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Ética, cores, super-heróis e você.

A não ser que você seja uma pessoa bem idosa, e digo isso com todo o respeito, completamente fora da previsão de público que um blog teria, você foi criado à sombra da Segunda Guerra Mundial. O evento que moveu o planeta inteiro e do qual jamais esqueceremos. A “última guerra romântica”, onde os “aliados do bem” se juntavam contra um terrível “eixo do mal”. Onde o imperialismo e dominação criminosa de países, pessoas e vidas adjacentes criaram, não só no “mundo real” mas também no “imaginário coletivo”, a melhor definição do que conhecemos como VILÃO.  Não é à toa que, quando algum escritor tem dúvida sobre como criar um antagonista para sua história, sempre escolhe o nazismo como textura (vide a saga de Harry Potter). Nada mais justo que se criassem HERÓIS também.

E além das pessoas reais que perderam a vida e sacrificaram muito em nome de ideais louváveis, o mundo também conheceu uma série de personagens fictícios que tem alguma relação com os eventos da guerra. E talvez o mais icônico deles seja o Capitão América.

Capa da primeira HQ do Capitão América, lançada em 1941.

Na capa de sua primeira HQ, lançada em 1941, o Capitão América está socando a cara de Hitler. Não fica mais óbvio do que essa capa. Ele é o representante ousado da liberdade e da justiça. Ele vai até onde precisar para cortar o mal pela raiz. E ele não traz armas: carrega um escudo. Ele é um protetor. Um benfeitor. Ele tem até um parceiro infanto-juvenil!O tempo passou, as histórias passaram, a guerra acabou. O MAL foi derrotado. E a inocência e a simplicidade dos quadrinhos do Capitão América foram sendo esquecidas, se tornando supérfluas. Sua visão brutalmente maniqueísta das coisas não apresentava mais um mote interessante para um mundo novamente dividido, mas com muito menos definição. O mal da guerra-fria não tinha um rosto e não assassinava judeus inocentes. O mal poderia estar em qualquer lugar, a qualquer hora. Então eles, em termos “abrangentes”, congelaram o Capitão América, até que algum roteirista mais inteligente achasse espaço para ele.

Esse é mais ou menos o mote do filme lançado em abril de 2014, Capitão América 2: O Soldado Invernal. No primeiro filme, o soldado magricelo e corajoso Steve Rogers entrou num programa secreto do governo para se transformar num super-soldado e lutar na Segunda Guerra. Depois de aventuras e batalhas, ele acaba congelado e acorda 70 anos depois. Este segundo filme mostra o personagem em constante conflito com a sua nova “era”, tendo que enfrentar coisas como as redes sociais, um século de cultura popular, novos costumes.

Mas o que mais o incomoda ao longo do filme é que as cores da bandeira americana, assim como a de todos os países, estão estranhamente cinzentas.

Capitão América 2 é um filme sobre espionagem e ação que faz o que praticamente todos os filmes de grande massa nas últimas décadas fizeram: critica aberta e pesadamente o comportamento político americano. As “medidas para proteger o povo americano” são mentirosas, assassinas, e seus efeitos são altamente duvidosos. Mas o governo, aqui infiltrado por uma sociedade secreta do mal, não pensa duas vezes. Vai sacrificar milhões para salvar bilhões, algo explorado com muito menos pompa e muito mais impacto em Watchmen. E em inúmeros outros filmes. Seu imperialismo é danoso e sua ganância (ou suas “boas intenções”) é feroz.

E o que um herói que tem plena certeza de estar “trabalhando para os mocinhos” faz diante disso? A grande sacada da história é não remover os paradigmas éticos do personagem e inseri-lo num mundo onde “paradigmas éticos” são coisas do passado. Em sua participação no filme dos Vingadores, ao comentarem com o Capitão sobre o Thor ser um “deus do trovão”, ele responde, automaticamente: “Minha senhora, só existe um Deus, e Ele não se veste dessa forma”. As cores do uniforme do Capitão sempre foram extremamente bem definidas. Assim como o mundo à sua volta. Mas o mundo onde acordou é enigmático. Os vilões são aliados. Ou vilões disfarçados de aliados. Os aliados são vilões. Ou são vilões-aliados. Ou tem boas intenções, mas maneiras perversas de atingi-las.

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A instituição na qual o Bandeiroso trabalha, a instituição na qual ele confia e por quem ele já deu a vida quer que ele seja menos “branco e preto” e mais “cinza”. Ou que ele morra para não impedir seus planos malignos. O vilão do primeiro filme era um homem com o rosto de uma caveira vermelha. Aqui, os vilões têm a cara limpa. O time do Capitão virou seu pior pesadelo, algo que ele nunca imaginaria: uma dúvida. Uma voz mecanizada por trás de uma tela que o informa, calmamente, que as coisas não são “tão simples”. E ele responde da única maneira que sabe: com socos e pontapés ineficazes.

Caveira Vermelha

O que acontece quando o sistema à nossa volta, a sociedade na qual você está inserido, para quem você trabalha, que você alimenta e que lhe dá vida, quer te convencer de que o “cinza” é a cor mais natural do mundo? Aqui, as cores se desbotam. O uniforme dos heróis fica mais “dark”. Os seus passos, mais hesitantes. Por trás do sistema existem tentáculos tentando pintar o mundo de cinza. Fazendo todo mundo entender que “cada um tem a sua verdade”, e que “certo e errado são pontos de vista”. E quando você acha que cortou a cabeça do monstro, nascem duas novas.

Isso me lembra de uma música do Casting Crowns chamada “Slow Fade”, a qual fala sobre o “lento desbotar para o cinza”. O que lembra também a frase tirada de um livro do C. S. Lewis, “Cartas de um Diabo a Seu Aprendiz”: “Na verdade, o caminho mais seguro para o inferno é o gradual – o declive suave, macio sob os pés, sem curvas fechadas, sem marcos, sem placas de sinalização”. O que lembra também a célebre receita para sopa de rãs: coloque uma rã na água quente, e ela saltará para longe. Coloque-a na água fria e vá esquentando, e ela morrerá cozida.

Você não percebe o desbotado do mundo à sua volta. Eu não percebo. Estamos inseridos nesse contexto há tempo demais. Não fomos congelados e hibernamos por décadas.  Nós ajudamos, inadvertidamente, a desbotar as cores antes bem definidas, cada vez que damos um passo para trás no quesito “verdadeS”. Ou quando, intencionalmente, viramos o rosto para outra distração. Ou pior, quando as “medidas preventivas” dos governos nos iludem, e o resultado costuma ser a morte de centenas de milhares de pessoas inocentes.

Mas aí o filme chega a seu ápice, e o Capitão precisa de um uniforme. E decide colocar seu uniforme original. Vai vestir as cores que aprendeu desde a infância. Vai mudar seus modos de lutar, vai olhar o vilão na cara e dizer “esse sou eu” e, mais importante, “esse é você”.

Vá assistir Capitão América 2. É um filme divertido, com ação bem feita, narrativa decente, personagens carismáticos e um herói antiquado. Do tipo que mais está faltando hoje em dia aqui, no nosso “mundo real”.

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

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