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Atualmente, a temática dos refugiados – e das migrações forçadas como um todo – tem ocupado cada vez mais espaço nos noticiários e nas discussões políticas, inclusive no meio cristão. À medida que crises políticas e humanitárias se aprofundam em países do Oriente Médio, e, mais recentemente, na América Latina, muitos têm se perguntado qual deve ser a postura correta da Igreja referente ao tema.

Segundo estatísticas oficiais da agência da ONU para refugiados, há atualmente cerca de 68 milhões de deslocados forçados ao redor do mundo, sendo mais de 20 milhões deles refugiados[1]. Diante de tamanha crise humanitária, parece imperativo que os cristãos desenvolvam uma perspectiva bíblica para abordar o tema tanto sob o aspecto político – no que tange a responsabilidade dos Estados – quanto no aspecto individual – referente ao chamado da Igreja, de amar e acolher o estrangeiro. Entretanto, chegar a um consenso sobre isso é um grande desafio político e teológico, aparentemente difícil de ser alcançado.

Nas últimas eleições presidenciais no Brasil, por exemplo, o atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, foi questionado em um programa de televisão sobre o porquê de ele ter apresentado, no passado, uma retórica tão ríspida acerca dos refugiados. Para o jornalista, parecia inconcebível o então presidenciável afirmar-se cristão e ainda assim ser hostil ao acolhimento de refugiados, uma vez que o próprio Jesus teria sido um. O jornalista se referia ao episódio em que José e Maria recebem ordens do anjo para fugir para o Egito a fim de escapar da matança de bebês ordenada por Herodes. O relato encontra-se em Mateus 2.13-21.

Para muitos cristãos brasileiros, porém, a associação de Jesus à condição de refugiado pareceu bastante inapropriada, sendo vista como uma instrumentalização da fé cristã para fins políticos. Embora compreenda a preocupação desses irmãos e, evite entrar no mérito acerca das reais intenções do jornalista durante o período eleitoral, acredito que Jesus foi sim um refugiado e que é de grande valia para nós cristãos nos lembrarmos disso, inclusive para evitarmos distorções políticas da nossa fé.

De acordo com a Convenção Relativa ao Estatuto de Refugiados de 1951, formulada após o término da Segunda Guerra Mundial, o termo “refugiado” aplica-se a qualquer pessoa que:

“temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em conseqüência [sic] de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.”[2]

Com base nessa descrição, realmente é possível afirmar que Jesus foi um refugiado, uma vez que o seu nascimento constituiu uma grande ameaça política a Herodes, que tentou matá-lo (Mt 2.13). Logo, havia um temor bem fundado de perseguição por motivos políticos, o que inclusive resultou em uma chacina de bebês, cumprindo a profecia de Jeremias (Mt 2. 17-18). A ameaça que Herodes apresentava à vida de Jesus logo em seus primeiros dias de encarnação era tão grande que o anjo alertou a José e Maria que permanecem no Egito até a morte do rei romano (Mt 2.19-20).

É possível tentar refutar esse argumento ressaltando que, uma vez que tanto o Egito como Israel estavam sujeitos à mesma dominação romana, Jesus não cruzou fronteiras internacionais. Assim, não seria um refugiado. É óbvio que as organizações políticas do Oriente Médio da época em que Jesus viveu eram bastante diferentes das atuais. Porém, o texto bíblico é claro que, mesmo debaixo da dominação romana, Egito e Israel permaneciam como unidades políticas distintas e, de certa maneira, autônomas. É por isso que, no Egito, Herodes não teria como perseguir e matar Jesus. Ainda assim, mesmo que não houvesse essas distinções entre as duas regiões, Jesus continuaria sendo um migrante forçado. Ele não seria um refugiado, mas poderia ser enquadrado na definição contemporânea de deslocado interno, alguém forçado a deixar o seu local de residência, porém sem atravessar fronteiras internacionalmente reconhecidas[3].

É possível, porém, questionar qual a necessidade de tentar aplicar termos contemporâneos à experiência humana de Jesus. De que maneira isso pode edificar a Igreja nos dias atuais? Faz alguns anos que tenho pensando sobre isso. A primeira vez foi em 2015, quando estive no Egito e visitei a área onde Jesus supostamente viveu durante esse período de refúgio, acerca do qual não temos muitos detalhes na narrativa bíblica. O lugar fica localizado em um bairro cristão no Cairo que abriga cerca de sete igrejas coptas e uma das poucas sinagogas restantes no Egito após a expulsão de praticamente toda a sua população judaica depois da criação do Estado de Israel, em 1948.

