Estrelas Além do Tempo – A Terra é Azul. Vejo Deus em todo lugar. | Silas Chosen

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A Guerra Fria tem uma função muito clara no imaginário cultural do ocidente. Ela proveu a segunda metade do século XX com um vilão perfeito. A distância geográfica, cultural e ideológica, a simbologia, a suspeita ininterrupta de destruição total, criaram nos filmes um inimigo aos heróis americanos (ou britânicos) que só não foram tão onipresentes quanto os outros bichos papões do século XX (até Harry Potter lutou contra nazistas).

E a década de 1960 foi um palco tremendo para tal embate. A corrida armamentista e espacial conseguiu colocar uma definição naquilo que era etéreo. Tornou simples de entender. Quem chegar primeiro ganhará. Poderá definir as regras de tudo o que acontecerá a partir dali. Mas os anos 60 não foram, para o americano médio, só o palco de um conflito internacional. A luta pelos direitos civis e contra a legislação (e a cultura) segregacional também deixou marcas profundas no imaginário, na memória e na pele de muita gente. Alie isso à revolução sexual e ao levante do feminismo, quando mulheres começaram a demandar tratamento igualitário em diversas esferas, e você tem uma década bem movimentada.

Estrelas Além do Tempo é um filme que consegue colocar tudo isso e talvez mais um pouco dentro de um caldeirão e entrega um filme bonito, competente, engraçado e tocante.

Baseado numa história real, conta sobre a vida de Katherine Goble, papel de Taraji P. Henson, entre 1961 e 1962. Ela é um gênio da matemática, à frente da classe a vida toda. Ela também é negra, o que fez com que sua educação fosse dificultada por causa das políticas segregacionais americanas. Ela e suas amigas, Mary Jackson (papel da cantora Janelle Monáe) e Dorothy Vaughan (papel de Octavia Spencer), trabalham para a Nasa, servindo como computadores: elas são responsáveis por fazer cálculos e processar dados, além de revisar o trabalho de outros. Sendo todas afro-americanas, trabalham numa sala separada, frequentam refeitórios separados e precisam usar banheiros separados. A corrida espacial está no começo e os russos acabaram de colocar um satélite em órbita da Terra. Em pouco tempo, colocam também  o cosmonauta Yuri Gagarin em órbita, conquistando a primeira marca da corrida em direção à Lua.

As três personagens precisam mostrar o seu valor intelectual num mundo extremamente branco e extremamente machista, numa época em que todos os nervos estão à flor da pele. De um lado, o governo americano precisa de uma vitória. De outro, as tensões raciais, com Martin Luther King Jr. começando seu ministério de luta social, começam a mostrar as garras. Katherine Goble é chamada para fazer parte de um grupo de cientistas especiais responsáveis pelos cálculos mais complicados de tudo acerca dos foguetes e das cápsulas espaciais. Mary Jackson quer ser uma engenheira e Dorothy Vaughan decide que, se não aprender a usar os computadores, será deixada para trás. Cada uma, então, começa a buscar o próximo nível, tendo adversários e aliados ao longo do caminho. Jim Parsons (ele mesmo, o Sheldon) e Kirsten Dunst personificam os obstáculos racistas, enquanto Kevin Costner interpreta o diretor que não liga para o racismo, ele precisa de resultados.

A história real mostra quem venceu a corrida. Os americanos conseguem, com um pouco de atraso, colocar o piloto John Glenn em órbita, e em 1969 dão aquele passo na Lua. O filme mostra os bastidores do drama científico e pessoal que aqueles anos foram. Não esquece de mencionar a luta dos direitos civis, mais pelo lado do dia a dia de sofrimento que os afro-americanos viviam, fazendo até uma pequena menção à filosofia de Malcolm X. Mas é de Martin Luther King Jr. mesmo que o filme quer falar, mesmo que indiretamente.

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Desde o começo do filme, os personagens são vistos às voltas com sua fé. O trio de protagonistas frequenta uma igreja nos finais de semana, lugar que não era só o local de adoração, mas o de convívio social e de descanso. E numa época em que até o mais lógico dos cientistas provavelmente também ia à igreja nos finais de semana (John Glenn era presbiteriano), essa era outra das fundamentais diferenças entre EUA e URRS. É atribuída a Yuri Gagarin a frase “A Terra é azul, não vejo Deus em lugar nenhum”. A frase é provavelmente originada de um discurso antirreligioso de Nikita Khrushchev e colocada na boca de Gagarin desde então. Mas não muda o fato de que o governo socialista pretendia eliminar a religião de seu estado e, nos EUA, a coisa funcionava diferente.

Os afro-americanos encontraram no Evangelho uma fonte de esperança e de força que muito do resto do país ignorou. Quase toda a tradição musical americana (a boa) vem daí, sem falar de tudo o que Martin Luther King Jr. alcançou. (Leia o texto sobre 12 Anos de Escravidão para mais sobre o assunto). Num momento de crise, no clímax dramático, todas as três personagens simultaneamente começam a orar.

Do esforço individual das protagonistas até a reverência perante o presidente, o filme está cheio da mais pura e limpa ideologia sessentista americana e a presença da religião no filme faz parte disso. Pelo menos não é cafona, pedante ou inconveniente em seu proselitismo. É honesto e, de fato, realista. E consegue isso mesmo permeando o filme inteiro. Ao mesmo tempo, não fecha os olhos para mostrar onde a cultura americana pecava feio. Quando ouve de sua superiora branca que ela não é racista, Octavia Spencer responde: “Tenho certeza que você acredita nisso”. É uma frase talvez ousada demais para estar num feel good movie. Isso torna-o mais do que só entretenimento.

Os atores estão ótimos, com um destaque especial para Taraji P. Henson e Janelle Monáe (e, por que não, para Jim Parsons, que finalmente interpreta um tipo que não lembra o Sheldon). Tecnicamente, o filme é bem competente e direto ao ponto. Também temos uma trilha sonora deliciosa que vai emoldurando os aspectos de luta racial do filme. Mas é um erro achar que esse filme é só um “oscar bait” ou um futuro “sessão da tarde de luxo”. Ele conta uma história necessária, de mulheres que conseguiram ser as primeiras de muitas em diversos ambientes onde nenhuma mulher havia chegado, quanto mais pessoas afrodescendentes. E não esquece de que a fé em Deus exercia um papel central na vida de todas elas (quer estejam na igreja, quer estejam vendo aquele pastor falar em nome de igualdade na TV, sete anos antes de ser assassinado).

A Terra que John Glenn vê dos céus é azul. A humanidade que ele vê (Glenn, no filme, é um dos rapazes que respeita pessoas de qualquer cor) é de várias cores, todas igualmente importantes. E Deus continua em todo o lugar.

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

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