Deus vai ao cinema em 2018 | Silas Chosen

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A arte é a grande tradutora.

Porque não podemos simplesmente falar, com tanta clareza, amplitude ou assertividade, de tudo o que acontece dentro de nossas cabeças e nossas almas, então precisamos dessa ferramenta para traduzir. E, algumas vezes, encontramos nas artes a tradução para coisas que nem sabíamos que estavam lá.

Muito do cinema fala, diretamente, tangencialmente, poeticamente, sobre aquelas coisas inexprimíveis e complicadas que envolvem a fé, a dúvida, o medo, a ética, a vida, a morte, Deus, o diabo, nós mesmos, tudo isso misturado.

Então fomos até lá e tentamos trazer um pouco disso para este fino estabelecimento online. Neste mês até tivemos um texto sobre um VIDEO GAME, Deus me drible.

Porque a arte não tem forma. E o que ela transmite, normalmente, também não.

Ano passado tivemos um artigo sobre os filmes do ano que mais tocavam nos assuntos que mais interessam aos patronos deste portal. É difícil ter um filme que fale diretamente de teologia ou apologética. E Deus sabe que quanto mais Gospel o teor do filme, maiores as chances de ele passar grosseiramente longe de despertar qualquer interesse (quiçá proximidade com o Cristianismo) (Vou deixar claro que HÁ EXCEÇÕES. Elas só estão escondidas numa caverna esperando serem descobertas).

Mas cavando, mudando o ponto de vista, olhando por lados diversos, nós encontramos algo ali. Através da conversa, da análise, da limpeza da cabeça e da abertura da mente, a gente vê que Deus está em praticamente tudo. Como Ele disse que estaria.

2018 foi um ano excelente para o cinema. Um dos melhores da década. Logo, devemos ter muito sobre o que conversar.

O que Deus viu no cinema, quando foi lá gastar seus dinheirinhos pra pagar uma inteira e o balde de pipoca?

Os filmes estão em ordem alfabética, sem hierarquia nenhuma.

(Todos são filmes lançados originalmente em 2018. Alguns ainda não tiveram lançamento decente (ou algum) em terras brasileiras. Não escrevi um artigo completo sobre cada um deles, mas é possível que explore melhor o que eles têm a dizer no futuro próximo aqui no Tuporém).

Aniquilação

O diretor Alex Garland, do excepcional Ex Machina, adapta o livro de Jeff VanderMeer para as telinhas do Netflix. Mas, ao invés de uma adaptação direta, ele pega alguns temas e acontecimentos e faz meio que uma “adaptação espiritual” do livro.

Um grupo de mulheres, pesquisadoras militares, precisa entrar num terreno dominado por uma força biológica aparentemente alienígena, em busca dos grupos anteriores e de alguma explicação para o que está acontecendo. E lá dentro encontram um mundo completamente transformado por um tipo de “caleidoscopia genética”. O mundo está evoluindo de uma maneira descontrolada, perigosa, mas não menos bela.

Ancorados na jornada de luto e dúvida da personagem de Natalie Portman, acompanhamos as mulheres, cada uma lidando com algum tipo de perda, de necessidade de abandonar o que havia antes e abraçar a evolução não só pessoal, mas aquela que o lugar está proporcionando. Nenhuma delas jamais será a mesma, de maneira extrema, violenta e magnífica.

Um sci-fi mais interessado em sentimentos e cores do que em plot e narrativa. Não é um filme fácil, e é bem possível que você não entenda nada do que está acontecendo (nem sei se eu entendi). Mas o que o filme quer não é o seu entendimento. Ele está atrás de outra coisa.

A balada de Buster Scruggs

Os irmãos Ethan e Joel Coen já adaptaram a Torá de uma maneira fatalista com o ótimo Um Homem Sério. Aqui, adaptando uma série de contos sobre o Velho Oeste, eles compartilham alguns dos temas com o outro filme, nunca largando a veia niilista que imprimem em quase todos os seus trabalhos.

Seis histórias separadas que têm em comum a temática da morte, trazida normalmente pela dificuldade de viver numa terra de extremos, sem lei, sem perdão nem piedade. E a maneira como a morte chega normalmente é surpreendente, e joga um novo significado sobre tudo o que passou antes.

