De onde vieram os capítulos da Bíblia? | Nelson Hsieh

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Nelson Hsieh explora como a Bíblia adquiriu as divisões dos capítulos e como elas influenciam na nossa leitura do texto.

 

Você consegue se imaginar lendo a Bíblia sem as divisões dos capítulos?

Os autores bíblicos provavelmente usaram alguma pontuação e divisões de parágrafos, é praticamente certo que eles não separaram com números os capítulos e versículos. No entanto, esse formato está presente nas edições mais modernas e certamente influenciam a forma como lemos a Bíblia, mesmo que de forma inconsciente.

Pense em como a divisão moderna da Bíblia tende a determinar as partes dos sermões, os planos anuais de leitura bíblica e as tarefas em sala de aula. Por exemplo, nas minhas aulas sobre as Escrituras no seminário, tive que escrever um resumo de cada frase dos diversos capítulos da Bíblia. Mas, e se os números não indicarem uma mudança ou uma divisão correta do texto, e se suas quebras estiverem erradas?

A história do surgimento deste sistema moderno de divisão de capítulos é muito interessante e tem implicações para a nossa leitura atual.

 

Qual foi a necessidade de padronizar os capítulos?

As divisões dos capítulos surgiram no início do século XIII d.C., em meio a um clima intelectual que precisava de ferramentas para auxiliar no manuseio do texto com o propósito de estudo. Novos métodos, como por exemplo, as concordâncias bíblicas, listavam em toda a Bíblia os trechos em que aparecia uma determinada palavra. Essas referências dos capítulos ajudavam os estudiosos a encontrar com mais rapidez e exatidão o trecho a ser estudado, para que então eles pudessem ler o contexto mais completo. Atualmente, certamente poderemos encontrar sem dificuldades o texto de Romanos 12.6, mas esta não era a realidade dos leitores antes do século XIII.

Com o advento das universidades, o estudo da Bíblia passou dos mosteiros e do contexto eclesiástico para as salas de aula. O alinhamento entre os estudantes e professores era fundamental para a discussão das Escrituras. Todavia, a maioria das Bíblias nesse período não seguiam o padrão moderno de divisão dos capítulos e ainda não existia um sistema universal que indicasse as separações.

As Bíblias latinas usadas na Europa tinham uma variedade de sistemas de capítulos. Estes sistemas foram herdados da antiga tradição latina e de várias revisões do texto latino, a saber, a Vulgata de Jerônimo. O estudioso do Novo Testamento Hugh Houghton identificou pelo menos 16 sistemas em diferentes manuscritos latinos do Evangelho de João, contendo entre 13 e 68 divisões em capítulos. Esta falta de normalização era um problema sobretudo para os leitores que quisessem concomitantemente identificar e ler a mesma passagem das Escrituras.

 

Como surgiu o sistema moderno de capítulos?

O sistema atual de capítulos está intimamente ligado às chamadas “Bíblias de Paris”, oriundo do século XIII. Esses exemplares em latim foram originalmente produzidos na França, e se espalharam para outros países da Europa. A Bíblia de Paris ficou conhecida como um novo modelo, composto por um formato portátil, de volume único e padronizado. Essas são as Bíblias que usamos atualmente.

Em nossos dias, há um consenso de que toda pessoa pode adquirir o seu exemplar e circular com facilidade levando para a igreja ou para as salas de aulas. Mas isso era algo raro na maior parte da história da igreja. O que dificultava era o tamanho da Bíblia na época, ora separado em vários volumes, ora produzido em um formato muito grande. A Bíblia portátil, em um só volume, tornou-se possível graças aos avanços tecnológicos, com os pergaminhos mais finos e novas práticas de escrita com letras menores e com mais abreviaturas. A Bíblia de Paris era popular, especialmente, nos contextos dos frades dominicanos e franciscanos que eram pregadores itinerantes e precisavam da Palavra para transportar com mais facilidade.

Não é nenhum problema afirmar que o livro de Rute vem depois de Juízes e os livros de 1 e 2 Crônicas é posterior aos escritos de 1 e 2 Reis. Porém, a multiplicidade de manuscritos continha uma sequência dos livros dessemelhantes entre si. Quando a Bíblia se estendia por vários volumes, as dessemelhanças dobravam. Com a popularidade do exemplar de Paris, produzida em um único volume, a padronização da sequência dos livros tornou-se também importante. Atualmente, existem diversos princípios comuns de formatação, mas as versões de Paris contribuíram na normalização de uma ordem semelhante ao que temos hoje.

 

Capa interior de uma Bíblia de Paris. Divisões de capítulos destacadas. (Bíblia, francesa ca. 1250-70. Museu Metropolitano de Arte, 1997.320, Domínio público)

 

O padrão da divisão de capítulos e versículos

Conforme vimos, encontramos a padronização das divisões dos capítulos e versículos na Bíblia de Paris e o seu sistema foi aceito no período moderno. Muitos estudiosos entendem que o responsável pela criação deste projeto foi o erudito clérigo Stephen Langton (1150-1228).

