Eis um aparente paradoxo: A obra O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, não menciona Cristo, a igreja, a Bíblia, ou mesmo Deus em nenhuma de suas páginas. No entanto, a obra é profundamente cristã. O Senhor dos Anéis é uma fantasia habitada por elfos, anões, hobbits e magos. É uma história inventada e, ainda assim, é espiritual e moralmente verdadeira. É uma obra de literatura e também é, à sua maneira, uma obra poderosamente eficaz de apologética.
Isto, na realidade, não é nenhum paradoxo, mas, sim, um exemplo da apologética imaginativa em operação. A imaginação é muito mais do que podemos chamar de devaneio “chique” ou ocioso. É um modo do saber, assim como a faculdade da razão. Na verdade, a imaginação é necessária para que a razão funcione. C. S. Lewis escreve que “a razão é o órgão natural da verdade, mas a imaginação é o órgão do sentido. A imaginação, ao produzir novas metáforas ou ao revivificar o antigo, não é a causa da verdade, mas sua condição”.[1] Somente quando algo possui sentido, que é gerado pela imaginação, podemos começar a utilizar nossa razão para julgar se o sentido é verdadeiro ou falso.
É importante enfatizar que, embora a apologética imaginativa seja distinta da apologética proposicional (ou orientada pela razão), ela de forma alguma se opõe a esse segundo tipo de apologética. Em vez disto, as apologéticas imaginativa e racional são complementares. Cada uma delas é necessária para o funcionamento pleno e adequado da outra. Tolkien tinha um intelecto aguçado e penetrante – ele era, afinal de contas, um dos maiores eruditos do mundo no campo altamente exigente da filologia – e não ignorou o seu uso da razão quando fez uso de sua imaginação. Tolkien escreve em seu ensaio seminal “Sobre Contos de Fadas”:
“A Fantasia é uma atividade humana natural. Certamente ela não destrói a Razão, muito menos insulta; e não abranda o apetite pela verdade científica nem obscurece a percepção dela. Ao contrário. Quanto mais arguta e clara a razão, melhor fantasia produzirá.”[2]
Uma história como O Senhor dos Anéis não oferece um argumento que apela diretamente ao intelecto, mas, sim, uma abordagem imaginativa e experiencial. Essa abordagem indireta, no entanto, também é inteiramente compatível com abordagens mais diretas. A apologética literária fornece um engajamento imaginativo com a verdade na forma ficcional. O encontro do leitor (ou do espectador) com imagens, personagens, histórias e ideias em um modo imaginativo pode, de fato, aguçar o apetite para aprender mais e prepará-lo para reconhecer e assimilar a verdade em formas racionais e proposicionais. O próprio Tolkien estava bem ciente da mensagem cristã de sua obra e da importância de apresentá-la indiretamente por meio de símbolos, imagens e, como veremos, por meio da própria estrutura da história de fantasia.
Muito poderia ser dito a respeito deste tópico. Consideraremos aqui os conceitos que Tolkien introduz em seu ensaio seminal “Sobre Contos de Fadas”, que é uma análise estendida sobre o funcionamento da literatura de fantasia. Suas ideias são aplicáveis à literatura, às artes em termos gerais, e à disciplina da apologética literária.
