As aventuras de Paddington – Herdeiros da terra | Silas Chosen

Uma casa para o Senhor: a importância da beleza para Deus | Philip Ryken
21/set/2018
Onde está o conflito? | Alvin Plantinga
17/out/2018

Você que tem mais de 30 anos talvez lembre de ter ido assistir O Rei Leão no cinema. “Um filme com animais falantes e com zebras, macacos, leões e um javali cantor”, o trailer parecia prometer. E, alguns anos antes de ver o primeiro filme da Pixar, e mais anos antes do primeiro filme da Pixar realmente te emocionar, você levou um choque. Porque, se prestou atenção em O Rei Leão, foi impactado. Havia até mesmo adultos saindo das salas de cinema abalados, secando as lágrimas.

O grande falecido crítico de cinema Roger Ebert define cinema da seguinte forma:

“Todos nós nascemos com uma certa bagagem. Somos quem somos: onde nós nascemos, quem nascemos, como fomos criados. Estamos meio presos dentro daquela pessoa, e o propósito da civilização e do crescimento é ser capaz de alcançar e empatizar um pouco com outras pessoas. E para mim, os filmes são como uma máquina que gera empatia. Deixa você entender um pouco mais sobre diferentes esperanças, aspirações, sonhos e medos. Nos ajuda a identificarmo-nos com as pessoas que estão participando dessa jornada com a gente.”

O cinema é talvez a maior ferramenta de entendimento que temos, e uma das grandes ferramentas de ensino. As coisas que um filme cheio de verdades emocionais, sociopolíticas, ou até, em menor escala, históricas, pode nos ensinar são valiosas. E como elas vêm impregnadas em uma narrativa, elas são capazes de ficar conosco o resto de nossas vidas. E como O Rei Leão e os filmes da Pixar mostram, mesmo filmes rotulados como “infantis” podem ser poderosas ferramentas de impacto.

Em 2014, o cinema britânico adaptou para as telonas um dos maiores sucessos de sua literatura infantil, e nenhum dos envolvidos poupou esforços para criar um clássico. A série de livros sobre o ursinho Paddington, criação de Michael Bond, é uma das mais queridas e importantes obras para crianças da Inglaterra. O diretor Paul King, egresso da TV britânica, foi escalado para roteirizar e dirigir a adaptação, e o resultado é incrível. Em 2017, ele repetiu a dose.

No primeiro filme, um urso (a voz de Ben Whishaw) perde o tio que o criou e imigra do Distante Peru para a Inglaterra, buscando a promessa de hospitalidade que um aventureiro havia feito à sua família. Lá, é adotado “temporariamente” por uma família típica britânica, que o batiza de Paddington e o leva para casa. Entre contratempos e confusões por conta de ser desastrado e um pouco azarado, o urso vai ao mesmo tempo fugindo de uma taxidermista com desejo de vingança (papel de… Nicole Kidman??) e vai ganhando espaço no coração de uma família que precisava se reconectar. O segundo filme mostra a saga de Paddington atrás de um presente para a tia, onde vai se envolver com um ator charlatão (talvez o melhor papel da vida de Hugh Grant) e até acabará preso.

Parecem filmes simples de sessão da tarde, se não fosse a qualidade impressionante com todos os aspectos deles. Não só a arte é inspiradora e expressiva, quase um filme de Wes Anderson, mas sem espaço para depressão alguma. Mas a narrativa é ágil, direta, não perde tempo e nos dá exatamente o necessário para entender os personagens e entrar na vida deles. E você precisa de um diretor e roteirista que sabe o que está fazendo para atingir este grau de foco. O elenco conta com inúmeros talentos da Grã-Bretanha, como Hugh Bonneville, Sally Hawkins, Peter Capaldi, Julie Walters, Imelda Staunton, Michael Gambon, Jim Broadbent. Basicamente um “Best Of”, uma continuação do trabalho de “dar emprego a todos os atores talentosos do Reino Unido” que a série Harry Potter começou.

A poesia da direção também impressiona. As soluções que Paul King criou para não só criar um mundo de fantasia bastante real, mas às vezes atravessar o limite e entrar na mente dos personagens, tudo de maneira didática, mas inteligente, cativam mais do que enjoam. No segundo filme, há uma sequência onde Paddington entra num livro de dobras que serve tanto para mostrar um pouco de maestria artística como para nos informar. Dar um pouco mais do estado emocional e mental, usando o imaginário da criança que há em Paddington.

