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Esses dias duas notícias, dentre as inúmeras desgraças que acontecem todos os dias, me chamaram a atenção e me entristeceram profundamente. Primeiro, a do jornalista e fotógrafo francês René Robert, que morreu de hipotermia após cair em uma de suas caminhadas noturnas em Paris e ficar nove horas no chão, sem conseguir se levantar, esperando ajuda. Somente quando era tarde, um sem-teto chamou a emergência, mas já era tarde.

Segundo, o caso de Moïses Kabagambe, que após ter fugido de guerra no Congo, trabalhava por diárias num quiosque na Barra da Tijuca, no Rio. Ao cobrar dois dias de pagamento atrasado, foi agredido até a morte.

Essas duas notícias, longe de serem as únicas, me fizeram pensar em como temos endurecido nossos corações. Não estou falando em culpas individuais, dos agressores ou dos que ignoraram o jornalista estendido no chão, mas sim em como sociedade temos pensado nos vulneráveis.

São dois casos de países diferentes, mas nos faz refletir sobre como temos tratados uns aos outros e, mais ainda, aqueles em condições de vulnerabilidade. O velho contrato social, baseado nas premissas de individualismo e progresso econômico parece ter falhado em nós como humanidade. Nos tornamos egoístas, porque o que importa é como me sinto e o que possuo. Isso tem gerado um estado de anomia social, onde as normas sociais e morais são confundidas, pouco esclarecidas ou simplesmente ausentes. Vivemos numa época “depois da virtude”: “Ajudar alguém em perigo? Não é problema meu!”

Não sem exagero, muitos autores têm apontado uma falência no liberalismo e nos antigos contratos sociais que seriam basilares para o Ocidente. No entanto, é algo que vai além disso: considerar ser possível ser conservador nos costumes e liberal na economia é uma esquizofrenia, porque a forma como pensamos economia também está profundamente imbricada na vida moral. A própria concepção do que seria uma vida boa terá impacto na forma como pensamos trabalho, legislação e justiça. Para um conservador, agir com prudência em relação às novidades éticas, por exemplo, é algo que está na base de seu pensamento ─ por isso uma defesa das tradições, por elas já trazerem anos de maturação e se apresentarem como “testadas”. Para um liberal, a liberdade individual tem um peso muito grande. Portanto, a ideia da liberação de drogas entra em conflito para um conservador que se considera assim nos costumes, mas liberal em outros assuntos.

 Mas vivemos num mundo complexo, e é difícil encaixar pensamentos e posicionamentos entre as clássicas divisões entre direita/esquerda, conservador/liberal. Para um cristão, sua preocupação social deve estar acima do que ideologias humanas restringem. Justiça e ajuda aos pobres e desfavorecidos são mandamentos divinos.

Mas também acontece um fenômeno ao qual precisamos estar atentos: muitos sociólogos e historiadores percebem que, antes de acontecer um evento catastrófico em questões humanitárias, há uma paulatina criação social de indiferença moral. É o que Alasdair McIntyre aponta pensando na modernidade tardia em Após a virtude. Mas é também o que estudiosos perceberam ao analisar as origens do nazismo e o holocausto, por exemplo. As pessoas passaram a ficar amortecidas em suas morais e ─ isto em uma nação detidamente protestante ─ começaram a ver que não era tão errado assim odiar alguns. Essa negação da moral acabou permitindo o holocausto. Não estou sugerindo que isso esteja ocorrendo no Brasil, mas o amortecimento de valores éticos, pela violência cotidiana, acaba banalizando o mal. Acabamos achando que “é só mais um crime naquela cidade violenta”. Precisamos refletir, não normalizar essa situação e agir, pressionar governantes para mudanças, mas também mudar nosso olhar.

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Nesta era secular, os motivos religiosos, que nos forçavam a olhar para o próximo como mandamento divino, são esquecidos. Neste mundo desencantado não precisamos mais ser altruístas. “Devo me importar comigo mesmo”. “Minha felicidade”. Tiro selfie enquanto algo ruim acontece em minha volta. E isso acontece com cristãos, que padecem de uma secularização de suas mentes, ou privatização de sua moral: compartimentalizam sua fé, ligada ao espaço sagrado, e nos lugares “profanos” vale a ética do mundo, cada um por si, que sobreviva o mais apto. Assim, há uma secularização do cristianismo, o que nos leva a pensar numa ética pós-cristã. Não que o cristianismo tenha acabado e precisamos de algo novo, mas sim, que as pessoas conhecem (superficialmente) o cristianismo, suas balizas, mas acabam escolhendo viver mais no “mundo”. Precisamos fortalecer as estruturas de uma cosmovisão cristã, apontando a necessidade de uma vida coram Deo, na presença de Deus, lembrando os antigos avisos proféticos de preocupação com os menos favorecidos. Nenhum sistema econômico substitui esses mandamentos, como se, ou o Estado cuida das pessoas ou é cada um por si. Este não é o comportamento pregado nas Escrituras.

Tim Keller abre seu livro Ministérios de misericórdia com o crime na estrada de Jericó. Conforme a história contada por Jesus em Lucas 10, um homem judeu foi assaltado e espancado, ficando entre a vida e a morte. Três pessoas passaram por ali, um sacerdote, um levita e um samaritano, mas somente este último, culturalmente um inimigo do judeu, teve misericórdia e o ajudou. Essa história tem muito a nos dizer diante dos acontecimentos recentes que comentei no início do texto. Temos sido instrumentos de misericórdia ou instrumentos de ódio? Nosso chamado, conforme Jesus indica ao doutor da lei que lhe perguntou acerca de como obter a vida eterna é “amar a Deus e ao teu próximo como a ti mesmo”. Temos amado nosso próximo? Dar de ombros, ignorando os que sofrem à nossa volta é amar o próximo?

Por isso precisamos pensar em reformular a forma como pensamos socialmente; imbuídos dos ensinamentos de Jesus, precisamos pensar mais no bem comum e fazer bem mais do que temos feito.

Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)".

2 Comments

  1. Wilson disse:

    Bom dia,

    Não creio em contrato social, Jesus em nenhum momento fala disso. Distribuição de Riquezas: SIM. Aumento Gradativo do poder de compra de salários: Sim. Estado inchado, paquiderme, onde uma casta de politicos, funcionários publicos de alto escalarão dedicem tudo, inclusive seus salários: Não
    Redusir o estado onde está a maioria daqueles que tem estabilidade, aposentadora integral, etc, enquanto um povo não tem, não me parece um contrato social. Algo tem que se feito sim. mas formulas que já vimos que não deram cento em certos países, não interessa ao povo brasileiro. Cuidado Evangelicos

  2. Salomão Freitas Alves disse:

    O Nazismo, e ideologias semelhantes, tem em comum o desprezo pelo ser humano. E isso também tem sido observado no Brasil. Inclusive a partir da principal autoridade do país quando do surgimento desta grave e mortal pandemia. Por outro viés de análise, a chamada justiça social também tem sido uma forma de criar inimigos e não apontar para as verdadeiras origens e caminhos para verdadeiras soluções da questão. Como o autor deste artigo bem disse, o cristianismo bíblico está acima das ideologias, e atua fundamentalmente pelas mãos e pés da Igreja de Cristo Jesus. Que Deus nos ajude a viver o amor prático para com nossos próximos.

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