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Diz a palavra em Marcos 8:34—9:1:

“34 Então, convocando a multidão e juntamente os seus discípulos, disse-lhes: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. 35 Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-la-á. 36 Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? 37 Que daria um homem em troca de sua alma? 38 Porque qualquer que, nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos.” [Capítulo 9:] 1 Dizia-lhes ainda: “Em verdade vos afirmo que, dos que aqui se encontram, alguns há que, de maneira nenhuma, passarão pela morte até que vejam ter chegado com poder o reino de Deus.””

É surpreendente que mesmo em Cesareia de Filipe, terreno pagão a norte de Israel, Jesus conseguisse juntar uma multidão. E o Mestre aproveita a presença dela para dizer mais acerca das implicações da cruz na vida daqueles que acarinham a possibilidade de o seguir. Vale a pena reparar como está no texto: não é dito que, se alguém vem após Jesus, tem de negar-se a si mesmo, tomar a sua cruz e segui-lo. O que é dito é que, se alguém quer vir após Jesus, tem de negar-se a si mesmo, tomar a sua cruz e segui-lo. Ou seja, o Messias não está a certificar pessoas de que estão a segui-lo, mas a esclarecer que tão-somente o desejo de querer segui-lo tem implicações. O Senhor não está a carimbar passaportes de peregrinos, mas a avaliar a solidez da vontade de quem diz querer viajar com ele. Não é possível ser cristão sem ter testada a própria vontade de ser cristão. A vontade é muito importante e, por isso mesmo, é a primeira a merecer exame.

Em mais um exame ao coração dos que o ouvem, Jesus explica as condições que permitem acompanhá-lo (e “seguir” significava literalmente não caminhar nem atrás nem à frente, mas ao lado, indo na mesma estrada). O caminho passa pela autonegação e cruz. Negar-se a si mesmo quer dizer perder de vista os interesses pessoais. Como é que se ouviria uma mensagem destas? Não esqueçamos que a cruz é um assunto novo na comunicação entre Mestre e discípulos, tendo o Messias acabado de explicar a necessidade de morrer, esclarecimento imediatamente censurado pela boa vontade prematura e imprudente do apóstolo Pedro. Isso deve levar-nos a reconhecer a surpresa e possível incompreensão que deveria caracterizar o momento daquele ensino. Nunca foi fácil ser ensinado por Jesus, mas agora é quase insuportável.

Por que razão Jesus falava de uma disciplina pessoal negativa, como a pessoa negar-se a si própria? E por que razão Jesus falava de um objeto tão desagradável como a cruz na hora de explicar o significado de ser-lhe fiel? Hoje já estamos habituados a ouvir falar em “autonegação” e “cruz” como palavreado religioso, mas os discípulos não. Para compreendermos como os discípulos ouviriam aquela mensagem, devemos tentar voltar a recuperar alguma da sua estranheza original.

A inclusão dentro do ensino de Jesus de elementos como a autonegação e a cruz acarretavam uma ideia de sofrimento que em pouco condizia com aquilo que se esperava do Messias judeu. Esperava-se que o libertador profetizado soltasse o povo do sofrimento, não que o trouxesse como requisito para aqueles que o aclamam. Que tipo de libertador é este, afinal? Ficarmos livres do sofrimento não é aquilo que esperamos que um salvador faça por nós? Então, que conversa é esta de trazer o sofrimento como requisito de reconhecer o salvador? Este é um dos aspectos realmente surpreendentes trazidos pelo ensino e vida de Jesus. Deus encarna em Jesus não para eliminar a dor do mundo, mas para sofrê-la no seu próprio corpo. Como é que, na coisa boa que é haver um salvador, podemos enquadrar uma mensagem de sofrimento?