Há pelo menos duas fontes que validam Langton como o criador do sistema: Primeiro alguns comentários bíblicos, de sua autoria, contém divisões semelhantes às que vemos nas Bíblias modernas. Em segundo lugar, algumas notas no rodapé de dois manuscritos medievais atribuem a ele a autoria da divisão dos capítulos e versículos.

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Por que Langton criou essas divisões de capítulos?

Langton estudou na Universidade de Paris e foi professor de teologia entre os anos de 1180 a 1206 d.C. Tornou-se arcebispo de Cantuária no ano de 1207 e após o ingresso ao ministério, dedicou-se às questões eclesiásticas. Durante o período como professor em Paris, as multiplicidades de Bíblias latinas com sistemas diversos de capítulos e versículos estavam causando confusão nos ambientes de sala de aula, pois as versões entre professores e alunos eram diferentes.

Indo mais além das questões práticas de sala de aula, Langton tinham preocupações mais profundas a respeito dos modelos em que os textos eram divididos. Ele considerava-os inconsistentes no que se refere a sua extensão e pouco úteis para a compreensão dos leitores. Diante desse cenário, parece que ele tinha dois objetivos: o primeiro de criar capítulos de extensão uniforme e por fim, garantir a unidade temática dentro deles. Porém, esses dois objetivos nem sempre se alinhavam. Ao observarmos os capítulos modernos que herdamos, perceberemos o esforço de Langton para conciliar esses dois objetivos. Apesar disso, o fato de esse sistema ser agora universal demonstra que o seu trabalho obteve um sucesso considerável.

 

As fontes utilizadas por Langton para as divisões dos capítulos

Langton não foi o único a pensar sobre as divisões dos capítulos e versículos, como alguns sugerem. Ele se inspirou nos trabalhos existentes, encontrados nas Bíblias latinas de Alcuíno de York (produzida entre 796-804 d.C) e de Teodulfo, bispo de Orléans (produzida por volta de 800 d.C). Além dessas fontes, há três figuras importantes que contribuíram no desenvolvimento das divisões dos textos em meados do século XII. Foram eles: Pedro Comestor, Pedro, o cantor e Simão, o Abade do mosteiro de São Albano. Provavelmente esse contexto anterior influenciou tanto Langton quanto os editores e escribas das Bíblias de Paris.

Podemos inferir que Langton havia se envolvido em diversas atividades: (1) na adaptação das divisões dos capítulos das Bíblias mais antigas, (2) no refinamento das partes recortadas (capítulos), (3) na criação das suas classificações dos textos e (4) no incentivo da utilização desse novo sistema. Todo esse esforço tinha o objetivo de facilitar o ensino da Bíblia nas universidades.

Em suma, o projeto dos capítulos e versículos popularizado por Langton não foi criado por uma única mente, mas sim ao longo de um processo gradual que durou pelo menos 25 anos. O resultado das divisões foi influenciado por sistemas anteriores e por outros estudiosos. Comparando a proposta de Langton com as Bíblias atuais, veremos que não há um alinhamento perfeito das partes, o que indica que outros também se envolveram e contribuíram no aperfeiçoamento. Provavelmente, algumas figuras recentes foram Filipe, o chanceler de Notre Dame, Hugo de Saint-Cher e os editores da Bíblia de Paris.

 

Capa interior de uma Bíblia de Paris. Divisões de capítulos destacadas. (Bíblia, francesa ca. 1250-70. Museu Metropolitano de Arte, 1997.320, Domínio público)

 

Implicações para a leitura da Bíblia hoje

As divisões modernas dos capítulos foram criadas para ajudar os leitores da Bíblia. Juntamente com os números dos versículos, os títulos das seções e as notas de rodapé visam nos auxiliar no manuseio e na interpretação do texto bíblico. Embora, essas ferramentas não sejam perfeitas no sentido de garantir com exatidão a extração do significado do texto, há boas razões para agradecermos.

Mas não se esqueçam: todas as divisões (tanto antigas como modernas) devem ser consideradas como propostas falíveis; não podemos considerar como autoritativos e muito menos podemos afirmar que elas foram estruturadas pelos autores bíblicos. Assim, os leitores contemporâneos devem sentir-se livres para ignorar e/ou discordar das divisões encontradas nos escritos atuais.

Com isso em mente, será de extremo proveito, os leitores modernos estudarem outros sistemas de capítulos presentes nas versões antigas para ganhar uma nova perspectiva sobre a estrutura dos textos bíblicos. O Projeto do Novo Testamento da Tyndale House visa estudar o sistema de capítulos encontrado na família bizantina dos manuscritos do Novo Testamento, um sistema que surgiu no século V d.C. Ao examinar outros sistemas de capítulos, poderemos evitar um apego excessivo  as divisões dos capítulos modernos e obter novas perspectivas sobre a estrutura e a fluidez dos textos bíblicos.

Texto original: Where did the Bible's chapters come from?. Tyndale House Cambridge. Traduzido por Gedimar Junior e publicado no site Cruciforme com permissão.
Nelson Hsieh é pesquisador associado em Texto e Linguagem do Novo Testamento na Tyndale House.

 

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