O ensaio “Sobre Contos de Fadas” teve sua origem em uma palestra pública que Tolkien apresentou na Universidade de St Andrews, em 1939. A palestra surgiu em um ponto crucial no desenvolvimento de Tolkien como escritor de literatura de fantasia. Ele estava bem estabelecido como erudito de anglo-saxão e inglês-médio (“Middle-English”). Ele havia trabalhado por muitos anos em várias histórias e poemas do Silmarillion, havia recém-publicado O Hobbit e começado a trabalhar em sua sequência, que se tornaria O Senhor dos Anéis. Uma versão expandida da palestra foi publicada em 1947 em Essays Presented to Charles Williams (“Ensaios Apresentados a Charles Williams”), editado por C. S. Lewis. Uma versão com revisões adicionais surgiu em 1964 na coletânea de Tolkien intitulada de Árvore e Folha.[3] Assim, as ideias que Tolkien expressara na Universidade de St Andrews foram posteriormente desenvolvidas ao longo do curso de vinte e cinco anos, durante o tempo em que ele estava colocando suas teorias em prática ao escrever e publicar O Senhor dos Anéis. “Sobre Contos de Fadas”, como afirma Verlyn Flieger, é “o modelo no qual [Tolkien] moldou sua ideia de subcriação e o manifesto em que declarou seu conceito particular do que a fantasia é e como ela deve funcionar.”[4]
Tolkien começa argumentando que “A definição de conto de fadas – o que é, ou o que deveria ser – não depende, portanto, de nenhuma definição ou relato histórico sobre elfos ou fadas”.[5] Nem a fantasia, quando corretamente definida, inclui contos de viajantes, fábulas com feras ou histórias que utilizam uma estrutura construída sobre sonhos. Em relação à última excludente, Tolkien faz uma importante afirmação. Ele argumenta que, precisamente porque os contos de fadas contêm “maravilhas”, uma história de fantasia “deve ser apresentada como ‘verdadeira’… ela não pode tolerar nenhum enquadramento ou mecanismo que dê a entender que toda a história em que ocorrem é uma ficção ou ilusão”.[6] É uma qualidade essencial da fantasia que ela crie uma experiência imersiva para o leitor. Um contador de histórias, afirma Tolkien, é um “subcriador”, que “faz um Mundo Secundário no qual nossa mente pode entrar. Dentro dele, o que ele relata é ‘verdade’, concorda com as leis daquele mundo. Portanto, acreditamos, enquanto estamos por assim dizer do lado de dentro.”[7] Entretanto, qualquer imperícia ou inconsistência por parte do contador de histórias que torne o leitor ciente da artificialidade do mundo secundário irá prejudicar a experiência de leitura: “a magia, ou melhor, a arte fracassou. Então estamos de novo no Mundo Primário, olhando de fora o pequeno Mundo Secundário malogrado.”[8]
Para ilustrar a diferença entre “crença secundária” e mera “suspensão voluntária da incredulidade”, considere um grupo de amigos reunidos em volta de uma TV de tela grande para assistir à Copa do Mundo.[9] O verdadeiro entusiasta do futebol assiste ao jogo em um estado de plena crença secundária. Ele exorta os jogadores, grita com o árbitro e é submerso em alegria ou tristeza pelos eventos que vê na tela. O mesmo grau de envolvimento não é sentido por seu vizinho, que simplesmente deseja ser sociável. Ele deve tomar interesse pelo jogo ou então será uma tarde monótona, mesmo que haja bons petiscos. Assim, ele torce para o seu time escolhido com uma disposição de espírito suficiente. No entanto, ao assim fazer, ele meramente “suspendeu sua descrença”, que, como Tolkien explica, “é um substituto da coisa genuína”.[10] Na medida em que se diverte, ele desfruta do companheirismo para o qual o jogo é a desculpa, ao invés de ser o jogo em si, e é improvável que ele assista outros jogos por sua própria iniciativa. O mesmo acontece com histórias de fantasia. A experiência plena e imersiva dos leitores em uma obra de literatura de fantasia é muito mais do que uma “suspensão da descrença”. Um leitor que esteja consciente da artificialidade do mundo secundário pode entrar no jogo com o autor, por assim dizer, mas tal esforço indicaria que a “crença secundária” nunca surtiu efeitos plenos.
A título de esclarecimento, a intenção do leitor, os interesses e as experiências anteriores possuem um efeito na formação da crença secundária. Alguns leitores são muito mais facilmente atraídos para os mundos secundários da ficção, assim como alguns autores são particularmente habilidosos em fazer com que a crença secundária seja empolgante até mesmo para visitantes relutantes de seu mundo literário. A produção da crença secundária não é, naturalmente, limitada à fantasia; ela é uma característica de outros gêneros também, incluindo o romance realista. Enquanto estamos lendo Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, sentimos que Elizabeth Bennet e Mr. Darcy são pessoas reais em um mundo real.
O que faz a fantasia ser diferente de outros gêneros, então? Por um lado, a fantasia pode operar de modo mais livre do que a ficção realista, uma vez que o autor não está limitado a escrever coisas que existem ou que poderiam existir no Mundo Primário. Essa liberdade criativa é uma espada de dois gumes: ajuda o fantasista a alcançar o que Tolkien vê como a qualidade necessária de “estranheza e maravilhamento”[11], mas também torna mais desafiador alcançar a igualmente necessária “consistência interna da realidade”[12] para o mundo imaginado. Tolkien prossegue, dizendo:
“Qualquer pessoa que tenha herdado o fantástico dispositivo da linguagem humana pode dizer o sol verde. Muitos podem então imaginá-lo ou concebê-lo. Mas isso não basta […]. Fazer um Mundo Secundário dentro do qual o sol verde seja verossímil, impondo Crença Secundária, provavelmente exigirá trabalho e reflexão, e certamente demandará uma habilidade especial, uma espécie de destreza élfica.”[13]
O resultado dessa habilidade e trabalho especiais é a arte literária chamada de fantasia, “a criação de histórias em seu modo primordial e mais potente”[14].
As características de “subcriação” e “crença secundária” são significativas para a apologética, pois elas apontam em direção ao relacionamento da fantasia com a realidade. A fantasia, como Tolkien a define, não é uma fuga do Mundo Primário, mas um engajamento criativo com ele. Por meio de suas hipóteses e do imaginário de coisas que não são, nunca foram, e talvez nunca poderiam ser, a fantasia ilumina o que é, o que foi e o que poderia ser. Aqui podemos ver a conexão entre a teologia de Tolkien e seu entendimento do processo criativo. A elevada visão de Tolkien sobre a fantasia está alicerçada em seu entendimento do ato subcriativo como reflexão do ato criativo divino: “fazemos em nossa medida e a nosso modo derivativo, porque somos feitos, e não apenas feitos, mas feitos à imagem e semelhança de um Criador.”[15] Embora caídos, os seres humanos fazem fantasia criativa porque carregam a imagem de um Deus criativo e, desta forma, para Tolkien, a fantasia é fundamentalmente séria até mesmo quando é extremamente lúdica e extravagante.
Tolkien afirma que uma das funções da fantasia é a Recuperação:
“A recuperação (que inclui o retorno e a renovação da saúde) é uma retomada – a retomada de uma visão clara. Não digo ‘ver as coisas como elas são’, pois assim me envolveria com os filósofos, mas posso arriscar-me a dizer ‘ver as coisas como devemos (ou deveríamos) vê-las’ – como coisas separadas de nós.”[16]
Tolkien identifica dois elementos relacionados que contribuem para o nosso fracasso em enxergar claramente: familiaridade e possessividade. Usando a metáfora de uma janela suja e manchada – cuja película de sujeira obscurece o que vemos através dela –, ele diz que precisamos “limpar nossas janelas, para que as coisas vistas com clareza possam ficar livres da nódoa opaca da trivialidade ou familiaridade – da possessividade.”[17]
Essa análise é de fundamental importância para a apologética. Quando pensamos que verdadeiramente sabemos algo, frequentemente paramos de realmente vê-la. Usamos palavras como amor, perdão, justiça e reconciliação sem perceber ou comunicar sua realidade confusa, dolorosa e transformativa. Nos relacionamentos do dia a dia, podemos não mais ver nossa família, amigos e pessoas próximas como eles mesmos, mas, em vez disso, vê-los de maneira instrumental, em termos do que podem fazer por nós – ou como eles nos atrapalham.
De fato, Tolkien nota que nossos familiares são “aqueles em que é mais difícil pregar peças fantásticas e os mais difíceis de observar com atenção despojada, percebendo semelhança e dessemelhança entre eles: que são rostos, e rostos singulares.”[18]
Ademais, vivemos em uma cultura que está paradoxalmente cansada do cristianismo, mas, ao mesmo tempo, é ignorante a respeito dele. As pessoas pensam que sabem quem é Jesus, o que é a igreja, o que significa ter fé, e não estão interessadas. Precisamos ajudar as pessoas a recuperar uma visão revigorada da verdade – para que vejam Jesus pela primeira vez e realmente o vejam; para que vejam a realidade do pecado, a beleza e a desolação do mundo e não façam vistas grossas. Jesus disse que, a menos que nos tornemos como crianças, não podemos entrar no Reino dos céus. Ver as coisas de outra maneira é parte do que significa ser como uma criança, ou seja, olhar para a criação de Deus e vê-la como sua obra artesanal, ser capaz de ler as palavras das Sagradas Escrituras e ser profundamente tocado a respeito daquilo que encontramos.
Boas histórias e boas poesias podem nos ajudar a ver com mais clareza quando fechamos o livro e reingressamos à vida comum. Deste modo, precisamos, para o trabalho da apologética, de histórias que permitam as pessoas reconhecerem em suas próprias vidas o potencial de serem feitas integrais; para que casamentos, famílias e amizades sejam saudáveis e moldados como Deus os fez para ser; para que o nosso “pão de cada dia” seja provado e saboreado uma vez mais; para a possibilidade do amor e perdão divinos.
O conceito de Tolkien de recuperação também se aplica às próprias palavras que usamos no diálogo apologético. As palavras que usamos para falar sobre a fé frequentemente não significam o que acreditamos que significam aos nossos ouvintes. Um jovem ateu que tem lido os livros de Richard Dawkins, Daniel Dennett e Christopher Hitchens, e que talvez tenha sido exposto a expressões mais superficiais e sentimentalizadas da fé cristã, não compreende o que queremos dizer com palavras como “Deus”, “fé”, “oração”, “ressurreição” e assim por diante.
Alguém que esteja convencido de que “Deus” significa “um velho homem no céu” teria toda a razão de considerar isso ridículo. Para tal pessoa, os argumentos para a existência de um velho homem no céu são autoevidentemente falsos, dignos apenas de deboche. O que esse ateu precisa é perceber que cristãos não acreditam simplesmente em uma figura de pai no céu dentre muitas opções (em contraste a Zeus, por exemplo), mas, em vez disso, que a palavra “Deus” utilizada pelos cristãos significa “o fundamento de todo ser”. Deus é a própria existência ou, como Ele diz a Moisés, “EU SOU”. Mais argumentos e definições de dicionários não irão ajudar nessa situação. Se nosso jovem ateu já está convencido de que sabe o que Deus significa, ele não irá prestar muita atenção a mais argumentos. O que ele precisa é ver a ideia de uma outra maneira.
Michael Ward resume o problema de maneira muito satisfatória em seu ensaio “The Good Serves the Better and Both the Best”. Ele escreve:
“Não é bom argumentar em favor de ‘Deus’ ou de ‘Cristo’, da ‘expiação’ ou até mesmo da ‘verdade’ até que o apologista tenha mostrado, ao menos em um nível mais básico, que esses termos possuem um sentido real. Caso contrário, eles serão meros contrapontos em um jogo intelectual, deixando muitos leitores insensíveis. Do mesmo modo, argumentos apologéticos pela autoridade da ‘Igreja’, da ‘Bíblia’, da ‘experiência’ ou da própria ‘razão’ devem ser percebidos de maneira imaginativa antes de começarem a produzir tração na razão do leitor, quanto mais em sua vontade.”[19]
Histórias podem ajudar os leitores a “perceber de maneira imaginativa” o sentido das palavras que usamos e, assim, tratá-las além de meros “contrapontos em um jogo intelectual”. Após ler em O Senhor dos Anéis a respeito dos Ents, Barbárvore e os outros pastores das árvores, alguém poderia olhar para uma árvore comum, um pinheiro ou um carvalho e pensar: como uma árvore é realmente extraordinária! Um leitor que fique comovido com o autossacrifício de Frodo e com a realeza de Aragorn está preparado para responder de maneira mais imediata, de modo mais intuitivo, a ideias de sacrifício e redenção e à imagem de Cristo, o Rei, quando ouvirem-nas nas Escrituras. Tolkien nos mostra como uma história pode ajudar a recuperar o sentido de palavras e ideias que são vitalmente importantes para a apologética.
A segunda função da fantasia, argumenta Tolkien, é o Escape. Deste modo, devemos agora abordar a acusação de que o “escape” oferecido pela fantasia é uma experiência imatura e até mesmo antissocial. Histórias sobre reinos que nunca existiram, ameaçados por monstros imaginários e que são resgatados por meio de magia, parecem encorajar um tipo de absentismo emocional ou social das questões sérias da “vida real”. Pode ser bom que crianças leiam sobre cavaleiros e magos, mas um adulto deveria afastar-se disso e graduar-se com a leitura de romances que tratam a vida como ela realmente é.
