo, a propósito. Essas são as pessoas que trazem seus amigos para a igreja e alcançam os de fora. Mas também há pessoas que estão lá fora apenas cuidando das pessoas e, em seguida, deixando você saber. Estes são o seu sistema de radar; eles repassam as informações para os pastores.

Em uma igreja pequena, onde você tenha talvez oitenta pessoas indo à igreja, você precisaria de cerca de oito ou dez dessas pessoas, e você deveria se encontrar com elas pelo menos uma vez por mês. Você estará doutrinando-as e lendo bons livros juntos, e isso faz com que elas sintam duas coisas: (1) confiantes para se intrometer um pouco na vida das pessoas e ter conversas, em vez de terem medo. Afinal, a maioria dessas pessoas tem medo de fazer uma pergunta que não pode responder, e essa é a razão pela qual eles não alcançam os outros tanto no evangelismo quanto na instrução e cuidado.

Assim, eles sentirão (1); mas então (2) eles também precisarão saber que podem contar com você. Se estou conversando com alguém e este me faz uma pergunta que não posso responder, eu preciso ser capaz de chegar até você e saber que você vai me ajudar. Assim, se você tem oitenta pessoas em sua igreja, se você é um pastor de tempo integral e se tem, digamos, oito ou nove pessoas assim (e talvez dois ou três presbíteros como parte desse grupo) – será ótimo para você. Ninguém será ignorado, as pessoas muito provavelmente irão liderar proativamente, visitando as pessoas e cuidando, e assim estas também receberão outras formas de contato da igreja, e não só por parte do pastor.

Portanto, o sacerdócio de todos os crentes é absolutamente crucial. Você sabe, a propósito, o que Calvino fez em Genebra – pelo menos tenho certeza; você sabe que os especialistas vão me dizer que estou errado, mas tenho quase certeza de que me lembro [risos]. Em Genebra, os presbíteros eram responsáveis por certos distritos, e quando parecia que havia alguém que precisava de uma exortação pastoral, estes eram levados ao consistório, que se reunia toda quinta-feira, formado por Calvino e os presbíteros. Evidentemente, em 95% das vezes, não havia uma disciplina real. Havia exortação. Era assim que as pessoas eram exortadas a irem à igreja, ou a amarem mais suas esposas, e assim por diante.

JS: É uma pena que nossa linguagem da disciplina da igreja esteja tão estreitamente ligada à ideia de punição e não inclua a ideia de exortação.

TK: Minha denominação, na verdade, fala sobre disciplina geral e específica. Disciplina “geral” é exortação e supervisão. Disciplina “específica” é onde realmente há uma ofensa e uma disputa de forma que os mais velhos têm que decidir o que fazer. Algumas pessoas pensam que apenas isso é disciplina, mas na verdade a exortação também é disciplina.

JS: É algo que tem o mesmo sentido positivo da disciplina de um atleta, não é? O atleta é disciplinado, o músico é disciplinado. O que isso significa é que eles se entregam a ritmos, práticas e responsabilidades que levam a sua prosperidade e excelência.

TK: E também é a conversa deles no intervalo. É o técnico, sabe, olhando nos olhos no intervalo e dizendo, olhem, estou contando com vocês; vocês conseguem.

Traduzido por Fernando Pasquini Santos e revisado por Jonathan Silveira.

Texto original: Pastoral Care as Public Theology: A Conversation with Tim Keller.

Leia a segunda parte da entrevista aqui.

James K. A. Smith (PhD, Villanova University) é professor de Filosofia na Calvin College, onde também ocupa a cátedra Gary e Henrietta Byker de Teologia e Cosmovisão Reformadas Aplicadas. É editor da revista Comment, além de autor e organizador de vários livros, entre eles 'Você é aquilo que ama' e 'Desejando o Reino', publicados por Vida Nova.
Timothy Keller nasceu e cresceu na Pensilvânia, com formação acadêmica na Bucknell University, no Gordon-Conwell Theological Seminary e no Westminster Theological Seminary. Ele é pastor da Redeemer Presbyterian Church, em Manhattan. Já esteve na lista de best-sellers do New York Times e escreveu vários livros, entre eles A fé na era do ceticismo, Igreja centrada, A cruz do Rei, Encontros com Jesus, Ego transformado, Justiça generosa, entre outros, todos publicados por Vida Nova.
Em Igreja centrada, Timothy Keller — com mais de vinte anos de experiência ministerial em Nova York — oferece percepções desafiadoras e levanta questões provocativas. Por meio da aplicação de doutrinas clássicas ao nosso tempo e contexto, Keller descreve de forma concisa e direta uma visão teológica para o ministério, organizada em torno de três compromissos fundamentais:

Centralidade do Evangelho. O evangelho da graça de Jesus Cristo muda todas as coisas, desde o coração do homem até o mundo inteiro, o que inclui também nossa comunidade. Ele transforma completamente o conteúdo, o tom e a estratégia de tudo o que fazemos.

Centralidade da Cidade. Cada vez mais, os grandes centros urbanos influenciam nossa cultura global e impactam nossa forma de executar o ministério. Adotando uma maneira positiva de enxergar a cultura, aprendemos a afirmar que, para o ministério que brota do evangelho, as cidades são lugares maravilhosos e estratégicos e ainda com grandes oportunidades de serviço.

Centralidade do Movimento. Em vez de criar nossa própria tribo, buscamos, guiados pelo Espírito Santo, a prosperidade e a paz da nossa comunidade.

Publicado por Vida Nova.

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