Culpa de sangue: a resposta de Deus ao derramamento de sangue inocente | John Ensor

O conselheiro cristão, um médico de almas | Manuel Alexandre Júnior
10/nov/2022
Resenha do livro “Introdução a missões” | Ricardo Reis
22/nov/2022

Photo by Maria Lysenko on Unsplash

Cantai louvores ao Senhor, que habita em Sião; anunciai entre os povos os seus feitos. Pois ele, o vingador do sangue, lembra-se deles; não se esquece do clamor dos aflitos. Salmos 9.11,12

Por que deveria eu salvar a pele dele?

Por que deveria eu corrigir esse erro

Quando vim de tão longe

E lutei por tanto tempo?

Se falo, sou condenado.

Se calo, sou amaldiçoado!

Jean Valjean, Os miseráveis[1]

Entre 1882 e 1968, cerca de 3.500 americanos negros foram sumariamente executados nos Estados Unidos. Entre eles estavam Thomas Shipp e Abram Smith, dois homens assassinados em Marion, Indiana, em 7 de agosto de 1930. Na noite anterior, eles haviam sido presos e acusados de assalto à mão armada, homicídio de um homem branco e estupro de uma mulher branca. O caso nunca foi resolvido,[2] em parte porque, na presença de milhares de pessoas, os homens foram enforca­dos em uma árvore no centro da cidade, na noite de sua prisão.

Lawrence Beitler/Bettmann/Corbis

Qual é a resposta de Deus ao linchamento de Thomas Shipp e de Abram Smith? Quem deve ser responsabilizado pelo sangue deles? Certamente o punhado de homens que de fato os enforcou, é claro. Se eu contar que eles foram apedreja­dos e espancados até a morte, antes de serem enforcados, então você vai concordar que todos aqueles que pegaram uma pedra ou que bateram nesses homens com um cabo de enxada, ou que simplesmente ficaram incentivando os agressores, todos eles compartilham da culpa de sangue.

O fotógrafo Lawrence Beitler registrou a cena. Sua foto, com uma multidão reunida em torno da árvore onde os dois homens foram enforcados, é a imagem icônica do linchamento nos Estados Unidos. No começo me pareceu bom que ele ti­vesse registrado a terrível verdade, não importa o quão vívido parecesse e angustiante fosse. Isso desperta uma ira justa que deve levar a atos de justiça. Então descobri que fotos como essa eram rotineiramente transformadas em cartões postais e enviadas para amigos.

O próprio Beitler fez e vendeu milhares de cópias dessa ima­gem nos dias que se seguiram, lucrando com o derramamento de sangue inocente.[3] Ele tratou a foto como um espetáculo, em nada diferente de fotografar uma competição esportiva. Qual é a resposta de Deus diante de ações como essas?

E o que dizer das milhares de pessoas que não mataram ativamente esses dois homens, mas ficaram assistindo ao acon­tecimento? Que culpa elas carregam? E aqueles que compra­ram as fotografias? E aqueles que as receberam e penduraram na geladeira? Que culpa carregam esses cidadãos em geral? Muitos dos que não estavam presentes naquela noite podem ter, logo em seguida, ido à igreja ou jantado, ou tido alguma forma de interação com aqueles que estavam debaixo daquela árvore e observaram a cena com aprovação, até que os corpos lentamente pararam de balançar. Que culpa eu carregaria se tivesse sido um pastor ou presbítero nessa cidade?

Para responder a essas perguntas precisamos fazer outra: O que a Bíblia diz sobre a culpa de sangue, a ira de Deus e a coragem que nossa fé requer?

Culpa de sangue

“Culpa de sangue” é um termo grosseiro, pouco refinado. Ele nos atinge com rudeza, como um tapa no rosto. É uma expressão escolhida por Deus para infundir temor santo e para compelir a uma ação decisiva.[4] É uma palavra que nos desperta, obri­gando-nos a reconhecer um vínculo inquebrantável: a imagem de Deus é degradada e sua ira é justamente incitada toda vez que uma pessoa criada à imagem de Deus é injustamente mas­sacrada. E não há nada que degrade a imagem de Deus e fique sem consequências.

A culpa de sangue requer vingança e justificação de Deus. Destaca-se como acusação contra o pecado do derramamento de sangue inocente, mas também como uma espécie de pro­messa para as vítimas. Elas são aquelas pessoas que clamaram a Deus e não receberam resposta imediata. Para elas, pode ter parecido ou que Deus não se importou ou que ele era impo­tente para intervir. Salmos 9.11,12 nos lembra de que nenhu­ma dessas alternativas é verdadeira; essa é uma escolha falsa: “Cantai louvores ao Senhor, que habita em Sião; anunciai entre os povos os seus feitos. Pois ele, o vingador do sangue, lembra-se deles; não se esquece do clamor dos aflitos”.

O que o aflito clama a Deus?

  • Em Salmos 31.2, ele clama: “Inclina teus ouvidos para mim, livra-me depressa!”.
  • Em Salmos 35.23, ele clama: “Acorda e desperta para o meu julgamento, para a minha causa, Deus meu e Senhor meu”.
  • Em Salmos 54.1, ele clama: “Salva-me, ó Deus, pelo teu nome, e faze-me justiça pelo teu poder”.
  • Em Salmos 59.1, ele clama: “Meu Deus, livra-me dos meus inimigos; protege-me daqueles que se levantam contra mim”.
  • Em Salmos 59.2, ele clama: “Livra-me dos que praticam a maldade e salva-me dos homens sanguinários”.
  • Em Salmos 70.5, ele clama: “Eu, porém, estou aflito e necessitado; apressa-te, ó Deus! Tu és meu amparo e meu libertador; Senhor, não te demores”.
  • Em Salmos 71.4 ele clama: “Meu Deus, livra-me da mão do ímpio, do poder do homem injusto e cruel”.
  • Em Salmos 109.21, ele clama: “Mas tu, Senhor, meu Deus, age em meu favor, por amor do teu nome”.
  • Em Salmos 140.1, ele clama: “[…] guarda-me dos que são violentos.

Cada um desses Salmos envolve a ameaça de derrama­mento de sangue de um inocente. Deus não esquece esses cla­mores: continua consciente deles e considera qualquer sangue inocente derramado com opressão como culpa de sangue. Deus não descarta o sofrimento. E, embora ele tenha suas próprias razões para postergar a ira vingativa, não perdoará isso; ele ain­da tem muito tempo para retribuir, e não há estatuto de limita­ção. Mesmo que você seja o rei de Judá, como Jeoaquim, há um acerto de contas pela culpa de sangue, pois Jeoaquim “encheu Jerusalém de sangue inocente; e por isso o Senhor não quis perdoá-lo” (2Re 24.4).

Leia também  O Evangelho como uma boa catástrofe: A apologética literária de J. R. R. Tolkien | Holly Ordway

Deus protege aqueles que ama

Muitos consideram o Senhor um Deus caprichoso que derra­ma sua ira por coisas que parecem pequenas infrações de re­gras que são difíceis de entender. O que vemos nas Escrituras, porém, é um Deus consistente e compassivo, cuja ira santa vin­ga aqueles que sofrem injustiça. Fazer qualquer coisa menos do que isso, na verdade, seria falta de amor, seria imoral. Deus ama aqueles criados à sua imagem com um amor feroz e zeloso e protege aqueles que ama com todo seu poder.

 A justiça deriva do amor. Quando Deus vinga e justifica, ele está simplesmente demonstrando seu próprio amor. Você espera que aquilo que é valioso para você seja respeitado por outros, pois acredita que essas coisas valiosas têm o direito de serem honradas. Quando falamos de direitos humanos, quere­mos dizer que existe uma dignidade inerente à pessoa humana, que aqueles criados como portadores da imagem de Deus têm um direito inerente não apenas de existir, mas de ser tratados com justiça, independentemente de questões como riqueza, talento ou linhagem.

Mas a história demonstra que o conceito de direitos hu­manos nem sempre é reconhecido. “O justo toma conhecimen­to da causa dos pobres, mas o ímpio a ignora por completo” (Pv 29.7). Esse versículo resume muito do conflito humano. Alguns de nós tememos a Deus e reconhecemos os direitos do nosso próximo, criado à imagem dele; outros não temem a Deus e assim tratam as pessoas como indignas de respeito.

Se ouvir um intruso invadindo sua casa, você liga imedia­tamente para a polícia. Você espera que ela venha rapidamente em sua defesa. Se o seu apelo não for respondido a tempo, você busca os tribunais de justiça. Quando o sistema “judiciário” funciona como deveria, o mal que você sofreu determina a pu­nição: quanto maior o dano, maior será o castigo dispensado. A justiça exige isso. O amor exige isso.

 O amor é de natureza moral. Se isso ainda é difícil de entender, considere isto: se me deparo com um homem estu­prando uma mulher, eu não posso amar as duas pessoas da mesma forma; naquela circunstância, amar a mulher significa­rá resgate, enquanto amar o homem poderá parecer violência. Isso porque o amor tem um caráter inerentemente moral.

Suponha que eu me aproxime da mulher aterrorizada e de seu agressor brutal e diga: “Eu amo vocês dois da mesma forma e devo expressar esse amor da mesma maneira. Deus não quer que você violente essa mulher, mas, por favor, não pense que ele está irado: como Deus é amor, ele não fica irado. Isso não é incrível?!”.[5]

A mulher diria que minha fé é covarde, irracional e per­versa. E você também. O amor deve amar a justiça e odiar o mal. O amor deve ser apaixonadamente comprometido com o bem acima do mal. Deve escolher um lado. Deve lutar pelo fraco e pelo inocente e se opor ao violento e ao ímpio. Portanto, preciso gritar a plenos pulmões, afastar o homem dela, gritar para um vizinho telefonar para a polícia; fazer alguma coisa. Se o estuprador se virar para mim com sua faca e eu perder mi­nha vida ao defender a mulher, o que dirão? Que não há maior amor do que arriscar sua vida por outro (cf. Jo 15.13).

É nesse sentido que consigo ler as palavras perturbadoras e afiadas de Salmos 5.4-6, e vê-las tão condizentes com o Deus de amor infinito: “Porque tu não és um Deus que tenha prazer na injustiça, nem o mal habita contigo. Os arrogantes não per­manecerão na tua presença; detestas todos os que praticam a maldade. Destróis os que proferem mentiras; o Senhor repu­dia o assassino e o fraudulento”.

Quando o ímpio devora o inocente, nesse momento e nesse contexto, Deus toma partido: seu amor exige isso. Nesse sentido, como o salmista diz, Deus ama um e abomina o outro.


[1] Herbert Kretzmer, “Who am I?”, de Les misérables, 1987.

[2] Uma revisão bem documentada do caso está disponível em: <http://www.npr.org/templates/story/story.php?storyld=129025516>.

[3] Embora não saibamos, de fato, se Shipp e Smith cometeram os crimes de que foram acusados, com certeza eles não tiveram o menor direito a um julgamento de acordo com a lei e, portanto, podemos considerá-los inocentes. Muitas outras víti­mas de linchamento eram mais claramente inocentes.

[4] É também uma palavra que foi adotada nos códigos legais ocidentais.

[5] Usei essa mesma analogia em The Great Work of the Gospel [A grande obra do evangelho] (Crossway Books, 2006), em que exploro a ira de Deus essencial ao seu perfeito amor.

Trecho extraído da obra “Sangue inocente: qual o papel do cristão frente à opressão e a violência?“, de John Ensor, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2013, p. 41-48. Traduzido por Marcia Pekkala Barrios Medeiros. Publicado no site Cruciforme com permissão.

John Ensor é um líder envolvido no movimento cristão de luta contra o aborto. Através de seu ministério procura oferecer ajuda a gestantes. Atualmente serve como diretor-executivo de iniciativas globais para Heatbeat International, uma organização que presta assistência a mulheres e casais que estão pensando em recorrer ao aborto, a fim de que desistam da ideia e sejam preparados para assumir a paternidade ou para encaminhar a criança à adoção. Ele tem levado esse ministério para a Ásia e outras áreas não alcançadas pelo evangelho.
O derramamento de sangue inocente, principalmente por meio do aborto, tem marcado esta geração. Contudo, o comando divino para defender o inocente continua valendo para hoje.

Nesta obra, o autor trata justamente desse tema tão polêmico e explora uma série de questões que revelam as ligações vitais entre o evangelho de Cristo e o chamado divino para defender o direito à vida de inocentes, mostrando que cabe aos cristãos desafiar corajosamente os poderes da morte com o evangelho da vida.

Publicado por Vida Nova.

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: