Black Mirror, panóptico virtual e justiça cibernética | Luiz Adriano Borges

O nacionalismo e os cristãos | David T. Koyzis
08/ago/2019
Não seja tóxico | Pedro Muniz
13/ago/2019
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Gosto muito da série Black Mirror porque ela trata de questões negativas da condição humana que estão para além da tecnologia, mas que são acentuadas pelos gadgets e redes sociais. Temas tratados nesta série tais como imortalidade, desumanização do outro, livre-arbítrio, superproteção dos pais, controle dos outros, pornografia, relacionamentos conjugais, autenticidade e justiça com as próprias mãos, são anteriores à era das redes sociais. O que as novas tecnologias fizeram foi tornar mais evidentes traços que antes eram varridos para baixo do tapete. Então, uma das grandes vantagens de séries que fazem sucesso é abrir oportunidades de discussão entre jovens, entre os pais, e em família. O papel do cristão é então saber dialogar com essas peças culturais e refletir sobre sua própria posição face a essas questões.

Para o assunto que gostaria de tratar neste texto, o episódio “Urso Branco” (White Bear), segundo episódio da 2ª temporada, é muito instrutivo e sintomático de algo que todos já presenciamos pelo menos no papel de telespectadores (senão como vítimas). Portanto, ele será o condutor de nossa discussão sobre o tema julgamentos nas redes sociais. Atenção que trarei spoilers.

O episódio em questão se inicia com uma mulher desorientada acordando em um quarto, com dor de cabeça, pulsos machucados e pílulas espalhadas pelo chão. No quarto, uma televisão exibe um símbolo desconhecido[1], além de fotos dela com um homem e de uma pequena menina.

Ela sai da casa e grita por ajuda, mas é ignorada por pessoas que somente assistem a tudo, indiferentes à realidade, filmando tudo com seus celulares. Quando um homem tenta atirar nela com uma espingarda, tem início uma fuga desesperada e agonizante. Enquanto isso, tudo é filmado pelos telespectadores. Ninguém explica a ela o que está acontecendo nem esboça tentativa de se comunicar com ela. Participamos da agonia da personagem principal, sentindo seu desespero por não saber o que está ocorrendo. Na fuga ela encontra alguém que lhe explica que aquele símbolo que ela viu na televisão é a causa de as pessoas estarem agindo dessa forma estranha. As pessoas estão hipnotizadas pelo símbolo e agora ou filmam tudo o que veem sem interferir ou não são afetadas e se tornam sobreviventes, pilhando e matando enquanto as pessoas estão distraídas pelas telas. Só que a mulher não se encaixa em nenhum desses grupos e somente quer descobrir o mistério e porque não se lembra de nada. Após muita perseguição e fugas, quando ela está prestes a pretensamente descobrir a solução de seu enigma, cortinas são suspensas e ela se descobre como parte de uma peça, a la “Show de Truman”. Na verdade, ela é uma criminosa que está cumprindo pena por matar violentamente, juntamente com seu namorado, a menininha que aparecia na foto no quarto. Ela foi sentenciada a sofrer uma punição psicológica diária que consiste em reviver essa fuga desesperada por sua vida todos os dias no Parque da Justiça Urso Branco. E as pessoas pagam para ir assistir à sua penitência nesse purgatório cibernético. Ao final do dia, sua memória é apagada e recomeça seu ciclo de sofrimento.

Horrível e chocante, certo? Tal ideia somente pode ser concebida na mente distorcida de escritores de séries ficcionais. Mas a realidade consegue ser tão terrível quanto a ficção. A diferença é que nós tendemos a naturalizar o terror ou ao menos nos tornar cínicos, da mesma forma que os telespectadores que pagavam para ver a punição da mulher. É só fazer uma busca com os termos “redes sociais e suicídio” para ver dados preocupantes, especialmente entre adolescentes e jovens entre 12 e 18 anos. O contato com as redes sociais tem aumentado muito entre pessoas jovens e a busca por autenticidade além de cyberbullying tem causado muitas interrupções de vidas[2].