Na época da minha visita, os cristãos egípcios passavam por um momento de muita incerteza quanto ao seu futuro. Fazia apenas quatro anos desde o começo da chamada Primavera Árabe, a onda de manifestações políticas iniciadas na Tunísia em 2010 que atingiu diversos países do Norte da África e do Oriente Médio, culminando na deposição do presidente egípcio Hosni Mubarak, em janeiro de 2011. Desde então, o país vinha passando por um longo período de instabilidade política, com a eleição, em 2012, de um presidente islamista que tentou aumentar a influência da religião islâmica no cenário político do país e foi deposto em 2013 por um novo golpe de Estado. Para piorar a situação, o autoproclamado Estado Islâmico, que desde 2014 ocupava territórios no Iraque e na Síria, passou também a controlar território na região norte do Sinai, no Egito.

Os cristãos, uma minoria no país, correspondente a cerca de 10% da população, vinham sendo alvo de vários ataques. Entre 2012 e 2014, várias Igrejas haviam sido destruídas no Egito e muitos cristãos foram forçados a deixar o país. Naquele bairro cristão era perceptível o medo e, paradoxalmente, a esperança. Perguntei então, a alguns cristãos a razão para essa atitude e as respostas eram basicamente as mesmas. Eles tinham medo do sofrimento que poderiam enfrentar, mas eram consolados com o fato de que quando Jesus se tornou homem ele também havia sido vítima de perseguição assim como eles estavam sendo. Além disso, havia sido estrangeiro no país deles, da mesma maneira como muitos deles também se sentiam, vivendo em uma sociedade majoritariamente islâmica. Para os cristãos egípcios, Jesus ter sido um refugiado não era uma questão política, mas sim uma questão integral da fé que eles professavam e uma prova incontestável da humanidade do Messias e de sua empatia pelos pecadores.

Nos anos seguintes, em minhas viagens pelo Oriente Médio, continuei a ouvir relatos semelhantes. Em 2016, durante uma viagem que realizei ao Líbano, junto com a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), pude conversar com alguns cristãos iraquianos que fugiram de Mosul em 2014, logo após o Estado Islâmico conquistar a cidade. Eles diziam que mesmo naquele momento de profunda dor e desolação o maior conforto que possuíam era saber que um dia Jesus também havia sido um refugiado médio-oriental. Essa certeza é o que os ajudava a lidar com as dificuldades diárias de viver em um dos países com o maior número de refugiados no mundo.

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Em 2017, na Jordânia, ao entrevistar outros cristãos iraquianos para a minha dissertação de mestrado[4], fui surpreendido por um deles, que me falou mais ou menos o seguinte: “A vida aqui é difícil. O país é pequeno e já recebeu muitos refugiados sírios. A maior parte da ajuda humanitária é destinada a eles, principalmente para os que vivem em campos, o que não é o nosso caso. Apesar disso, temos algo que eles não têm, já que a maioria é de muçulmanos. Nós temos um salvador que sofreu como nós. Estamos cansados disso e queremos a ajuda dos cristãos ocidentais. Mas sempre nos lembramos do exemplo de Cristo.”

Kenneth E. Bailey, um professor de Estudos do Novo Testamento e Oriente Médio, de origem árabe, sumariza um pouco dessa experiência em seu livro “Jesus pela ótica do Oriente Médio” ao comentar o Sermão do Monte, Bailey escreve:

“Os cristãos jamais são estimulados a procurar sofrimento. Contudo, são incentivados a reconhecer que o sofrimento é um mestre extraordinário. Enquanto não passamos pelo sofrimento, conhecemos pouco das profundidades do espírito humano. A dor reorganiza as nossas prioridades. É horrível ser refugiado, e as forças que expulsam as pessoas de seu país devem ser combatidas. Porém, qualquer um que seja obrigado a fugir de sua terra, como eu fui em três ocasiões no Líbano, logo aprende que o que realmente importa é a própria vida, e que todos os bens – ao fim ao cabo – não têm valor. Os que choram suportam o sofrimento, e os bem-aventurados/abençoados entre eles desfrutam o consolo de Deus.”[5]

Essa identificação com o sofrimento humano, que nos torna bem-aventurados, segundo Jesus, ao chorarmos, nos lembra de um dos aspectos mais importantes do nosso salvador: a sua humanidade, coexistente com a sua divindade.

O apóstolo João relata que Jesus, o verbo de Deus, a palavra que acompanhou o Pai ao criar o mundo, encarnou, tornou-se como um de nós, viveu como um pobre homem judeu na Galileia[6]. Segundo o autor de Hebreus, é exatamente isso o que nos dá esperança. Só temos um salvador que se compadece de nós porque embora ele seja santo e nunca tenha pecado, experimentou todas as tentações que nós enfrentamos e muitas vezes caímos[7].