Além de brincar com o tema de diversos pontos de vista, os Coen também brincam com linguagem. Vão do surreal ao poético, ao humor negro e até mesmo a um musical. Sempre em busca de um sentido que não está lá, e é exatamente por isso que A Balada de Buster Scruggs é tão excelente.

Num mundo sem sentido, qual o valor da vida que precede a morte?

Hereditário + Um lugar silencioso

Juntei os dois, apesar de serem filmes completamente diferentes, por conta de seus temas.

Um Lugar Silencioso é um thriller de horror de monstro. Uma família está ilhada numa fazenda, cercada há anos por monstros que trucidam qualquer um que fizer qualquer barulho. A vida inteira deles foi transformada numa existência de silêncio, e ainda assim o pai luta para dar uma vida normal para seus filhos e sua esposa.

Hereditário é um horror psicológico cheio de satanismo e de fantasmas. Uma família começa a descobrir que a recente falecida avó tinha… Coisas no sótão. E essa coisas estão famintas.

Não só os dois filmes são filmes dirigidos por diretores que estão começando a carreira (Ari Aster em Hereditário e John Krasinski em Um Lugar Silencioso), mas também são angustiantes, criativos, usando ao máximo o Cinema e todas as suas partes para atingir você num nível emocional como há muito tempo não se via. O trabalho de som de ambos os filmes é impecável. Enquanto ambos têm atuações incríveis, Toni Collette, em Hereditário, entrega uma das melhores crises de dor, luto e confusão da década. Seu trabalho é inesquecível e apavorante. E, enquanto Hereditário tem um potencial muito maior pra destruir a sua paz, ambos são muito efetivos no que almejam, sendo experiências sensoriais fascinantes.

E ambos falam sobre o mesmo tema.

Em Hereditário, a família é um mistério tenebroso. O título entrega estrategicamente o principal elemento temático. Nós herdamos dor, sofrimento e angústia de nossos pais e dificilmente conseguimos escapar. O filme metaforiza isso com um demônio muito sinistro, mas a mensagem é clara: o abuso (físico, psicológico) que imprimirmos aos nossos filhos vai causar sofrimento até para nossos bisnetos.

Já em Um Lugar Silencioso, a família é uma salvação. O personagem interpretado pelo também diretor do filme, John Krasinski, tem na família o último bastião de segurança emocional e espiritual. Sua esposa (interpretada pela esposa dele na vida real, Emily Blunt) está grávida, e trazer uma criança a um mundo cruel, assassino e impiedoso é para ambos uma linguagem de esperança. O amor é um elo incrivelmente mais forte que o medo e que a morte, e o final do filme reforça isso de uma maneira sincera e tocante.

O lado niilista e o lado esperançoso da família, em dois dos melhores filmes do ano.

Infiltrado na Klan

O diretor Spike Lee raramente usa o cinema para falar de algo que não seja o racismo.

Muitas vezes ele conta histórias bem pessoais, completamente urbanas, sobre uma comunidade, sobre como a sociedade em geral massacra o indivíduo e como a bota do racismo institucional não liga em quem pisa.

Leia também  Um senso não-messiânico de falta de destino | Carl Trueman

Em Infiltrado na Klan, Spike Lee usa toda a sua experiência e talento para pregar uma peça na gente. Sim, o racismo institucional americano anda de mãos dadas com o conservadorismo de lá, o que infere que também está atrelado a muito do evangelicalismo americano. Sim, os tempos recentes mostraram como essas relações ainda são fortes. Mas, durante o filme (na maior parte do tempo uma comédia policial com atores excepcionais) você pensa de outra forma. A trajetória do filme, completamente embasada numa narrativa clássica (nem sempre a linguagem favorita de Spike Lee), vai desarmando você. Já que o filme é baseado em fatos reais, você pensa que está entendendo a história de uma maneira. Quando chega perto do final, tudo está bem. Os mocinhos venceram. O mundo não tem mais racismo.

E então chega o final. E aí é onde aquele Spike Lee que a gente conhece ergue-se e não deixa você esquecer que o mundo ainda precisa de muito conserto, de muita cura, de muita gente boa não desistindo de lutar o bom combate.