A cruz era uma pena para criminosos. Ora, esta prática penal era aquela que o próprio Jesus iria experimentar daí a pouco tempo: o condenado à crucificação transportaria a trave da cruz até ao lugar da sua execução. O retrato oferecido é tão invulgar quanto aparentemente ilógico para povos habituados à prática de peregrinações. Subitamente, os peregrinos recebem um circuito religioso que é o castigo de um criminoso. Tomar a cruz e seguir Cristo? Jesus está aparentemente a misturar aulas de religião com referências aos aspectos mais violentos do sistema judicial. Jesus está a sugerir que o verdadeiro peregrino é aquele que parece um criminoso. Este é um discurso duríssimo.

A continuação do esclarecimento de Jesus parece ainda mais radical. Quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á e quem quiser perder a sua vida, por amor a Jesus e à sua mensagem, salvá-la-á. Se é verdade que Jesus alveja o calculismo, por outro lado, isso não significa que esteja a elogiar suicidas. As pessoas que quererão apenas salvar a sua pele sairão frustradas; e aquelas que perderem a sua vida por causa do Evangelho, apesar da morte, serão bem-sucedidas. O paradoxo ganha nitidez afirmando que as aparências podem iludir. O que para uns é ganhar pode revelar-se uma imensa derrota.

O que desempata o valor que os homens dão à sua vida não é o desejo de sobrevivência, seja ele bem ou mal conseguido, mas a relação de todos com a própria vida de Jesus. O que Cristo ensina é desarmante: a vida de cada pessoa não vale por si própria, mas pelo que afirma acerca da vida do Filho de Deus. Uma vez mais, a radicalidade de Jesus implica que ele se toma a si próprio como o padrão absoluto de distinção entre o que é bom e o que é mau. Jesus está a tomar-se a si mesmo como estando na posição de Deus. A maneira como vivemos esta vida em relação a Jesus tem consequências profundas.

Aos olhos humanos, um homem pode ganhar o mundo inteiro (o kosmos, no original grego, associado aos sistemas do mundo), seja através de poder, ambição concretizada, sucesso ou outros sinais tidos como vitórias. O que Jesus ensina é que, em simultâneo a essa aparente conquista, pode acontecer a perda da nossa alma. O nosso texto em português traduz aqui “alma”, mas o original grego é “psuché”, que já nos versículos anteriores foi usado e traduzido por “vida”. Cristo está a falar da existência espiritual, não-física. A ideia é alertar para a possibilidade de o maior triunfo humano significar a maior derrota espiritual. Assim, é possível o homem adquirir tudo o que lhe é exterior e perder o que lhe é intrínseco. É uma contradição que pode ter a duração da eternidade. O Inferno é isto.

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Nova ironia prossegue. Que daria um homem em troca da sua alma? Por maiores que sejam os recursos que um homem possa alcançar, eles são insuficientes para lhe comprarem a alma. E recordamos a lição do fermento dos fariseus e herodianos. Se temos no sustento físico a certeza da nossa subsistência, apenas fazemos crescer artificialmente o provisório. É o espiritual que dá vida ao físico, e não o contrário. Acreditar primeiramente no material é um engano que distorce a nossa visão da realidade. É esse equívoco que pode contribuir para “uma geração adúltera e pecadora, que triste e naturalmente se envergonha de Cristo e das suas palavras” porque não o reconhece como verdadeiro fundamento do mundo. As palavras de Jesus são menos uma ameaça e mais uma constatação. A vergonha futura de Cristo corresponde a uma vergonha presente dos que se envergonham dele. “A glória do Pai e a companhia dos santos anjos” são as maiores e mais cósmicas testemunhas de uma perdição que os perdidos aceitam acerca de si próprios quando desprezam o Messias.

O versículo 1 do capítulo 9 possibilita pelo menos quatro interpretações em relação “aos que não passarão pela morte até que vejam ter chegado com poder o reino de Deus”. Uma é a que diz que o que está em causa é a transfiguração no monte, que está quase a acontecer, onde Jesus seria acompanhado por Pedro, Tiago e João. A segunda interpretação é a que diz que se tratava da ressurreição de Cristo, atestada por todos os discípulos exceto Judas. A terceira maneira de ler é relacionar esta afirmação com a destruição de Jerusalém no ano 70 pelo comandante romano Tito, contemporânea ainda do apóstolo João. A quarta hipótese é associar estas palavras à segunda vinda de Cristo, onde o sentido da visão física não seria literal, mas escatológico. Há várias maneiras de ler esta chegada do reino.

