Apesar das deficiências do filme de sucesso, Matrix, o primeiro filme da trilogia levantou questões importantes sobre o conhecimento humano.
Por exemplo, como é que Neo poderia diferenciar quando ele estava na Matrix de quando ele estava no mundo real? Se suas experiências antes de tomar a pílula vermelha foram produzidas pela Matrix, como ele poderia ter certeza de que suas experiências depois de tomar a pílula vermelha também não foram produzidas pela própria Matrix? Em outras palavras, como Neo poderia ter certeza de que ele já deixou a Matrix? Como ele poderia estar certo de que sua experiência de sair da Matrix não foi em si mesma produzida pela Matrix?
Muito mais importante, se Neo nunca poderia ter certeza de que ele não estava na Matrix, como eu e você podemos ter certeza de que não estamos na Matrix? E se nós não podemos ter certeza – se não podemos oferecer um argumento hermético para a conclusão de que não estamos – como podemos afirmar que sabemos de alguma coisa? Vamos chamar essa linha de questionamento de “ceticismo”. Neste artigo, vou criticar o ceticismo, mostrando que ela faz suposições indefensáveis a respeito do conhecimento.
Podemos distinguir duas questões diferentes relevantes para a busca humana pelo conhecimento.
Qual das minhas crenças pode ser considerada conhecimento?
Quais são os critérios para determinar o conhecimento?
A questão (1) indaga sobre os itens específicos do conhecimento que você possui; respondê-la dá-lhe uma imagem da extensão e limites do seu conhecimento. A questão (2) indaga sobre as circunstâncias específicas em que uma crença seria considerada conhecimento – ela indaga o que todas as instâncias do conhecimento têm em comum umas com as outras.
Agora suponha que você queira avaliar a respeitabilidade intelectual de sua cosmovisão e, para fazer isso, decida classificar todas as crenças que a compõem em dois grupos: aquelas que consideram como conhecimento e aquelas que não consideram. Como você deve proceder? Você pode ordenar suas crenças com precisão se não sabe quais os critérios para determinar o conhecimento? Se não, então parece que você deve começar respondendo a questão (2). Mas a única maneira de responder a questão (2) é olhar para exemplos de conhecimento e ver, em primeiro lugar, o que todos eles têm em comum e, em segundo, como eles diferem das crenças que não consideram conhecimento. Mas você só pode fazer isso se você já respondeu a questão (1).
Então você não pode responder a questão (1), se não tiver uma primeira resposta à questão (2), e você não pode responder a questão (2), se não tiver uma primeira resposta à questão (1). E se você não pode responder a qualquer uma delas (1) ou (2), então como pode dizer que sabe de alguma coisa? Esta situação é o que os filósofos chamam de o problema do critério (Ver Roderick Chisholm “The Problem of the Criterion” (1973) e Robert P. Amico’s “The Problem of the Criterion” (1993)).
Existem três respostas principais ao problema do critério. Primeiro, não há “ceticismo”. O cético afirma não existir uma solução adequada para o problema e que, portanto, não podemos saber de nada. Em segundo lugar, há o “metodismo” (sem conexão com a denominação). De acordo com o metodista, podemos conhecer as coisas e a solução para o problema começa com uma resposta à questão (2). Além disso, metodistas afirmam que uma crença só pode ser considerada conhecimento se você primeiro souber (a) quais são os critérios para o conhecimento e (b) que a crença em questão atende a esses critérios.
Infelizmente, o metodismo leva a problemas graves. Se o conhecimento de qualquer crença requer conhecimento prévio de (a) e (b) – como afirma o metodismo – então o cético pode perguntar ao metodista como ele conhece (a) e (b). E uma vez que (a) e (b) são em si mesmos crenças, responder ao cético exigirá que o metodista faça outras declarações de conhecimento. Mas defender essas declarações de conhecimento exigirá que ele faça ainda mais declarações de conhecimento. E estas terão de ser defendidas também, o que exigirá ainda mais declarações de conhecimento, e assim por diante, até o infinito (os filósofos chamam este problema de regressão infinita e geralmente consideram as teorias que resultam neste tipo de problema como sendo gravemente falhas. Parece, então, que o metodismo está em apuros).
A terceira resposta para o problema do critério é chamada de “particularismo”. De acordo com os particularistas, você conhece muitas coisas sem ser capaz de provar que você as conhece e sem entender como você as conhece. Assim, você pode responder a questão (1), sem ter que possuir ou aplicar quaisquer critérios de conhecimento – ou seja, sem primeiro ter que responder a questão (2). Além disso, refletir sobre suas respostas para a questão (1) vai permitir que você desenvolva critérios para o conhecimento que sejam consistentes com elas. Este critério pode ser usado para fazer julgamentos em casos de fronteira do conhecimento. Por exemplo, para classificar suas crenças entre aquelas que são consideradas conhecimento e aquelas que não são, você pode começar com as coisas que você sabe sobre a moralidade (o assassinato é errado) e a lei (impostos devem ser pagos até 15 de abril) e prosseguir, formulando critérios para quando algo é moral ou legal. Você pode então usar esses critérios para julgar crenças limítrofes. Mas note que estes critérios são justificados pela sua congruência com instâncias específicas de conhecimento e não o contrário, como acontece no metodismo.