Entretanto, tal objeção não se sustenta. Para começar, as histórias que acontecem no “mundo real” podem oferecer ao leitor uma visão sobre o mundo que é irrealista em sua própria maneira – assim como qualquer fantasia envolvendo elfos e magia –, ou seja, um mundo em que a violência resolve problemas, em que festas regadas a drogas são interminavelmente empolgantes, em que a riqueza e o poder estão facilmente disponíveis, em que intrigas acontecem sem consequências turbulentas gerando famílias destruídas e amigos traídos, e em que mulheres fazem com que homens maus se tornem bons por meio do poder de seu amor (ou por meio do sexo).
É muito mais provável que o “escapismo”, em seu sentido negativo, seja produzido por aquilo que C. S. Lewis chamou de literatura “superficialmente realista”, que apresenta “coisas que poderiam realmente acontecer, que deveriam acontecer, que teriam acontecido se o leitor tivesse tido a justa oportunidade”.[20] É muito mais provável que tal escapismo – e não a fantasia – provoque inveja, descontentamento improdutivo e uma recusa em se lidar com a vida e com os relacionamentos que uma pessoa realmente possui. Ele pode conceder um brilho de entusiasmo ou de normalidade ao comportamento que na vida real é destrutivo: adultério, uso de drogas e relacionamentos abusivos. É claro que a fantasia pode ser escapista nesse sentido negativo, mas isso seria uma característica da fantasia ruim, assim como é uma característica da literatura ruim de qualquer gênero ou da arte ruim em qualquer forma.
Sentir prazer no “escape” oferecido pela literatura de fantasia não é um sinal de imaturidade ou de superficialidade. Longe disso. Dependendo das circunstâncias de alguém, o escape pode ser sensato ou até mesmo heroico – do mesmo modo como pode acontecer na “vida real”. Como explica Tolkien:
“Por que desdenhar um homem se, estando na prisão, ele tenta sair e ir para casa? Ou se, quando não pode fazê-lo, pensa e fala sobre outros assuntos que não carcereiros e muros de prisão? O mundo exterior não se tornou menos real porque o prisioneiro não consegue vê-lo.”[21]
Ademais, escapar significa reconhecer tanto a existência de algo negativo do qual se quer escapar como algo positivo para o qual se quer escapar. Assim, a experiência da fantasia está em um diálogo constante com a realidade como ela é, como ela poderia ou como deveria ser. O leitor que escapa para uma boa fantasia não retorna à “vida real” sem transformações.
A terceira função da fantasia que Tolkien discute é aquilo que ele chama de “consolo” e, acima de tudo, o “consolo do final feliz”. Ele cunha o termo eucatástrofe para designar tal ideia, que significa “a boa catástrofe”, ou seja, o final feliz inesperado que nos dá um profundo sabor de alegria. Tolkien argumenta que a reação que temos a um final feliz é, na verdade, algo que nos aponta para a verdade do evangelho.
A relevância da visão eucatastrófica de Tolkien para a apologética começa com o fato de que ela inclui, necessariamente, o reconhecimento da catástrofe. Vivemos em um mundo despedaçado, caído, e sofremos os efeitos do pecado. Qualquer apresentação do evangelho que tente ignorar tal realidade será banal, rasa e, em última instância, tanto desinteressante como pouco convincente. Jesus é o nosso amigo, mas não o nosso “amigão”. Temos esperança, mas nossa fé não é um tipo de passe livre do sofrimento.
O problema do mal é uma das objeções mais comumente citadas contra o cristianismo. Como é possível que um Deus amoroso permita atrocidades, desastres naturais, violência e opressão? Há muitas boas respostas a esta objeção, incluindo aquelas que se baseiam nas consequências da dádiva do livre-arbítrio dada por Deus a nós. Na apologética, porém, muitas vezes saltamos imediatamente para os argumentos intelectuais, de um modo que parece ignorar ou dispensar a realidade do sofrimento.
A ficção cristã popular possui um problema diferente. Muitas vezes ela apresenta a fé de uma maneira sentimentalizada, com o receio de enfrentar questões difíceis ou de apresentar uma imagem mais matizada da realidade – o que equivaleria às versões literárias e cinematográficas das pinturas de Thomas Kincade, que possuem o mesmo grau de envolvimento artístico. Em contraste, a literatura secular (os filmes e a televisão ainda mais) pende para o lúgubre, o distópico e é despida de rédeas morais. O resultado é que nos deparamos com dois extremos: um foco sombrio implacável sobre a desolação do mundo ou um tratamento sentimental, simplista, que nega a desolação do mundo. Não há muita coisa entre os dois extremos.
Se nos movermos de modo muito apressado para as asserções de fé, sejam elas intelectuais ou emocionais, podemos cair na armadilha da arrogância intelectual fria ou da inacreditável piedade sentimental. Devemos reconhecer a realidade das trevas e do sofrimento e as dificuldades que cercam a fé em nossa cultura hoje, mas não podemos permanecer no lugar sombrio. A segunda metade da visão eucatastrófica inclui a reversão, ou seja, a possibilidade de uma “boa catástrofe”, a mudança na história que conduz à alegria; à alegria que está além dos muros do mundo.
Aqui podemos ver parte do dom de Tolkien. Assim como seu amigo Lewis, Tolkien era capaz de mostrar uma visão convincente e atrativa da fé cristã, precisamente porque sua fé – e, deste modo, sua visão literária – incluía o sombrio, mas ele sabia que a luz triunfava. Tolkien perdeu seus pais na infância. Ele lutou nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial onde a maior parte de seus amigos mais próximos foi morta. Ao longo de sua vida, ele experimentou tensões por conta de problemas de saúde e preocupações financeiras. Tendo em vista que ele conhecia o sofrimento, Tolkien era capaz de mostrar uma Alegria convincente: seu trabalho soa verdadeiro.
Entretanto, podem dizer os ateus, qual é o sentido de um final feliz se ele for apenas inventado? Claro, um final assim o faz sentir bem por um momento, mas ele não muda a verdade. Toda a narrativa cristã é apenas uma ilusão. Certo? Não tão rápido. Tolkien considera a seguinte questão: por que temos esse enlevo do coração diante de um final feliz? Poderia ser devido ao fato de que, em um nível fundamental, ele realmente é verdadeiro e estamos capturando um vislumbre dele? É exatamente isto que Tolkien argumenta. Toda a história humana é uma narrativa, diz Tolkien, e ela possui um final feliz:
“O Nascimento de Cristo é a eucatástrofe da história do Homem. A Ressurreição é a eucatástrofe da história da Encarnação. Essa história começa e termina em alegria. Tem preeminentemente a ‘consistência interna da realidade’. […] Essa história é suprema; e é verdadeira.”[22]
A apologética literária tem muito a oferecer em nosso labor apologético. Não se trata simplesmente da mesma coisa de se elaborar um argumento em forma de história. Ao invés disso, ela mostra a verdade e nos ajuda a desejá-la. Ela não é um substituto do ensino da doutrina, mas nos ajuda a enxergar o que significa a doutrina, por que ela importa e como podemos vivê-la.
A grande obra de Tolkien, O Senhor dos Anéis, é um exemplo preeminente de apologética literária, assim como As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, mas de uma maneira diferente.[23] Entretanto, nem todos gostam de fantasia. Nem todos se identificarão com tais obras, mas, de qualquer forma, quanto mais histórias diferentes, variadas, poemas, filmes e obras de arte que compartilhem a luz de Cristo de maneiras diferentes, melhor. Assim, como apologistas, devemos aprender a usar bem as grandes obras que temos, como O Senhor dos Anéis e As Crônicas de Nárnia. Também devemos encorajar escritores cristãos e artistas para que produzam mais obras para novos públicos, compartilhando as boas novas de maneiras revigoradas. Aqueles que possuem dons criativos devem usá-los; aqueles que não têm, podem e devem cultivar um bom gosto, altos padrões e encorajar seus irmãos e irmãs em Cristo para que produzam trabalhos criativos.
Deixe-me encerrar com as próprias palavras de encorajamento de Tolkien aos artistas, que constam no final de seu ensaio “Sobre Contos de Fadas”:
“Mas no reino de Deus a presença do maior não deprime o pequeno. O Homem redimido continua sendo homem. A história, a fantasia ainda prosseguem, e devem prosseguir. O Evangelium não ab-rogou as lendas; ele as consagrou, em especial o ‘final feliz’. O cristão ainda precisa trabalhar, com a mente e com o corpo, sofrer, ter esperança e morrer; mas agora pode perceber que todas as suas inclinações e faculdades têm um propósito, que pode ser redimido. É tão grande a generosidade com que foi tratado que talvez agora possa, razoavelmente, ousar imaginar que na Fantasia ele poderá de fato ajudar o desabrochamento e o múltiplo enriquecimento da criação. Todas as histórias poderão tornar-se verdade; e no entanto, finalmente redimidas, poderão ser tão semelhantes e dessemelhantes às formas que lhes damos quanto o Homem, finalmente redimido, será semelhante e dessemelhante ao decaído que conhecemos.”[24]
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[1] C. S. Lewis, “Bluspels and Flalanspheres: A Semantic Nightmare,” in Selected Literary.
[2] J. R. R. Tolkien, “Sobre Contos de Fadas” in: “Árvore e Folha”, Ed. Martins Fontes, 2013, p. 53.
[3] A versão final desse ensaio foi publicada postumamente em 1983, na coletânea The Monsters and the Critics and Other Essays. Para mais informações sobre a história do texto, veja: “The History of ‘On Fairy-stories’ in Tolkien On Fairy-stories. Ed. Verlyn Flieger and Douglas A . Anderson. London: Harper Collins, 2014.
[4] Verlyn Flieger, “Introduction,” Tolkien On Fairy-stories. Ed. Verlyn Flieger and Douglas A. Anderson (London: HarperCollins, 2014), 9. Note que essa é a edição final do ensaio, contendo todas as suas variantes e incluindo um comentário muito útil sobre o texto.
[5] Tolkien, “Sobre Contos de Fadas,” p. 10.
[6] Ibid., p. 14.
[7] Ibid., p. 36.
[8] Ibid.
[9] Tolkien usa a analogia de uma partida de críquete para ilustrar seu argumento. Tomei a liberdade de deixar seu exemplo mais contemporâneo.
[10] Ibid.
[11] Ibid.
[12] Ibid., p. 45.
[13] Ibid., p. 47.
[14] Ibid.
[15] Ibid., p. 54. Veja também o poema de Tolkien intitulado de “Mythopoeia”, onde há uma citação de um trecho em “Sobre Contos de Fadas”. No poema, ele desenvolve a importância teológica da fantasia criativa. Ele aparece em “Árvore e Folha” (São Paulo: Martins Fontes, 2013).
[16] Ibid., p. 55-56.
[17] Ibid.
[18] Ibid.
[19] Michael Ward, “The Good Serves the Better and Both the Best”, in Imaginative Apologetics, ed. Andrew Davison (Baker Books, 2012), p. 72.
[20] C. S. Lewis, “On Three Ways of Writing for Children,” in On Stories and Other Essays on Literature. Ed. Walter Hooper (Orlando, FL: Harcourt, 1982), p. 38. [“Três Maneiras de Escrever para Crianças”, publicado como apêndice in “As Crônicas de Nárnia”, volume único, São Paulo: Martins Fontes].
[21] Tolkien, “Sobre Contos de Fadas”, p. 58.
[22] Ibid., p. 69.
[23] Para uma análise minuciosa sobre como “As Crônicas de Nárnia” dizem respeito a Cristo, veja a obra Planet Narnia: The Seven Heavens in the Imagination of C. S. Lewis (OUP 2008), de Michael Ward.
[24] Tolkien, “Sobre Contos de Fadas”, p. 70.
Traduzido por Jonathan Silveira.
Texto original: The Gospel as a Good Catastrophe: J.R.R. Tolkien’s Literary Apologetics. Houston Baptist University.
Holly Ordway é professora de inglês e diretora do programa Master of Arts em apologética na Houston Baptist University. Obteve seu PhD em língua inglesa na University of Massachusetts Amherst e seu MA em apologética cristã na Biola University. É autora da obra “Apologetics and the Christian Imagination: An Integrated Approach to Defending the Faith”. |
6 Comments
Maravilha!
á..amava essa editora vida nova ..agora depois dessa matéria então…
já..amava essa editora vida nova ..agora depois dessa matéria então…
Um dos melhores textos que li recentemente!
Já amava A Trilogia LOTR por conter semelhanças com personagens da Bíblia, lendo esse texto afirmou mais ainda minha admiração por esta incrível obra!!!
Muito legal!!