Gilead: morrendo com o coração em paz | Philip Ryken
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12/abr/2022Um dos grandes amores da vida de Robert Boughton – e também sua maior dor – é seu filho Jack. Aqui, a autora de Gilead, Marilynne Robinson, vê um tipo de personagem familiar sob um novo ponto de vista. Não vemos o filho pródigo da perspectiva de seu pai, mas do melhor amigo de seu pai. John Ames também possui um papel paternal na vida de Jack (o jovem é seu afilhado), mas se encontra mais na posição do irmão mais velho (veja Lc 15.11s). Ames descreve a si mesmo como o bom filho que nunca deixou a casa de seu pai, “um daqueles justos para quem os júbilos no paraíso serão relativamente restritos” (veja Lc. 15.7).
O irmão mais velho
Tal como o irmão mais velho da parábola do filho pródigo, Ames se ressente da imoralidade irresponsável de Jack. “Não sei como um rapaz pôde causar tanto desapontamento”, diz ele, “sem dar a mínima margem para qualquer esperança”. Até onde Ames consegue se lembrar, tem havido algo de “diabólico” nos pequenos furtos do rapaz e outros delitos maliciosos. Suas brincadeiras juvenis não eram divertidas, mas mesquinhas.
Mas o maior pecado de Jack foi ser pai do filho de uma pobre camponesa fora do casamento e depois negligenciar a criança, que morreu de uma infecção comum. A caridade culpada do resto da família Boughton chegou tarde demais para salvá-la. “O que aconteceu com ela foi simplesmente terrível”, diz Ames, “o que é um fato”.
De certa forma, o reverendo Ames acredita que “a graça de Deus é o bastante para qualquer delito”. Esse princípio está profundamente enraizado no próprio compromisso de Robinson com o calvinismo, expresso em seus ensaios em The Death of Adam (Nova York: Picador, 2000) e em outros lugares. Ela escreve: “Todos nós somos absolutamente ─ isto é, igualmente ─ indignos e dependentes da livre intervenção da graça”.
John Ames acredita no pecado e na graça tanto quanto Robinson. Ele acredita ainda que o amor de Boughton por seu filho rebelde – “o mais amado” – exemplifica a compaixão semelhante à de Cristo. No entanto, ele também está irritado com a extravagância da afeição paterna de seu amigo, que ele considera excesso de indulgência. Se tivesse oportunidade, Boughton perdoaria cada um dos delitos de seu filho, passados, presentes e futuros. Ames acha difícil não se ressentir dessa graça, mesmo sabendo que seus sentimentos estão em desacordo com sua teologia:
Ao menos uma vez por semana, durante toda a minha vida adulta, disse que há uma efetiva assimetria entre o amor do nosso Pai e o nosso mérito. Mesmo assim, quando vejo essa mesma assimetria entre pais e filhos humanos, sempre fico um pouco irritado.
A luta de Ames para conciliar a verdadeira gravidade do pecado humano com a graça gratuita do perdão de Deus é complicada por seu papel único na vida de Jack. O rapaz nasceu muito antes de Ames ter um filho e, como presente da amizade cristã, Boughton o chamou de John Ames. Jack é o homônimo de Ames, seu alter ego; na verdade, ele é “um outro ser, um ser mais querido”.
No entanto, quando Ames realizou o batismo de Jack, ele encontrou seu coração estranhamente frio em relação à criança. Para sua própria culpa e vergonha, ele sempre achou difícil amar seu afilhado da maneira que seu amigo pretendia ou da maneira que ele sabe que um pastor piedoso deve amar. Ele considera seu homônimo possivelmente perigoso (para onde levará a crescente amizade de Jack com Lila e Robby?) e provavelmente desonroso ─ alguém que “nunca se arrepende e nunca muda para valer.”
“Não o perdoo…”, diz Ames.
“Eu não o perdoo”, diz Ames. “Não saberia nem por onde começar.”
O irmão mais novo
Assim como o reverendo Ames, Jack Boughton teme estar além do perdão. Embora seja agnóstico (“um estado de descrença categórica”, segundo ele: “nem mesmo acredito que Deus não exista”), Jack ainda se pergunta se há alguma graça para ele. Essa é a questão pessoal que está por trás da pergunta filosófica que ele faz sobre a predestinação em um dos diálogos centrais do livro: “O senhor acha que algumas pessoas são propositada e irremediavelmente destinadas à perdição?”
Ames e Boughton erram ao considerar essa questão como primariamente teológica ao invés de intensamente pastoral. Contudo, Jack está realmente perguntando acerca de si mesmo: ele pode ser salvo ou está além de qualquer esperança de redenção? Surpreendentemente, é Lila ─ não os ministros ─ quem entende a verdadeira questão e apresenta a resposta mais útil: “Uma pessoa pode mudar. Tudo pode mudar.”
