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Diz um velho chavão: “Eu reclamava que não tinha sapatos até encontrar um homem que não tinha os pés”. Na verdade, esse tipo de comparação raramente nos faz sentir melhor. Em vez de nos ajudar a valorizar nossas próprias circunstâncias, o fato de outros enfrentarem uma situação pior serve mais para nos alarmar (veja Jó 6.22). Ficamos perplexos sem saber explicar por que lhes acontece uma coisa dessas. Não sabemos o que dizer para os consolar. Pior ainda, descobrimos que enxergar o problema deles nos faz temer por nós mesmos. Se isso pode acontecer a eles, o que impede de acontecer conosco? Ver um homem sem pernas não nos estimula a valorizar o fato de ainda termos nossos pés, mesmo descalços; deixa-nos preocupados em perder os dedos dos pés por congelamento.

Do mesmo modo, nem sempre é fácil “alegrar-se com os que se alegram” (Rm 12.15). Ao contrário, é mais provável olharmos para as bênçãos dos outros e ficar nos perguntando por que Deus não faz o mesmo por nós. A inveja é mais intensa quando provocada por aqueles cujas circunstâncias são semelhantes às nossas. Embora às vezes eu ache que gostaria de ser rico, não invejo nem um pouco Donald Trump e os seus bilhões. Não considero que os bens dele sejam aspirações realistas para minha vida. Não. É a casa um pouco maior do meu vizinho ou a promoção do meu colega que me irrita. Tenho inveja porque alguém consegue perder peso com mais facilidade do que eu ou porque o filho ou a filha dele entrou no time da escola, e o meu não. O escritor Alain de Botton assinalou em Status anxiety: “Temos inveja apenas daqueles com quem nos identificamos — invejamos apenas os integrantes do nosso grupo de referência. Poucos são os casos de sucesso mais insuportáveis do que o dos nossos aparentemente semelhantes”.[1] Essa inveja é alimentada pela impressão de que, apesar de sermos iguais, o percurso que o outro faz parece mais fácil do que o meu.

Posso ter razão. Sim, eu sei que Deus não tem parcialidade (Rm 2.11), mas isso não significa que ele trata todos da mesma forma. O que Paulo diz sobre dons espirituais também se aplica às nossas circunstâncias naturais: “… ele as distribui individualmente, a cada um, conforme quer” (1Co 12.11). Somos diferentes em altura, peso e fisionomia. Não temos todos as mesmas habilidades, oportunidades ou experiências. Alguns terão câncer, outros não. Dentre os que têm câncer, alguns sobrevivem, mas outros não. Mesmo aqueles que têm dons e capacidades semelhantes não necessariamente desfrutam o mesmo grau de sucesso. As portas talvez se abram para alguns e permaneçam fechadas para outros. Alguém “por acaso” pode estar no lugar certo, na hora certa ou se encontrar em circunstâncias que gerem progresso maior, enquanto outro com capacidade semelhante ou até maior não é notado.

Todos nós sofremos esse tipo de injustiça de uma forma ou de outra. Salomão reclamava: “Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: os velozes nem sempre vencem a corrida, os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio, pois o tempo e o acaso afetam a todos” (Ec 9.11).

Sem dúvida, podem-se explicar em parte essas diferenças como o dano colateral do pecado ou como iniquidades sofridas nas mãos de uma sociedade pecaminosa. Elas são consequência de viver em um mundo caído. No artigo “Is Beauty the Beast?” [Será que a Bela é a Fera?], Karen Lee-Thorp observa: “Há estudos que confirmam o que quase todos nós percebíamos intuitivamente quando crianças: as mães e as funcionárias de creche sorriem, falam carinhosamente, beijam e abraçam mais os bebês bonitinhos do que os comuns. Os pais se envolvem mais com bebês bonitinhos”.[2] Em outras palavras, desde as nossas primeiras experiências, logo descobrimos que as condições de jogo não são as mesmas: os atraentes são mais bem recebidos; os ricos têm mais oportunidade de adquirir riqueza. Deus é “justo” no tratamento, mas, pessoas inclinadas para o pecado, não.

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Apesar disso, mesmo aqui não podemos excluir Deus do quadro. Circunstâncias que nos parecem arbitrárias são uma questão de projeto divino. Estamos certos de supor que a mão de Deus está em tudo o que acontece conosco, mesmo quando é doloroso, difícil ou injusto. Ele não é a causa direta de todo nosso sofrimento, mas é o guardião por quem tudo deve passar antes de atingir nossa vida. Nosso caso é parecido com o do patriarca Jó, do Antigo Testamento. Estamos cercados pelo cuidado de Deus, e ninguém pode encostar um dedo em nós sem a permissão dele (Jó 1.10). Será que Jó se sentiria melhor com a sua situação se soubesse que Deus estabelecera um limite para sua provação, e que Satanás só podia ir até onde a permissão divina deixasse? Talvez ele ficasse tentado a repetir o sentimento de Teresa de Ávila, que certa vez se queixou a Deus: “Se é assim que tratas os amigos, não é de admirar que tenhas tão poucos”. Contudo, o propósito soberano de Deus deve ser levado em conta para entendermos o que acontece conosco.

Certa ocasião, quando os discípulos de Jesus viram um homem cego de nascença, perguntaram: “Rabi, quem pecou para que ele nascesse cego: ele ou seus pais?”. Eles achavam que essas coisas não aconteciam por acaso. Deve haver uma relação de causa e efeito. O homem ou seus pais devem ter feito algo para merecer esse destino. Jesus concordou com o pressuposto básico deles, mas não com a conclusão. Havia um motivo. “Nem ele nem seus pais pecaram”, Jesus respondeu, “mas isso aconteceu para que a obra de Deus se manifestasse na vida dele” (Jo 9.2,3).

O fato de a mão forte de Deus estar oculta aos olhos não significa que esteja ausente. Deus não está dormindo ao volante. O capitão das nossas almas estabeleceu o destino final e traçou nosso percurso. O objetivo de Deus é nos recriar à imagem de seu Filho para sua glória. Tudo o que enfrentamos na vida está sujeito a esse grande projeto (Rm 8.29,30).

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[1] Alain de Boton, Status anxiety (New York: Vintage, 2004), p. 27 [edição em português: Desejo de status, tradução de Ryta Vinagre (Rio de Janeiro: Rocco, 2005)].

[2] Karen Lee-Thorp, “Is Beauty the Beast?”, Christianity Today, July 14, 1997: 30.

Trecho extraído e adaptado da obra “A surpreendente graça nas decepções“, de John Koessler, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2019, pp. 90-93. Traduzido por Soraya Bausells. Publicado no site Tuporém com permissão.

John Koessler (DMin, Trinity International University) é presidente e professor do departamento de Estudos Pastorais do Moody Bible Institute. Autor de vários livros, como Stranger in the house of God e True discipleship, é também editor do Manual de pregação (Vida Nova). John e a esposa, Jane, moram no noroeste de Indiana e têm dois filhos.
Todos alimentamos falsas expectativas em várias áreas da vida. Em relação ao nosso relacionamento com Deus, isso não é diferente. Então, quando Jesus não corresponde a essas expectativas, ficamos decepcionados.

Em A surpreendente graça nas decepções, Koessler explica como essas experiências difíceis podem ser a melhor coisa que pode nos acontecer, ainda que extremamente dolorosas. Na verdade, as frustrações decorrentes da aparente falha de Jesus em realizar nossos sonhos redefinem todas as nossas expectativas. É isso que significa graça surpreendente: a certeza de que toda dor e frustração podem nos aproximar ainda mais de Jesus.

Publicado por Vida Nova.

1 Comments

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