Também há os casos de falsas atribuições de crimes a pessoas que levaram à morte.[3] Veja-se o exemplo recente de moradores de uma cidade na Argentina que, após um crime bárbaro contra um menino de 12 anos, identificaram o pretenso criminoso através de conversas por redes sociais e grupos de WhatsApp e procuraram matá-lo. A turba se dirigiu à casa do suspeito, mas encontrando somente o pai, o espancaram e o jogaram numa fogueira. Mais tarde descobriu-se que o suspeito era inocente.[4]

Mas isso não é uma prática nova. Lembrem-se que Jesus foi julgado culpado pelo público e executado pelo Império Romano. Na Idade Média também eram comuns linchamentos públicos. O objetivo ao exibir a violência da punição era não somente fazer um exercício pedagógico e exemplar, mas também acalmar a fúria das multidões. Na Idade Moderna o uso da violência pública foi sendo paulatinamente abandonado, e o judiciário se encarregou da punição de acordo com a lei; o linchamento passa a ser algo à margem da legalidade e praticado por populares.

Michael Foucault abre seu livro sobre a história da legislação penal com um caso muito pertinente e que ressoa o episódio Urso Branco de Black Mirror:

[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos  conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. (Michael Foucault, Vigiar e Punir, p. 9).

Apesar de, como nota Foucault, a punição pública e violenta ter se tornado cada vez mais velada no processo penal, explosões de violência ainda acontecem. Podemos traçar uma linha direta entre o caso citado por Foucault, o episódio Urso Branco e os linchamentos virtuais e reais em nossa era da Informação. Em todos eles encontramos pessoas insatisfeitas com a justiça, sedentas de vingança e destilando ódio.

Isso aponta como esse episódio de Black Mirror não está tratando somente de tecnologia, mas da natureza humana. Sentimos ódio pelas injustiças deste mundo e, muitas vezes, eventos punitivos são uma forma de catarse desse sentimento embrenhado nas entranhas da mente.

O modelo panóptico descrito por Foucault em “Vigiar e Punir”, qual seja, o de um sistema de vigilância total e de controle comportamental dos presos está efetivamente estabelecido em nossa sociedade. Com ironia, podemos argumentar que, se o Estado falha em encontrar e punir os culpados, as redes sociais, com seus “olhos que tudo veem”, tratam de exercer o veredito e executar. Um verdugo pós-moderno cuja carapaça muitas vezes esconde pessoas com supostas boas intenções.

Bauman e David Lyon comentam como o novo panóptico na era da vigilância líquida busca controlar até o que as pessoas pensam. “O pan-óptico está vivo e bem de saúde, na verdade, armado de músculos (eletronicamente reforçados, “ciborguizados”) tão poderosos que Bentham, ou mesmo Foucault, não conseguiriam nem tentariam imaginá-lo” (Vigilância líquida, p. 57). Mas, Bauman continua, “O pan-óptico foi tirado de seu lugar e confinado às partes “não administráveis” da sociedade, como prisões”. É nisso que se estendem as redes sociais, para onde o mecanismo punitivo do Estado parece não atingir. Agora temos “minipanópticos” na figura dos smartphones que levamos conosco para todos os lugares e através dos quais podemos julgar as pessoas em tempo real.

Podemos perverter a famosa frase de Marshall McLuhan e dizer “o meio é o castigo”; redes sociais são locais em que os pretensamente culpados não saem impunes. Na nossa sociedade pós-moderna permeada pelas fake news, que é ao mesmo tempo uma era da Informação mas também da Pós-verdade, não se procura ouvir atentamente aos envolvidos, levantar dados e pistas para se chegar à um veredito: a velocidade das notícias deve ser acompanhada pela aceleração dos julgamentos. E uma vez batido o martelo, não há volta; o culpado será culpado mesmo que se prove sua inocência.