Nasce uma estrela

As cicatrizes do velho homem estarão com a gente até o dia em que deixarmos este plano.

Algumas pessoas iluminadas conseguem usar a arte para exorcizar essas dores. E o nosso mundo transformou arte em produto, expressão em likes. No meio disso tudo, enquanto um artista está enfrentando o fim de uma era, ele descobre o amor e tanto um novo nível de autenticidade e beleza como degraus mais baixos do próprio ser.

Bradley Cooper dirige seu primeiro filme de forma corajosa, sem ter tempo para máscaras ou melodrama inconsequente.

Mandy

Nicolas Cage é uma força de criatividade no mundo da atuação. E o que muito da crítica concorda é que ele precisa do projeto certo. Em filmes como O Feitiço da Lua, Senhor das Armas, Despedida em Las Vegas e Adaptação, vemos que ele não tem só talento. Ele também tem magnetismo, explosão, amplitude. Ele só virou um meme porque 1 – Ele aparentemente não tem medo de nada e 2 – Ele precisa do projeto certo.

Mandy é quase um filme de horror experimental. O diretor Panos Cosmatos quer falar muito mais usando sentimentos do que palavras. Formas, cores e um dos últimos trabalhos do falecido e excepcional compositor Jóhann Jóhannsson nos envolve numa jornada de vingança, lisergia e violência, capitaneada por uma atuação de Cage que, ainda que bem extrema, é cheia de dor e coração.

Mandy é um filme que fala de perda, de raiva e de escolher um messias enganador, e sobre as consequências disso. Mas não deixe a estética bizarra e o plot simples afastar você. Mandy é uma experiência quase mística.

Vingadores – Guerra infinita

Ok, Vingadores só está aqui porque rola um “arrebatamento” na prática.

Pantera Negra

Uma das maiores máculas na história da humanidade, talvez uma da qual nunca nos recuperemos, é o jeito que tratamos os povos africanos ao longo dos séculos. Muitas vezes escondidos atrás de uma interpretação satânica da Bíblia, a nossa civilização raptou, torturou e assassinou milhões de pessoas, tudo para criar o mundo em que vivemos.

Ter um filme DA DISNEY falando isso abertamente na tela de cinema, de maneira clara e direta, é algo que ninguém jamais pensou que veria.

Em Thor Ragnarok, já tivemos um pouco de comentário sobre colonialismo, mas ali esse comentário não estava misturado às dúvidas e às jornadas dos personagens. Mas aqui acompanhamos dois primos. Um deles é o rei de uma nação secreta africana, que tem medo de revelar-se ao mundo especialmente por conta de como o mundo tratou (e ainda trata) os membros da raça negra. O outro é um guerreiro dessa nação, abandonado do lado de fora, que quer nada além de justiça contra o mundo. Sangrenta, vingativa, terrível, nada além de justiça.

Chamar o diretor de Creed e Fruitvale Station – A Última Parada, Ryan Coogler foi um acerto incrível. No meio de tiroteios, superpoderes, cenas de ação, tudo bem no estilo Marvel, presenciamos uma discussão ética mais complicada que o de costume, uma que é completamente necessária para toda a humanidade. Nós estamos empenhados em salvar o mundo, e é nossa obrigação prestar atenção em filmes como esse, um alerta para como a história (e até Deus) vai nos julgar de acordo com o lado que escolhermos.

Paddington 2

O urso Paddington é um bálsamo para a dureza do mundo, mas ele não tira os pés do chão.

A fábula pode ser fantasiosa (animais falantes), e pode até ser acusada de ser otimista (animais falantes com amigos). Mas a bondade de Paddington não vem de um lugar de superioridade moral, nem de algum vitimismo (algo meio incomum, mas não sem precedentes). Vem de um lugar de inocência e de sinceridade. A progressão da história, que almeja alvos mais altos ao abordar não só o impacto positivo de imigrantes, mas o sistema carcerário e até o conceito de “até quanto podemos recuperar um homem”, nos envolve e nos transforma em crianças, ainda que crianças bem atentas.