Logo, ao reconhecermos que Jesus foi um refugiado reconhecemos a sua humilhação em se tornar um ser humano. Mas não um ser humano qualquer e sim um estrangeiro, alguém que teve que fugir para proteger a própria vida até chegar o momento em que Ele mesmo se entregaria e morreria em resgate de muitos. Dessa maneira, ele compraria para o Pai “povos de todas as tribos, línguas e nações”[8]. Muitos dos quais são etnias que até pouco tempo atrás não tinham nenhum acesso ao Evangelho até terem sido forçados a deixar seus países de origem. É esse por exemplo, o caso de muitos sírios, iranianos, afegãos e tantos outros povos que hoje foram forçados a deixarem suas casas. Essa, portanto, não é uma questão meramente política, é uma questão do Evangelho, do poder de Deus de salvar pecadores de todas as nacionalidades e etnias.

Assim, quando setores progressistas utilizarem a figura de Jesus como um refugiado para advogar por suas agendas políticas, podemos aproveitar a oportunidade para lembrar que a humanidade de Jesus e sua condição de refugiado é não somente esperança para aqueles que creem, mas também juízo para aqueles que rejeitam a sua divindade e senhorio[9]. Jesus foi um pobre refugiado, mas é também um rei e guerreiro zeloso que trará juízo ao mundo e vingará os Seus[10].

Que a humanidade e divindade de Jesus nos console em nosso sofrimento e luta contra o pecado, mas que também nos encoraje a proclamar o Seu Reino, inclusive entre os refugiados deste tempo, até que Ele venha!

_____________________

[1] UNHCR. Global Trends 2017. Disponível em: <https://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/5b27be547/unhcr-global-trends-2017.html>. Acesso em 12 de fevereiro de 2019.

[2] ONU. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951). Disponível em: <https://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/5b27be547/unhcr-global-trends-2017.html>. Acesso em 12 de fevereiro de 2019.

[3] Segundo os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Deslocados Internos, enquadram-se nessa definição as “[…] pessoas, ou grupos de pessoas, forçadas ou obrigadas a fugir ou abandonar as suas casas ou seus locais de residência habituais, particularmente em consequência de, ou com vista a evitar, os efeitos dos conflitos armados, situações de violência generalizada, violações dos direitos humanos ou calamidades humanas ou naturais, e que não tenham atravessado uma fronteira internacionalmente reconhecida de um Estado.” ONU. Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos. Disponível em: <https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Documentos_da_ONU/Principios_orientadores_relativos_aos_deslocados_internos_1998.pdf>. Acesso em 12 de fevereiro de 2019>. Acesso em 13 de fevereiro de 2019.

[4] Aos que se interessarem pela minha dissertação, intitulada “Deslocados Internos Por Perseguição Religiosa e o Estado Islâmico: uma análise do caso iraquiano (2006-2014)”, ela encontra-se disponível para download gratuito no site do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB): <http://pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgri/files/2018/05/Igor-Henriques-Sabino-de-Farias.pdf>

[5] BAILEY, E. Kenneth. Jesus pela ótica do Oriente Médio: estudos culturais sobre os Evangelhos. São Paulo: Editora Vida Nova, 2016, p. 22

[6] João 1.1-18

[7] Hebreus 4.14-16

[8] Apocalipse 5. 6-10

[9] João 3.17-21

[10] Isaías 63.1-6

Igor Sabino é Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e alumnus do Philos Project Leadership Institute. Realizou trabalhos humanitários em ONGs de Direitos Humanos ligadas à American University of Cairo, no Egito e pesquisas de campo na Polônia, Israel, Territórios Palestinos, Líbano e Jordânia relacionadas a migrações forçadas e perseguição religiosa. Tem como áreas de interesse: Religião e Relações Internacionais, Migrações Forçadas, Política Externa dos EUA para o Oriente Médio, Sionismo Cristão e Islã Político.
Kenneth Bailey guia o leitor em um estudo caleidoscópico de Jesus ao longo dos quatro Evangelhos. O autor examina a vida e o ministério de Jesus atentando para a Oração do Senhor, as Bem-Aventuranças, a interação de Jesus com as mulheres e especialmente as parábolas de Cristo.

Em tudo isso, Bailey emprega sua habilidade de especialista da cultura do Oriente Médio para nos levar a uma compreensão mais aprofundada da pessoa e do significado de Jesus dentro de seu contexto histórico e cultural. Para isso, o autor dissipa as nebulosas camadas da interpretação ocidental moderna.

“Há muito tempo sou admirador dos proveitosos insights de Kenneth Bailey [...]. Aqueles de nós que dependem principalmente de fontes antigas são por ele inspirados a considerar novas abordagens, muitas vezes concordando e muitas vezes completando essa pesquisa.” Craig Keener, professor de Novo Testamento no Seminário Teológico Palmer e autor de Comentário histórico- cultural do Novo Testamento.

Publicado por Vida Nova.

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