Mas, de longe, a maior força dos filmes é o próprio protagonista e sua filosofia de vida. Paddington, sempre evocando os ensinamentos de sua tia, não perde a chance de lembrar que jamais trataria alguém mal. Acredita que, se for educado, se tiver atitudes tranquilas, se prezar pela paz, tudo estará bem. Soa simplista, mas os filmes realmente levam o urso a situações, normalmente cômicas, mas também conflitantes, onde seus princípios são questionados. Mas sempre acabam causando transformação à sua volta. É aqui onde a escalação de Ben Whishaw brilha, e o ator consegue criar um ícone de bondade comparável a Christopher Reeves em Superman.

Leia também  Batman V Superman: A Origem da Justiça – Onde as metáforas vão para morrer | Silas Chosen

Os filmes de Paddington mostram como ele transforma o mundo ao seu redor. No segundo filme isso fica mais claro, com todas as vidas que estão em volta dele sendo mudadas pelo pouco contato que tem com o urso, simplesmente porque ele não vê problema nenhum em nenhuma delas. Quer ajudar, quer ensinar, quer apoiar. Mais à frente, quando Paddington está preso, sua ausência também transforma o microcosmo onde vive, e funcionalidade de simpatia, amor e função social simplesmente deixa de existir. E na prisão também encontra pessoas definitivamente ruins, mas sua índole de procurar o melhor nelas quebra até o mais duro dos detentos (Brendan Gleeson, se esbaldando no papel), e novamente transforma o lugar e os princípios por trás de seus habitantes.

Paddington é um urso que tem objetivos simples, claros e completamente altruístas. Sua serenidade não significa a ausência de confronto (porque até mesmo o urso sabe confrontar pessoas, do seu modo), mas a presença de compreensão, com quem quer que seja. Até mesmo quem o vê como uma ameaça estrangeira, sem nenhum motivo para tal, é encontrado com a única coisa da qual o urso parece ser capaz, seu positivismo.

Observar este filme, uma resposta incomparável e elegante, tanto em técnica e arte como em mensagem, ao monte de lixo que Hollywood força goela abaixo de suas crianças (em resumo, filmes Live Action com personagens animados), traz uma paz curiosa. Não é só que ele é feito com graça, humor e imaginação, e que usa um elenco robusto como poucos diretores conseguem. Mas é notar a ideia de como uma coisa tão ausente do verbo cotidiano como a mansidão é capaz de fazer tanto. Naturalmente, é uma fantasia infanto-juvenil, mas lembra algumas coisas mais consistentes. Ou melhor, traz essa consistência, normalmente ausente neste tipo de filme.

O mago Gandalf, no filme O Hobbit, num dos raros momentos de lucidez de quem escreveu e montou aquele filme, diz que para derrotar a mais profunda das trevas, ninguém precisa de poder e de força, mas de atos de bondade diários, constantes e altruístas. Que essa é a origem da verdadeira coragem.

São os membros da família que descobrem uns nos outros a razão pela vida, e a solução dos problemas. É a recuperação de indivíduos presos, bandidos perigosos que se chocam com a humildade e a inocência, e aprendem a ser pessoas melhores. É a mensagem de que não existe país que não é feito de imigrantes, e que todo ser humano é um ser humano, e que deve ser tratado como tal. É a ideia de como a arte, a comédia, a culinária e a humildade podem salvar a alma tanto de uma pessoa como a de uma comunidade.

Paddington é um personagem que não tem nenhuma pretensão religiosa ou espiritual, mas talvez ele seja de longe o melhor exemplo de cristianismo prático num filme fácil de assistir e de compreender. Porque sua bondade, sua mansidão, sua recusa a tomar o caminho fácil (por estarem num personagem fisicamente e visualmente frágil e infantil), podem ser confundidos com fraqueza, mas são exatamente o oposto. Um indivíduo cristão que não transforma o seu redor da maneira como Paddington transforma seu cantinho de Londres, o sistema penitenciário britânico, e às vezes até a mente de pessoas inicialmente mal intencionadas, não está colhendo fruto algum.

Os filmes de Paddington são filmes para toda a família. E não são “filmes para crianças” por conta de sua magia visual, comédia pastelão ou por conta do animal falante bonitinho. Novamente, a Disney e a Pixar já nos provaram que crianças podem arcar com filmes que contém verdades profundas, ao mesmo tempo que adultos podem apreciar filmes leves e coloridos. As Aventuras de Paddington 1 e 2 são do perfeito tipo de filme que quebra essa barreira ilusória: são inteiramente bem feitos, inteiramente focados em contar uma história de narrativa progressiva e tecnicamente exemplar. Inteiramente engraçados e completamente inteligentes. Mas, além de tudo isso, o urso Paddington dá um passo a mais para dentro de nossa cultura, dentro de nossa alma. Ele nos lembra daquele momento em que um Pregador olhou para um monte de gente cansada e aflita.

E o Pregador disse que são bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a Terra.

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: