Humildade e culto a Deus | Luiz Adriano Borges

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Imagine o seguinte cenário: você vai à igreja, mas não está mais sendo “tocado”; acha que a pregação não está tendo profundidade e fica cada vez mais focado em picuinhas e detalhes. A oratória do pastor não é a melhor ou não é profunda teologicamente; preferia estar em casa lendo um livro que teria mais proveito; ou mesmo ouvindo pregação online do pastor preferido.

C. S. Lewis, 60 anos atrás, escreveu exatamente sobre isso. Escrevendo de forma satírica e ficcional em “Cartas de um diabo a seu aprendiz”, que traz cartas trocadas entre um diabo veterano e seu sobrinho aprendiz, Lewis trata do assunto. Mais especificamente na carta XVI, Maldanado diz a seu sobrinho Vermelindo que uma das maneiras de tentar o “paciente” é fazê-lo perder a humildade quando frequenta a igreja e torná-lo propenso a ir a um culto e ficar encontrando defeitos; fazer com que ele não procure mais retirar das coisas simples mensagens impactantes. Em uma passagem da missiva lemos o seguinte “conselho”:

“Meu querido Vermelindo (…)

Certamente você deve saber que, se uma pessoa não pode ser curada da frequência à igreja, o próximo passo é fazê-la percorrer toda a vizinhança à procura da igreja que mais lhe “agrade”, até que ele se torne um degustador ou especialista em igrejas (p. 89)”.

Lewis mencionou certa vez que ele teve a ideia de escrever esse livro após ter saído de um culto; provavelmente, em sua vida ele deve ter sofrido as mesmas tentações que narra em seu livro. Mas o que talvez ele não tenha previsto é a facilidade que teríamos de nos tornar “degustadores” de igreja: temos hoje internet, podemos montar o culto que sonhamos, massageando nosso ego. Louvor, pregação e até transações bancárias pela internet para dar oferta estão à distância de um clique. Se algo não me agradou, é só continuar na busca pela igreja “perfeita”. E não percebemos o quanto isso é uma estratégia demoníaca.

Maldanado continua em sua carta dizendo que “a busca por uma igreja que seja ‘do seu agrado’ torna o homem um crítico, quando o que o Inimigo [aqui o diabo se refere a Deus] quer que ele seja um aprendiz” (p. 90).

O perigo reside em não nos colocarmos mais em posição humilde e de aprendiz, que ouve, não acriticamente, no sentido de aceitar qualquer coisa que seja pregado (até porque Lewis tinha um interesse grande pela teologia), mas no sentido de chegarmos desarmados em um culto, preparados para aprender. O diabo continua afirmando que Deus espera que o frequentador de igrejas não perca tempo “em ficar pensando sobre o que rejeita, mas se abrindo de forma receptiva, sem comentários, humilde, a qualquer alimento que esteja sendo oferecido”.

A atitude do cristão não deve ser de arrogância ao frequentar uma igreja. Por mais teologia que ele conheça ou melhor oratória que possua, um cristão deve ir à igreja de sua comunidade com espírito aberto, esperando que o Espírito Santo lhe ministre através das estruturas humanas. Por mais falha que seja essa estrutura, ela pode ser veículo de grandes verdades. Só lembrarmos que os primeiros discípulos não foram escolhidos pelo seu domínio da teologia ou oratória e mesmo assim eles “alvoraçaram o mundo” (Atos 17.6).

Maldanado continua seus conselhos para que seu sobrinho tome cuidado com a humildade de seu “paciente” ao congregar porque

“Essa atitude, especialmente durante os sermões, cria a condição (mais hostil possível à nossa política) em que verdadeiras trivialidades podem se tornar um real alimento para a alma humana. Praticamente não há sermão ou livro que não seja perigoso para nós, caso seja apreciado nesse espírito”.

Deliciosa passagem de fina ironia chestertoniana; a ideia de “verdadeiras (ou tremendas) trivialidades” é o nome de um livro onde Chesterton consegue retirar ensinamentos e reflexões profundas sobre cristianismo, civilização ocidental e democracia de coisas ordinárias e comuns. Lewis, para quem a influência deste autor é inegável, gostava também de refletir sobre coisas simples. Mas além disso, o que Lewis está falando aqui é que quando temos uma posição de humildade frente a uma pregação (e na verdade, deveria ser uma posição de qualquer um que se debruça na busca de conhecimento), por mais simples que ela seja, teremos alimento e conseguiremos ter aplicações para nossas vidas. O próprio Lewis escrevendo em sua autobiografia, “Surpreendido pela alegria”, sobre seu processo de conversão, fala como “Para o jovem que deseja continuar um ateu convicto, todo cuidado é pouco no que se refere a suas leituras. Há ciladas por toda parte”.

Muitas vezes nos encontramos em posição reflexiva quando assistimos a uma série ou filme, quando jogamos um jogo (de videogame ou de tabuleiro) ou lemos um quadrinho. Coisas que normalmente não estão ali para estimular nosso intelecto, mas sim nos divertir, podem se tornar fonte de grandes reflexões. Aqui no site temos exemplos fascinantes: Eu e Silas Chosen escrevemos sobre Vingadores Ultimato (aqui e aqui); Fernando Pasquini escreveu sobre jogos de tabuleiro; também escrevi uma reflexão a partir de um quadrinho) e sobre ética da tecnologia a partir de um jogo de videogame.

Esses são alguns exemplos, há muito mais. Assim, se conseguimos refletir sobre essas “tremendas trivialidades”, quanto mais não deveríamos refletir quando estamos em um culto? A tarefa do verdadeiro inimigo, o diabo, é nos tornar amortecidos à Palavra de Deus; tornar cultos algo cansativo e, quem sabe, desnecessários. Mas essa não é a atitude de um seguidor de Cristo.