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Criamos um purgatório cibernético, onde o castigo deixa de ser algo que ocorre no silêncio e na solidão da cela para agora ser algo ruidoso e espetacular. Ao contrário do modelo de encarceramento, o modelo de castigo de “Urso Branco” é o reality show. O sofrimento do condenado é posto ao serviço do desejo coletivo por entretenimento e espetáculo (SOLA, 2017, p. 149). Como aponta o título de um importante livro que examina a era televisiva: “Nos divertindo até a morte”. Neste livro, Neil Postam diz que o futuro não vai ser como profetizado por George Orwell em sua ficção científica “1984”, segundo o qual um governo totalitário utiliza-se de mecanismos de controle através de propaganda e vigilância (lembremo-nos do Grande Irmão). Para Postman, o futuro tenderia a seguir o predito por Aldous Huxley em “Admirável Mundo Novo”: as pessoas serão escravas voluntárias de um governo que lhes provê pílulas de felicidade e entretenimento. Nos divertimos até com a morte.

A tecnologia é a única culpada? Certamente não. O desejo humano por diversão e crueldade transcende gerações; a política de pão e circo do Império Romano nunca se interrompeu, mas teve continuidade ao longo dos séculos e chegou ao alcance de todos através das redes sociais.

Agora, na era da internet, o controle social e inclusive o castigo são colaborativos; todos participam na degradação da imagem do condenado. É uma sociedade de autovigilância em que ninguém está seguro; as redes sociais são hidras com muitas cabeças que estão prontas para abocanhar o incauto. Qualquer deslize e o tribunal cibernético está ali para punir. Mas nunca perdoar, nem consertar possíveis falhas de julgamento. Porque sabemos que esse tribunal não é imparcial. Comete atrocidades, falsos e equivocados julgamentos como vimos acima.

E são pessoas “comuns” que conduzem os julgamentos e que espalham fakes news. No episódio que estamos discutindo, “Urso Branco”, o sofrimento da personagem principal não é infligido por uma instituição penitenciária, mas sim por pessoas comuns que pagaram para estar ali, espectadores que gravam tudo sem lhe dirigir palavra nenhuma, por aqueles que lhe insultam e lhe lançam objetos no momento do linchamento final e, inclusive, por aqueles que acompanham o evento por suas televisões.

Da mesma forma, todos aqueles que navegam pela internet e se utilizam das redes sociais já foram vítimas ou até mesmo compartilharam notícias falsas. A internet é um meio frio. Por isso urge utilizar-se das redes com sabedoria.

Assim, devemos nos perguntar: como um cristão deve se comportar?

Em certo momento em “O Senhor dos Anéis”, Gandalf fala para Frodo que: “Muitos que vivem merecem morrer. Alguns que morrem merecem viver. Você pode lhes dar a vida? Então não seja tão ávido para julgar e condenar alguém à morte, pois mesmo os mais sábios não podem ver os dois lados.”

Julgamos as pessoas rapidamente e as redes sociais tornaram a velocidade do julgamento vertiginosa; não há tempo para reflexão e silêncio face a um evento, pois o veredito deve ser estabelecido no ato.

Muitas vezes, infligimos muito mal às pessoas quando julgamos sem amor: Paulo, falando sobre tolerância diz: “Portanto, deixemos de julgar uns aos outros. Em vez disso, façamos o propósito de não pôr pedra de tropeço ou obstáculo no caminho do irmão” (Romanos 14.13). Claro que aqui Paulo não está afirmando que não devemos apontar erros, mas sim que devemos julgar com amor e com cautela, pautados na Palavra de Deus. E mais, como Jesus afirmou, deve-se julgar com temor, pois “com o critério com que julgardes, sereis julgados”. (Mateus 7.1).

Uma breve passada nas redes sociais já é suficiente para percebemos que ocorre muita hipocrisia; o juiz se coloca numa posição moral superior ao réu e professa sua sentença; sem amor e sem caridade. O cristão deve evitar intolerância e polêmicas desnecessárias (1Coríntios 11.16).