Tantos conceitos profundos expressados com tanta criatividade, e no centro, a ideia imortal de que os mansos herdarão a Terra.

Won’t you be my neighbor

Fred Rogers foi um dos mais influentes pastores de sua geração, embora tenha passado muito longe dos palcos e do alcance evangelístico de um Billy Graham.

Rogers, ao entender pela primeira vez o poder da televisão, largou o pastorado para atender a outro chamado divino. Ele foi ser apresentador de programas infantis. E por décadas ele apresentou não só histórias, variedades, personagens, músicas e lições.

O documentário traz o nome da canção que Rogers cantou por décadas, e é uma emocionante e poderosa janela para dentro do processo de pensamento de um dos maiores gênios morais da mídia massificada norte-americana. Rogers mudou algumas gerações e pode muito bem ter sido responsável por salvar a saúde de tanta gente, simplesmente ensinando princípios de mansidão, amor e decência para as crianças.

Um documentário perfeito para começar a conhecer a obra desse pastor, aquele que, discutivelmente, mais colocou Jesus na frente das crianças americanas por décadas.

E é isso. Estes são os filmes que mais me fizeram pensar nos assuntos pertinentes à fé, moralidade, crença, antropologia, valores, ética e, às vezes, pura diversão.

E você, quais filmes em 2018 te fizeram pensar?

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

6 Comments

  1. Joao Miu disse:

    Ótimo artigo. A crítica cristã de cinema é algo grandioso, porém ainda raro.
    Só debateria com o autor a afirmação de que os irmãos Cohen são niilistas. Na, verdade, eles são dos poucos em Hollywood fincadoa em um material moral absoluto.
    É por isso que a série “Fargo” da Netflix, do excelente diretor Noah Hawley, ridiculariza o niilismo de Albert Camus em um de seus episódios. A série é toda inspirado nos Cohen e talvez uma das melhores feitas até hoje pela TV americana.

    • Silas Chosen disse:

      Oi João! Obrigado por ler e pelo comentário!

      Tentamos sempre fazer o melhor em relação à crítica, e é legal receber feedbacks!

      Quanto ao niilismo dos irmãos Cohen, eu acredito que A Balada de Buster Scruggs é um exemplo bacana de como eles enxergam a vida, a morte e a falta de sentido entre ambas. Mas não é o melhor nem o mais claro.

      Filmes como Onde os Fracos Não Tem Vez criam até uma estranheza linguística em termos dos elementos que eles escolhem para compor a narrativa, expressando uma inexistência de sentido.

      Mas o melhor que eu diria é Um Homem Sério, que é um filme firmemente embasado na Torá. Nele eles usam não só elementos narrativos, mas também visuais da vida do rei Davi e de passagens do Eclesiastes para adaptar, quem diria, o livro de Jó.

      Mas é um livro de Jó onde Deus não responde, onde não há redenção, e a ligação de causa e consequência entre os fatos da vida do protagonista são somente sugeridos. Na verdade, eles querem mesmo explorar o niilismo, a inexistência de sentido, mesmo num ambiente de fé. E praticamente tudo o que escolheram para fazer esse filme, do casting até a fotografia, revela isso. Em especial o final.

      Assim como em Buster Scruggs, o final do filme é um retrato muito cinzento da vida e do que acontece quando procuramos sentido nela.

      Quando eles não estão fazendo uma comédia escrachada (e as vezes até nesses casos), os Irmãos Cohen abrem um baú de niilismo. E isso é um dos motivos pelo qual eles são tão interessantes, tanto para o cinema quanto para a teologia. Isso e o trabalho usual com o Roger Deakins, um mestre.

      Quanto à série Fargo, nunca a assisti, mas sei que os próprios irmãos Cohen não a escreveram. É um show muito mais do Noah Hawley, que definitivamente não quer conversar sobre niilismo, está interessado em outras coisas. A primeira temporada de LEGION, também criada por ele, está no Netflix e é excelente.

      Muito obrigado pelo comentário! Abraços!