No fecho deste sermão, e tendo em conta que a intensidade continua a subir no Evangelho de Marcos, apliquemos esta temperatura crescente à nossa vida.

1. Seguir Cristo não é uma abstração. Implica uma atitude concreta, revelada neste texto bíblico, que exige autonegação e aceitação da cruz. Não se fala de ascetismo ou fuga da realidade, mas de um caminho que não pode ser trilhado por alguém que fuja de adversidades.

2. É improvável que o sofrimento do Mestre não inspire os seus discípulos. O papel do sofrimento de Cristo que culmina na sua morte é único. Nenhum cristão se salva por sofrer imitando o sofrimento de Jesus. Mas é difícil que autonegação e levar a cruz não impliquem sofrimento. Quem segue Jesus não deseja sofrer, mas, pelo menos, prepara-se para sofrer. O facto de Jesus, sendo homem e Deus, sofrer implica que o sofrimento não domina sobre Deus, mas que Deus tem como tratar dele. Modernamente, há muitas pessoas que não acreditam em Deus por causa do problema do sofrimento — essa é apenas uma maneira recauchutada de continuar a ter o sofrimento como algo maior do que Deus e que, em último grau, o dissolve. Mas, se tivermos um Deus que sofre, como Jesus, temos um sofrimento que não é maior do que Deus (e a ressurreição, apesar de ainda não chegarmos a ela neste ponto do Evangelho de Marcos, terá muito a dizer sobre isto). Não ter Jesus como Deus contribui para darmos divindade ao sofrimento.

3. Cristo define-se a si próprio como a medida de tudo o que existe. O sucesso da existência de alguém depende de como se relaciona com Jesus. Por isso, quem morre por ele, ganha, e quem ganha sem ele, perde. Jesus é o câmbio da eternidade. Os cristãos são chamados a questionar os conceitos de vitória e de sucesso deste mundo. Jesus está a ensinar que ele é a alavanca de todas as coisas. O milagre dos milagres é os homens conhecerem-se a si mesmos a partir de Jesus Cristo: no que isto significa de negativo, carecendo de serem resgatados por ele; e no que significa de positivo, sendo já aqui transformados na sua essência.

Que o Senhor nos ajude.

Trecho extraído da obra “Milagres no Coração“, de Tiago Cavaco, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2019, pp. 207-213. Publicado no site Tuporém com permissão.

Tiago Cavaco é formado em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa e pastor da Igreja da Lapa. Trabalhou dez anos em televisão, colabora com a revista Ler e mantém desde 2003 o blog Voz do Deserto. Casado com Ana Rute e pai de Maria, Marta, Joaquim e Caleb, é autor de "Ter Fé na Cidade, "Seis Sermões Contra a Preguiça", "Cuidado com o Alemão" e "Milagres no Coração" publicados por Vida Nova.
Nesses textos, há algo que nos espanta: Jesus faz milagres a pessoas que, depois, não o ouvem. O fato de Cristo fazer bem a tanta gente não significa que tenha acontecido a essas pessoas o bem maior de seguirem a Cristo. Simplificando: é possível tirar coisas boas de Jesus sem que Jesus se torne a verdadeira coisa boa para nós. Se, de um lado, Jesus parece condescender com quem não está tão interessado nele, de outro, parece rejeitar os que estão mais disponíveis para o seguir. Quer para uns, quer para outros, Cristo é sempre uma novidade. A Bíblia é o livro mais lido de sempre e ao mesmo tempo continua sendo o que mais carece de leitura, até por aqueles que julgam conhecê-lo.

Pregador crescido no punk rock, Tiago Cavaco fez acompanhar a este livro de sermões um conjunto de canções que querem ser tão ossudas quanto o Evangelho de Marcos. Milagres no Coração é também o nome de um disco lançado pelo autor e que pode ser ouvido em qualquer plataforma digital.

Publicado por Edições Vida Nova.

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