Muitas vezes não percebemos o quanto o julgamento nas redes é danoso a quem está recebendo o veredito. Pode até não causar a morte direta, como no caso de linchamentos, mas pode causar muita dor, levando à depressão e até ao suicídio. Achamos que as redes são inofensivas, mas agindo assim, estamos faltando com sabedoria.

Sejamos lentos no julgar; sejamos sábios ao compartilhar ou mesmo dar um like/curtida em uma postagem, pois não sabemos quem irá visualizar nossa reação. Examinemos nosso coração para ver se não estamos agindo com raiva, com sentimento de revanche quando compartilhamos algo nas redes sociais, pois, em diversas vezes, estamos mais querendo dar indireta em alguém do que enriquecer o debate. O cristão deve ter extremo cuidado com o teor de suas publicações e tudo o que vê nas redes.

Assim, qual a lição que podemos tirar do episódio “Urso Branco” de Black Mirror? Devemos ver o episódio como um alerta para todos aqueles que diariamente se alimentam dos linchamentos virtuais, o ódio e o estigma das redes sociais, a trolagem, a maneira como muitas vezes colaboramos para cultivar um clima negativo e perpetuar maus tratamentos. Devemos fazer uma autoanálise de nosso comportamento nas redes. Pode até ser que a pessoa seja culpada (como é o caso da personagem principal desse episódio), mas não cabe a nós julgar e a condenação deve ser feita pelos mecanismos legais e sem espetáculo. Claro que nossa insatisfação com injustiças pode ser demonstrada, mas devemos fazer isso com comedimento e sabedoria, sem causar mais mal do que bem. Sentimento de vingança nunca deve estar presente em nossas interações nas redes sociais.

Uma maneira errada de olhar esse episódio seria demonizar as redes sociais e os smartphones. Como afirmei acima (e é o mote de Black Mirror), a tecnologia não é quem deve ser culpada, mas a natureza humana. Mas o que Black Mirror não aponta e que os cristãos devem sempre lembrar, é que somos seres caídos e pecaminosos. As tecnologias como produto humano transparecerão essas limitações e serão más, na medida em que o homem é mal. Não sejamos inocentes em acreditar que as redes são neutras. O que as redes sociais fazem é dar vazão a sentimentos presentes no coração humano. Mesmo sentimentos algumas vezes corretos, como justiça, podem crescer e se transformar em algo perverso.

Sejamos expectadores reflexivos de nossa cultura, olhando o que peças culturais como Black Mirror podem nos dizer. A crítica à tecnologia presente em todos os episódios dessa série deve nos levar a usar a tecnologia com cuidado e parcimônia: nem demonizá-la nem entregar-se a ela incondicionalmente, mas antes usá-la de maneira crítica e reflexiva. Muitas vezes o linchamento virtual nesse tribunal pós-moderno que são as redes sociais é uma forma de vingança e catarse: o ódio que está dentro de nós (inveja, ódio por quem não concorda com nossa cosmovisão etc.) aflora. Por isso, o episódio “Urso Branco” nos convida à autorreflexão, à análise de nosso interior quando compartilhamos ou curtimos qualquer conteúdo nas redes.

_____________________

[1] Trata-se de um símbolo que se repete em outros episódios de Black Mirror.

[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Social_media_and_suicide

[3] http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-05/advogado-defende-punicoes-mais-rigorosas-contra-noticias-falsas-na).

[4] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/03/31/linchamento-do-pai-de-um-jovem-falsamente-acusado-de-estupro-comove-argentina.ghtml

Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. “Vigilância líquida”. Zahar, 2014.

FOUCAULT, Michael Foucault, “Vigiar e Punir”. Rio de Janeiro, Vozes: 1997.

SOLA, Javier Cigüela, “El médio es el castigo”: la justicia penal de Gutenber a Zuckerberg. IN: MARTÍNEZ-LUCENA, Jorge e BARRAYCOA, Javier (eds). Black MIrror. Porvenir y tecnologia. Barcelona: Editorial UOC, 2017.

POSTMAN, Neil. Amusing ourselves to death (Nos divertindo até a morte). Penguin, 1985.

Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)".

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