Artefato em foco: A Tábua do Dilúvio | George Heath-Whyte

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10/out/2024

“Sou o primeiro homem a ler isso depois de mais de dois mil anos de esquecimento”

Essas foram as palavras do assiriólogo George Smith logo após traduzir uma passagem desta tábua de argila no Museu Britânico no início da década de 1870. Segundo relatos, o que ele leu foi tão surpreendente que, segundo um autor, “ele levantou-se e começou a andar pela sala, extremamente agitado, e, para a surpresa de todos, começou a se despir!”.

A tábua foi escavada alguns anos antes no sítio de Nínive (atual Mosul, no Norte do Iraque), encontrada no palácio do grande rei assírio Assurbanipal que reinou de 668 a 631 a.C. Este rei, além de ser um conquistador, também era um estudioso. Ele encomendou cópias de obras literárias e científicas que se encontravam nas bibliotecas da Mesopotâmia para criar sua própria coleção pessoal. Atualmente, mais de 30.000 tábuas dessa coleção se encontram no Museu Britânico e esses documentos representam alguns dos textos cuneiformes mais bem feitos que sobreviveram ao longo do tempo. A Tábua do Dilúvio é um bom exemplo disso.

Figura 1: A Tabuleta do Dilúvio (século VII a.C.), exposta no Museu Britânico, que faz parte da Tábua XI da Epopeia de Gilgamesh. (A história do dilúvio está registrada no verso da tábua.) Imagens: Tabuleta K.3375 © The Trustees of the British Museum. Usado sob licença Creative Commons (CC BY-NC-SA 4.0).

Como você pode ver na imagem (fig. 1) a Tábua (que infelizmente está quebrada) contém uma coluna e meia de texto na frente com mais uma coluna e meia na parte de trás. Originalmente, ela teria três colunas de cada lado (semelhante a tábua parcialmente restaurada na figura 2), com o tamanho total sendo mais ou menos igual ao de um tablet moderno. Na antiga Mesopotâmia, os capítulos das histórias eram registrados em tábuas de argila de forma separada e as duas copias das fotos contém os registros do 11˚ e do penúltimo capítulo da famosa Epopeia de Gilgamesh.

Figura 2: Outra versão da Tábua XI da Epopeia de Gilgamesh no Museu Britânico. Imagem: Tábua K.4486 © The Trustees of the British Museum. Usado sob licença Creative Commons (CC BY-NC-SA 4.0).

A Epopeia de Gilgamesh é uma narrativa impressionante e atemporal que aborda temas como orgulho, amor, perda e a busca pelo propósito da vida. Depois de sofrer com a morte de seu amigo Enkidu e temer por sua própria morte, Gilgamesh embarca no segundo ato da epopeia, isto é, em uma jornada para encontrar o único homem conhecido por ter obtido a vida eterna, a saber: Uta-napishti. Após uma longa e difícil busca, Gilgamesh finalmente o encontra, e este, lhe revela o segredo de como ele havia conseguido a vida eterna. Essa história, dentro de outra ainda maior, ocupa boa parte do 11˚ capítulo da Epopéia. O trabalho de George Smith, em redescobrir essas tábuas, causou bastante comoção na Grã-Bretanha vitoriana, ao redor do mundo e sem dúvida, continua comovendo as pessoas em nossos dias.

“Um irmão não podia ver o seu irmão, as pessoas não conseguiam se reconhecer através da chuva, os deuses temiam o dilúvio. O vento soprou por seis dias e seis noites. O dilúvio e a tempestade, arrasou a terra” (Gilgamesh XI.112–113, 128–129). Quando Smith contou esse relato, narrado por Uta-napishti, em um evento que contava com a presença do primeiro-Ministro e do Arcebispo de Cantuária, esta história soou extraordinariamente familiar. Há muito tempo, os deuses decidiram destruir o mundo por meio de um dilúvio. Um desses deuses havia comunicado Uta-napishti, dizendo que ele deveria construir uma embarcação a fim de salvar a sua vida e levar consigo a sua família, além de todas as espécies de animais. Com isso, com a vinda do dilúvio, apenas aqueles que se encontraram no barco sobreviveram. Depois, após o fim da tempestade, a embarcação encalhou em uma montanha e Uta-napishti enviou aves para encontrar um lugar que tivesse em terra firme. Por fim, ele fez sacrifícios aos deuses que se aproximaram do barco e eles lhe concederam a vida eterna.

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As semelhanças entre a história de Uta-napishti e o relato da história da arca de Noé em Gênesis são claras. Mas o que essas semelhanças realmente nos dizem? Com outras palavras, qual é a relação entre essas duas narrativas?

Uma possível explicação, e talvez a mais popular em nossos dias, é que o escritor de Gênesis leu a Epopéia de Gilgamesh e reescreveu a história de acordo com a sua própria teologia, removendo, portanto, as referências aos deuses da época e inserindo o único Deus. No entanto, quer o escritor de Gênesis estivesse familiarizado com o relato de Gilgamesh, quer não, esta explicação é muito simplista.

A versão do relato do dilúvio encontrado na Epopéia de Gilgamesh é apenas uma de várias outras conhecidas do antigo Oriente Próximo. Cerca de 90 anos após a descoberta de George Smith, o falecido arqueólogo britânico Alan Millard (1937–2024) fez sua própria descoberta, encontrando duas grandes tábuas que estavam guardadas em uma gaveta no Museu Britânico por décadas. Essas tábuas são de mil anos, aproximadamente, mais antigas daquelas usadas por Smith e contam uma história parecida, mas com um herói diferente chamado Atra-hasis. Também, uma composição suméria de data semelhante também conta sobre um dilúvio e um homem que sobreviveu em um barco cheio de animais. Da mesma forma, existe uma tábua babilônica ainda mais antiga que oferece uma versão diferente da mesma história. Por último, pelo menos uma outra versão era conhecida na cidade da Síria de Ugarit no final do II milênio a.C. Isso sugere que o antigo Oriente Próximo (sem contar outras regiões do mundo onde as histórias do dilúvio são conhecidas) continha diversos relatos sobre um homem que, avisado por um deus, sobreviveu a uma tempestade, divinamente ordenado, e levou consigo, em seu barco, diversos animais.

Essas são apenas algumas das versões da história do dilúvio que foram registradas por escrito e que, além de sobreviverem enterradas por milênios, acabaram sendo encontradas pelos arqueólogos. Embora não possamos saber com exatidão, podemos imaginar que todas as famílias da região falavam sobre elas ou sobre histórias semelhantes. As versões escritas, que chegaram até nós compartilham em alguns aspectos com a versão do livro de Gênesis, no entanto, há também diversas dessemelhanças (inclusive em diferentes níveis), como por exemplo, a linguagem, o estilo e os seus detalhes. Fazer uma comparação captando essas diferenças e semelhanças é um exercício fascinante, mas seria imprudente supor que o relato de Gênesis seja diretamente baseado ou inspirado em qualquer uma das dessas versões escritas e conhecidas da história.

Portanto, a existência de outras versões que contêm uma história que se assemelhe ao relato presente em Gênesis pode causar certa estranheza. No entanto, se o evento descrito na Bíblia de fato ocorreu, a presença de versões semelhantes não seria, de maneira alguma, uma supresa.


George Heath-Whyte é pesquisador Associado do Antigo Testamento e do Antigo Oriente Próximo na Tyndale House
Texto original: Artefact in focus: The Flood Tablet. Tyndale House Cambridge. Traduzido por Gedimar Junior e publicado no site Cruciforme com permissão.

 

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