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Os limites do cristianismo transformacional de Niebuhr

Depois da Bíblia, estou razoavelmente certo de que li Cristo e Cultura de Richard Niebuhr mais vezes do que qualquer outro livro. Eu o li pela primeira vez na graduação e várias vezes retornei novamente a ele durante as décadas, visto que expõe com grande clareza as principais abordagens que as várias tradições cristãs têm da cultura. As cinco categorias apresentadas por Niebuhr soaram verdadeiras para mim e me ajudaram quando eu estava desenvolvendo minha própria compreensão do papel que a comunidade cristã tem desempenhado historicamente na formação da cultura. As categorias são familiares para muitos de nós, mas, para aqueles que não as conhecem, vale a pena repetir:

– Os aderentes da posição “Cristo contra a cultura” veem a comunidade cristã como uma contracultura permanente caracterizada por um conjunto de princípios em desacordo com a cultura mais ampla. Tertuliano e Leo Tolstoy são típicos proponentes desta visão, como são, para atualizar Niebuhr, os teólogos menonitas John Howard Yoder, Stanley Hauerwas e aqueles que veem a si mesmos articulando e vivendo um testemunho profético  do lado de fora da polis secular.

– A posição “Cristo da cultura” identifica a causa de Cristo com tudo que é bom na cultura mais ampla, a julgar por essa mesma cultura. Os exemplos de Niebuhr incluem Pedro Abelardo, o protestantismo liberal moderno, gnosticismo (em sua forma extrema) e os teólogos protestantes alemães Albrecht Ritschl e Friedrich Schleiermacher.

– A posição “Cristo acima da cultura” descreve a abordagem sintética da filosofia e teologia escolástica. Os proponentes não são nem a favor nem contra a cultura mais ampla. Eles livremente aceitam os paradigmas filosóficos de, digamos, Aristóteles ou dos estoicos, afirmando que os últimos podem nos conduzir apenas limitadamente no seu uso autônomo da razão. A Revelação divina é necessária para nos conduzir no restante do caminho – para verdades que estão além do que a razão autônoma pode compreender. Clemente de Alexandria e Tomás de Aquino são exemplos típicos dessa posição.

– Os campeões (se eles podem ser chamados assim) da posição “Cristo e a cultura em paradoxo” abordam a questão de forma dualística, apresentando a tensão das exigências do evangelho e os imperativos da cultura mais ampla. Cristãos são membros de dois reinos e devem lealdade a ambos. Certamente fidelidade ao evangelho é primordial, mas, como seres humanos pecadores, ainda estamos sujeitos aos poderes terrenos constituídos, cujas ordens podem, contudo, permanecer em uma tensão considerável com o evangelho. Segundo Nieburh, o apóstolo Paulo (obviamente não o Paulo da Nova Perspectiva), Marcião, Lutero e Kierkegaard se enquadram confortavelmente dentro dessa categoria.

– Finalmente, há a posição “Cristo, o transformador da cultura”, cujos seguidores têm como alvo nada menos que a conversão do mundo. Em toda a diversidade que há nessa posição, Niebuhr agrupa nessa categoria o autor do evangelho de João, Agostinho, Calvino, Wesley, Edwards e o socialista cristão inglês F. D. Maurice.

Quando jovem, achei tudo isso tremendamente empolgante. Niebuhr apresentava o que me pareceu ser uma tipologia consistente que serviu para nos ajudar a compreender o porquê, digamos, um grupo de cristãos alegou objeção de consciência* enquanto outros desejosamente lutaram no exército quando foram convocados a fazê-lo, o porquê cristãos em uma tradição podem abster-se da vida pública enquanto em outra tradição podem dedicar-se a ela com entusiasmo.

Não levou muito tempo para eu me colocar na posição transformacional. Sim, certamente, Cristo nos levaria a transformar a cultura em seu nome e para sua glória. Levou muito mais tempo para eu perceber as potenciais desvantagens na abordagem de Niebuhr.

Em primeiro lugar, verifica-se que quase todo mundo acaba se identificando com a posição “Cristo transforma a cultura”, não importando qual seja a sua tradição.  E por que não importa? Quem deseja ser acusado de estar satisfeito com a maneira como as coisas estão, sendo que o mundo está obviamente desajustado de muitas formas? Ninguém voluntariamente admitiria colocar de lado seus principais compromissos enquanto atua no seu ambiente de trabalho ou na vida pública. A atração a uma vida holística é forte demais para a maioria de nós. Desejamos viver uma vida de integridade e consistência, nem que seja em nome de nossa própria consciência.

Em segundo lugar, Niebuhr não é claro a respeito da autoridade tão propagada do seu cristianismo transformacional. Ele não está necessariamente afirmando que essa visão é mais bíblica que as outras alternativas uma vez que ele divide abertamente o testemunho bíblico entre elas. Como Niebuhr nota, as epístolas de Paulo sustentam a posição paradoxal, enquanto certas passagens nos evangelhos, por exemplo: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21), são mais características da posição “Cristo acima da cultura”. Igualmente, pode ser dito que a epístola de 1João apresenta uma posição de “Cristo contra a cultura”. Mas, se o testemunho bíblico está tão dividido como Niebuhr acredita que está, ele escolhe a posição transformacional sob qual fundamento? Uma vez que ele não alega ter recebido uma revelação pessoal, somos levados a ponderar se essa transformação não passa de uma preferência pessoal de sua parte.

Em terceiro lugar, se a base moral para a transformação é realmente tão tênue, não está particularmente claro porque alguém deveria subscrever a tal projeto. Cada visão ideológica tem aspirações transformadoras, quer seus proponentes se declarem liberais, socialistas, nacionalistas ou conservadores. Ainda assim, em um sistema democrático proponentes devem se contentar em aceitar formas e condutas tomando seriamente as objeções dos seus oponentes. Isso significa que é improvável que todas as nossas aspirações serão completamente cumpridas ou ainda que, por meio de algum milagre, a maioria delas seja, poderão estar sujeitas a reversão em algum ponto no futuro. Por quê? Porque o debate político nunca está terminado. Coalisões mudam, opinião pública muda e frequentemente os planos se chocam com contingências inesperadas.

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Em quarto lugar, se não formos claros quanto aos nossos esforços transformacionais, corremos o risco de sermos transformados pela própria cultura que desejamos mudar. Nesse caso, haverá pouca diferença entre a visão “Cristo transforma a cultura” e a visão “Cristo da cultura”. Críticos do conhecido Seminário de Jesus (Jesus Seminar) observaram que o “Jesus histórico” que os membros desse grupo de eruditos afirmam ter descoberto carrega uma estranha semelhança com eles mesmos, ou seja, é ocidental e instruído, com posições liberais democráticas. Se um Cristo como esse fosse transformar nossa cultura, seríamos capazes de identificar a diferença? Não se ele não faz nada além de papagaiar o senso comum de uma cosmovisão moderna tardia, uma distinta possibilidade se permanecemos indefinidos quanto à autoridade final do nosso conhecimento de Cristo. O próprio Niebuhr reconhece que o “Cristo que fala para mim sem autoridade e testemunho não é um Cristo real, ele não é o Jesus Cristo da história” (p. 245-246).

Finalmente, em quinto lugar, embora a esperança de transformação seja inebriantemente atrativa para idealistas e pretensos reformadores sociais, eu mesmo tenho orado recentemente não tanto para que sejamos capazes de mudar o mundo para Cristo, mas para que as coisas não fiquem piores do que elas estão agora. As várias ilusões políticas que varreram por sobre a paisagem global nos últimos dois séculos cumpriram suas próprias transformações, começando com a revolução francesa e avançando mais recentemente para a revolução sexual. É fácil desanimar em tal contexto, como evidenciado na discussão recente entre cristãos ortodoxos da “opção Beneditina” de retirada comunal e reagrupamento.

Aqui talvez seja onde mais precisamos retornar para Agostinho, que é situado por Niebuhr em sua categoria transformacional. Pode não ser óbvio que o bispo de Hipona seja tão facilmente enquadrado nessa posição, muito embora seus próprios escritos tenham de fato contribuído grandemente para a criação de uma nova civilização na sequência da queda de Roma. Entretanto, ele reconheceu com particular clareza que a coexistência durante a presente era da civitas Dei e a civitas terrena significa que não podemos esperar que quaisquer das duas cidades alcance um triunfo definitivo antes do retorno de Cristo. Isso pode ser irritante para aqueles que estão impacientes para ver o Reino de Deus avançar mais rapidamente, mas talvez tenhamos que nos contentar com a promessa bíblica de que, a despeito do poder que as forças do mal pareçam ter no momento, elas não derrotarão o Seu Reino. Nossos próprios esforços podem não resultar, portanto, em uma completa transformação em termos Niebuhrianos, mas eles não serão em vão à medida em que mantêm viva a centelha de luz em tempos de escuridão – uma luz que, estamos certos, não será extinta.

*Nota do Tradutor: Objeção de Consciência é um direito que o cidadão tem de, por motivo de consciência particular motivada por visão pacifista, se eximir de participar em operações militares em um teatro de guerra.

Traduzido por Tiago Alexandre da Silva e revisado por Jonathan Silveira.

Texto original aqui.

David T. Koyzis é doutor em Filosofia pela Universidade de Notre Dame e atualmente é professor de Ciência Política na Redeemer University College, em Ancaster, Ontário, onde leciona desde 1987. Em 2004, sua obra Visões e ilusões políticas, publicada por Edições Vida Nova, foi premiada em primeiro lugar na categoria não ficção/cultura pela The Word Guild Canadian Writing Awards.
Neste estudo abrangente e atualizado, o cientista político David Koyzis examina as principais ideologias políticas de nosso tempo, a saber, o liberalismo, o conservadorismo, o nacionalismo, o democratismo e o socialismo. Koyzis faz tanto uma análise filosófica quanto uma crítica honesta a cada ideologia, revelando os problemas de cosmovisão inerentes a cada uma delas, destacando seus pontos fortes e fracos. Além disso, ele oferece modelos alternativos que são fruto do engajamento histórico de cristãos na arena pública ao longo dos tempos.

Escrito sob uma perspectiva bastante ampla e analítica, Visões e ilusões políticas reafirma, em sua segunda edição ampliada e atualizada, o compromisso de ser um guia útil e sensível, sobretudo para aqueles que atuam na esfera pública, analistas culturais, eruditos, cientistas políticos, enfim, todos os que se interessam pelo pensamento político.

Publicado por Vida Nova.

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