É claro que o cético também objeta contra o particularismo. Em primeiro lugar, ele vai afirmar que o particularismo é uma petição de princípio, pois simplesmente presume a própria coisa que necessita de prova – ou, seja, presume que algumas de nossas crenças são consideradas conhecimento. Um argumento é uma petição de princípio quando sua premissa (s) não pode ser racionalmente considerada por alguém que já aceite de início a conclusão do argumento. Por exemplo, o seguinte argumento é uma petição de princípio: Joe sempre diz a verdade, então tudo o que ele diz é verdadeiro. Joe diz que nunca mente. Portanto, Joe nunca mente. Evidentemente, a primeira premissa deste argumento – que Joe sempre diz a verdade – não pode ser racionalmente aceita por alguém que já aceite a sua conclusão logo de início – ou seja, que Joe nunca mente. Em segundo lugar, ele vai tentar forçar o particularista ao metodismo – e a todos os seus problemas –, fazendo-lhe perguntas como: “Como você sabe que escolheu as crenças corretas como sendo instâncias de conhecimento? Não é possível que você esteja errado? E, se é possível que você esteja errado, você não deveria ter que provar que não está?”.
Felizmente, o particularismo oferece uma boa resposta a ambas as acusações. Quanto à acusação de que o particularismo oferece uma petição de princípio, o cético afirma que o particularista deve provar que algumas de nossas crenças são consideradas como conhecimento. Mas se o cético não oferece nenhuma razão para pensar isso, seu ceticismo pode ser descartado como sendo arbitrário, enraizado em sua preferência pessoal e não em uma posição substantiva ou em um argumento. Se, por outro lado, seu ceticismo é o resultado de um argumento, esse argumento deve ser razoável para ser levado a sério. Mas como pode um argumento ser razoável a menos que as premissas do ceticismo sejam consideradas conhecimento? (Para ver a força dessa questão, compare os seguintes argumentos: Eu sei que a minha memória, por vezes, me engana; portanto eu deveria duvidar de que minha memória é confiável e não sei se a minha memória já me enganou; portanto, eu deveria duvidar de que a minha memória é confiável. Evidentemente, só é racional duvidar da confiabilidade de sua memória se você sabe que a sua memória [pelo menos algumas vezes] engana você). E se as premissas do ceticismo contam como conhecimento, então o cético não pode razoavelmente concluir que nenhuma das nossas crenças conta como conhecimento. O ceticismo desenfreado não é uma posição defensável racionalmente; ele não pode ser racionalmente afirmado e defendido sem pressupor que algumas de nossas crenças são consideradas conhecimento.
Em relação à tentativa do cético de empurrar o particularista ao metodismo, o particularista pode resistir reafirmando que pode conhecer as coisas sem ser capaz de provar que as conhece. Por exemplo, o particularista poderia dizer: “Eu sei que a misericórdia é uma virtude, embora não possa provar que eu sei disto. Além do mais, por que pensar que tenho que provar que conheço algo antes que eu possa conhecê-lo?”.
Além disso, o particularista argumenta que, só porque é possível que ele esteja enganado sobre as crenças que ele considera conhecimento, isso não significa que ele realmente esteja. Não significa também que ele tenha uma boa razão para pensar que esteja enganado. Por exemplo, suponha que eu afirme saber que visitei a Disneylândia pela primeira vez em 1985 e um cético indique que é possível que eu esteja enganado. Ele está certo; é possível. Mas isso não quer dizer que eu tenha visitado a Disneylândia pela primeira vez em algum ano que não seja 1985, ou que eu nunca tenha visitado a Disneylândia. A menos que o cético me dê boas razões para pensar que eu não tenha visitado a Disneylândia em 1985, a mera possibilidade de que eu poderia não tê-la visitado não é suficiente para questionar minha afirmação de que eu a visitei.
O particularista e o cético têm abordagens muito diferentes para o conhecer. Das duas tarefas principais na busca do conhecimento (obter crenças verdadeiras e evitar as falsas), o cético eleva a segunda sobre a primeira, enquanto o particularista acredita que a obtenção de crenças verdadeiras é pelo menos tão importante quanto evitar as falsas. Para o cético, o ônus da prova cabe a qualquer um que alegar conhecer alguma coisa. Para o particularista, o ônus da prova recai sobre o cético; ele requer que o cético desenvolva um bom argumento para o ceticismo antes de permitir que ele o incomode sobre conhecimento. E, dado o fato de que o cético só pode desenvolver um bom argumento para seu ceticismo ao assumir o oposto de seu ceticismo – ou seja, que ele realmente conhece coisas –, o particularista não vê razão para negar o que é óbvio a todos nós: que, afinal, conhecemos muitas coisas.
Traduzido por Fábio Campos e revisado por Jonathan Silveira.
Original aqui.
Os filósofos William L. Craig e J. P. Moreland conseguiram reunir, em apenas um volume, as principais disciplinas filosóficas necessárias para a construção da cosmovisão cristã. Depois de apresentar, em linhas gerais, os fundamentos da lógica e da argumentação, os autores explicam cuidadosamente cada uma das disciplinas orgânicas da filosofia (epistemologia, metafísica, filosofia da ciência, ética, filosofia da religião e teologia filosófica), bem como as suas implicações para a visão cristã da realidade. Certamente, é uma obra de referência para aqueles que buscam enxergar o mundo através da lente da fé cristã. |
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Excelente!