Leia também  O casaco de Pascal | Jonas Madureira

A atitude verdadeiramente cristã é aquela que chega na presença de Deus e sabe que não é suficiente em si, cuja inteligência é humilhada, na feliz colocação de Jonas Madureira. Em seu fantástico livro, Jonas nos mostra como ter uma mente cristã e ao mesmo tempo humildade. Para ele, é preciso colocar nossas mentes na presença de Deus. O cristão sabe, ou deveria saber, que o homem é um ser dependente da graça de Deus e que deve depositar sua inteligência aos pés da cruz; é nessa humilhante posição (como nos é apontado pela belíssima imagem da capa do livro – “Cristo lavando os pés de Pedro”, pintura de Ford Madox Brown), que devemos deixar cativo nosso pensamento (escrevi uma resenha desse livro aqui).

Jesus Washing Peter’s Feet 1852-6 Ford Madox Brown 1821-1893

Sobre humildade e a mente cristã, Jonas Madureira cita uma importante passagem de J. I. Packer do livro “O Conhecimento de Deus”:

“É preciso indagar a nós mesmos: ‘Qual o alvo final e a razão de eu estar ocupando a mente com estas coisas? Que pretendo fazer com o conhecimento de Deus que vou adquirir?’ Pois o fato que teremos de enfrentar é este: a busca por conhecimento teológico como um fim em si mesmo talvez nos prejudique, tornando-nos orgulhosos e convencidos. A própria magnitude do assunto nos embriagará e chegaremos a pensar que somos bem melhores e superiores aos demais cristãos, dado nosso interesse no assunto e a compreensão dele. Olharemos com superioridade para aqueles cujas ideias teológicas nos pareçam rudes e inadequadas, pondo-as de lado com desprezo. Isso se conforma às palavras de Paulo aos presunçosos cristãos de Corinto: ‘O conhecimento traz orgulho […] Quem pensa conhecer alguma coisa ainda não conhece como deveria’ (1 Co 8.1b,2). Preocupar-se em adquirir conhecimento teológico como um fim em si mesmo, aproximar-se da Bíblia para estudá-la sem nenhum motivo além do desejo de saber todas as respostas é o caminho direto para o autoengano complacente. Precisamos proteger o coração contra essa atitude e orar para que isso não aconteça.” (J. I. Packer, O conhecimento de Deus, citado por Jonas Madureira, Inteligência humilhada, p. 52).

Devemos deixar essa capa de orgulho para trás e assumirmos a posição de que não sabemos tudo. A velha máxima socrática “só sei que nada sei” deveria ser aplicada na vida cristã, como Paulo escreveu aos coríntios; o orgulho precede a queda.

Assim, devemos fugir de nos tornarmos críticos em nossas participações comunitárias; não devemos evitar a comunhão em nossas comunidades porque as pessoas não pensam como nós. Antes, devemos ir com espírito de humildade, prontos a ouvir o Espírito Santo falar através de qualquer trivialidade.

Essa carta de Lewis é um bálsamo para estes tempos em que achamos que sabemos tudo, em que entramos numa conversa com espírito arrogante de profundos conhecedores.

P.S.: Tudo isso não quer dizer que você não deva procurar uma igreja bíblica e cristocêntrica, mas sim que você deve examinar seu coração e ver qual a sua intenção e posicionamento interior com relação à sua frequência na igreja.

_______________

Bibliografia:

G. K. Chesterton. Tremendas trivialidades. Ecclesiae, 2012.

C. S. Lewis. Cartas de um diabo a seu aprendiz. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.

C. S. Lewis. Surpreendido pela alegria. Ultimato, 2015.

Jonas Madureira. Inteligência humilhada. São Paulo: Edições Vida Nova, 2017.

Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)".
Inteligência humilhada é fruto de uma cuidadosa reflexão sobre como se relacionam o conhecimento de Deus e os limites da razão humana. Além disso, é o resgate de uma tradição do pensamento cristão que sempre se recusou a reduzir o debate entre fé e razão nos termos do racionalismo ou do fideísmo. A finalidade do conceito de “inteligência humilhada” é despertar o interesse por uma razão que ora e uma fé que pensa.

Seguindo o conselho de João de Salisbúria, Jonas Madureira subiu nos ombros de cinco gigantes da tradição cristã: Agostinho de Hipona, Anselmo da Cantuária, João Calvino, Blaise Pascal e Herman Dooyeweerd. Todos eles serviram de ponto de partida e fundamentação do conceito. Ao longo deste livro, essas cinco vozes, sobretudo a de Agostinho, são ouvidas nos mais diversos assuntos: teologia propriamente dita, revelação natural, problema do mal, gramática da antropologia bíblica, formação de um teólogo entre outros.

Publicado por Vida Nova.

3 Comments

  1. Márcia Macedo disse:

    Obrigada, professor, tomei a liberdade de compartilhar alguns trechos.
    Deus lhe dê sabedoria sempre, aquela que sabe-se procedente do alto, e não da capacidade ao alcance.
    Deus o abençoe.

  2. Daniel Sângelo disse:

    Ótimo texto. Gostaria de saber se há algum conteúdo mais específico sobre “Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell”, área de interesse do Luiz Borges.
    Abraços

  3. Jessé Salvino Cardoso disse:

    Prezado professor, gostei do belo artigo que você pode assim fazer, gostaria também de conhecer esse texto Ciência, Tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell

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