A bênção do pai
Se o reverendo Ames não consegue dar a Jack a ajuda espiritual de que ele precisa, isso não ocorre sem preocupações. Ele acredita que é chamado para salvar o filho pródigo e dar-lhe a graça, aquele “fogo extático”, mas luta dentro de sua alma: “Sinto profundamente não poder conversar com ele enquanto pastor.”
Ames começa a desejar que de alguma forma ele pudesse compensar o frio batismo do menino, que ele pudesse “pôr a mão na sua testa e afastar a culpa”. Dadas as circunstâncias, ele faz a única coisa que sabe fazer e ora por Jack, pedindo a Deus sabedoria para cuidar dele como um bom pastor.
Essas orações são respondidas na cena culminante do romance, que traz o bálsamo para Gilead. Depois de revelar que tem uma esposa e um filho “de cor”, Jack decide deixar Gilead para sempre, mesmo que isso signifique abandonar seu pai em seus dias de morte ─ um pecado que Ames sabe que “só mesmo o seu pai poderia perdoar”. O reverendo Ames encontra Jack na rodoviária e pede para abençoá-lo, orar pela proteção de Deus e pronunciar uma bênção final: “Senhor, abençoe John Ames Boughton, esse filho, e irmão, e esposo e pai tão amado.”
Estas são palavras amorosas da graça pródiga que Deus esbanja a todos os seus filhos pródigos. São palavras de bênção para ambos os homens: tanto para John Ames quanto para John Ames Boughton, o irmão mais velho e o irmão mais novo. Para o reverendo Ames proferir essas palavras em nome de seu homônimo vale o seminário, a ordenação e todos os seus anos de ministério. É também a preparação final que ele precisa para ter uma morte pacífica.
Para reflexão ou discussão: Todas as relações pai-filho em Gilead são marcadas por alguma forma de distanciamento ou abandono. De acordo com o reverendo Ames, “um homem pode conhecer o seu pai, ou o seu filho, e, mesmo assim, pode não haver nada entre eles a não ser lealdade, amor e incompreensão mútua”. Isso se aplica ao próprio Ames, cujo pai não consegue entender por que ele permanece em Gilead e cujo filho é jovem demais para compreender a maior parte do que seu pai quer comunicar.
Como seu relacionamento com seu pai (ou algum outro membro da família) impediu seu progresso espiritual ou o ajudou a entender a graça de Deus? Como um pai pode esbanjar graça a seus filhos sem justificar seus pecados ou se tornar excessivamente indulgente? Quem são alguns dos filhos e filhas pródigos em sua lista de oração? Onde você viu a graça de Deus em ação para restaurar filhos que se afastaram dele?
Traduzido e revisado por Jonathan Silveira.
Texto original: Prodigal Grace for a Dying Pastor. The Gospel Coalition.
Philip Ryken é doutor em teologia histórica pela Universidade de Oxford e presidente do Wheaton College Seminary. Foi pastor da igreja Tenth Presbyterian Church, na Filadélfia, e escreveu mais de cinquenta livros, como "As doutrinas da graça", "Rei Salomão: as tentações do dinheiro, sexo e poder" e "Amar como Jesus ama", publicados por Vida Nova. |
Gilead é o segundo romance de uma das mais brilhantes autoras americanas contemporâneas, que compõe com sua escrita um bordado ao mesmo tempo sutil e avassalador — certamente um desafio a uma tradução tão primorosa como essa, de Maria Helena Rouanet. Esse livro é uma declaração de amor incondicional à vida, mesmo assombrada por Deus e um lamento por sua brevidade. Aclamado pela crítica e pelo público, foi o vencedor do Pulitzer de 2005. Gilead foi acalentado pela autora e aguardado por seus leitores durante 24 anos. Tem, em suas páginas, a dimensão de obra que atingiu a maturidade plena e nos conduz à nossa própria plenitude. Publicado por Vida Nova. |
Veja também os demais artigos da série:
- Gilead: uma nova visão sobre o ministério pastoral
- Gilead: um retrato positivo do pastorado
- Gilead: os desafios que todo pastor enfrenta
- Gilead: morrendo com o coração em paz
- Gilead: graça pródiga para um pastor moribundo
1 Comments
Eu li esse livro, por causa dele comecei umas anotações em um livrinho pro meu filho caçula (ele tem 17 anos) nessas anotações, inspiradas no rev. Ames, deixo lembranças, versículos, frases/citações, músicas, desejos/orações. Gilead é inspiração, amor, graça, bálsamo, beleza.