  2. Joao Felipe disse:

    Valeu a explicação, Silas! Vou assistir a um homem sério com essa tua perspectiva para ver se chego a mesma conclusão. Realmente, eu citei uma obra do Hawley para sugerir um antiniilismo nos Coen. Isso não foi bom. Mas no recente “Hail, Ceaser”, dos próprios Coen, a fé é colocada como superior à afetação comunista e à loucura hollywoodiana. Um niilista fazer uma ode à fé parece controverso. Mas talvez eu tenha descuidado de algo.
    Abraço!

    • Silas Chosen disse:

      Eu não enxergo “Ave César!” como colocando a fé em superioridade a nada. Existe uma diferença entre “personagens dizendo” e “diretores dizendo”, já que personagens dizem com ações e palavras, e diretores dizem com personagens, palavra, edição, ângulo de câmera, iluminação, música, ritmo, edição (edição até muito mais que os outros).

      E mesmo que fosse. O que impediria os Irmãos Cohen de 1- mudarem de ideia ou 2- simplesmente mudarem o ângulo da linguagem deles? Nenhum homem é uma ilha, e muito menos nenhum artista. Eles podem querer buscar uma coisa um pouco mais esperançosa num tipo de filme (e de fato o fazem: Fargo é uma bagunça em termos de vitórias e derrotas, mas é na família e até mesmo na simplicidade de vida que se encontra um refúgio e até uma salvação, em contrapartida com a ganância, ou até em E Aí Meu Irmão, Cadê Você?, que também é um filme esperançoso, que bota novamente a positividade no lado da família, numa redenção, e até na música) e no filme seguinte irem completamente a favor de uma ausência completo de esperança, sentido ou lógica na vida (Um Homem Sério, Onde Os Fracos Não Tem Vez, Queime Depois de Ler).

      Esses diretores tem muito a falar sobre muito.

  3. Joao disse:

    Oi, Silas! Depois de seus comentários, aguardei uma oportunidade para ver “um homem sério” e formar uma opinião sobre o alegado niilismo do filme. Levou um bom tempo. Enfim.
    Grande filme! Muito interessante. De fato, a leitura niilista é possível (talvez provável) e compreendo as razões por que muitos viram essa perspectiva nessa película.
    Mas vou ser teimoso mais uma vez em abrir para uma interpretação menos desesperançosa. Para mim, o filme não fala tanto sobre a ausência de Deus ou sentido, mas fala sobre o vazio de determinada experiência judaica moderna. O filme é um libelo étnico e ao que tudo indica autobiográfico. Acusa de niilismo um estilo de vida judaico burguês, mecânico e formal. A ênfase étnica fica clara quando os judeus são contrastados com personagens coreanos (ou chineses, não recordo) e americanos broncos.
    Se “Ave César”, como penso, foi uma ode à fé. Um homem sério é uma ode ao amor. Mas qual “amor”? Aqui fica a dúvida. O lema musical talvez sugira uma atitude existencialista, segundo o qual não haveria sentido lá fora e cabe a nós criamos nossos amores e nossos sentidos.
    Vi de outra forma. A crítica ao judaísmo burguês é também uma crítica a uma teologia judaica retributiva e a um Deus lido somente sob as limitações do Antigo Testamento: um Deus de culpa (o menino está sempre fugindo da dívida que não consegue pagar), castigo e ritualismo, que não se mostra como o Deus de amor.
    Os Coen sabem, porém, que amor é o tema do Deus encarnado, feito homem, rejeitado pelos judeus, crido no mundo. Ele pagou a dívida, e o fez com seu amor e pregando o amor redentor do Pai. Mas como Cristo? Não notei nada disso no filme? Bem, talvez passou despercebido. Na cena do bar mitzvah, o que sai da boca do rabino que se desequilibra ao erguer as Escrituras, ao fim da leitura do menino-protagonista? Ele solta, em plena sinagoga, um sintomático “Jesus Christ”.
    Pode ter sido fruto de um enxerto casual de diretores puramente existencialistas? Pode. Mas, se for, os Coen certamente hão de me perdoar. O máximo que terei feito é criar o meu próprio significado.

  4. Joao disse:

    Esbarrei com o artigo a seguir, que também defende Coens “religiosos”. The plot thickens. Abraços!
    http://religiondispatches.org/reality-as-revelation-hail-caesar-is-the-coen-brothers-most-religious-movie-yet/

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